Após a meia-noite

O Boeing da American pousou no aeroporto de Carrasco às 10:30 da manhã de sábado. Havia sido um longo voo — onze horas desde Miami — mas a ansiedade mascarava os sinais do cansaço em Daniel Vargas, que estava prestes a colocar as mãos em um tesouro escondido há quase cinco décadas dos olhos do mundo. Chegava em Montevidéu trazendo apenas uma mochila nas costas, mas esperava retornar a Washington carregando a única cópia conhecida do Santo Graal dos filmes perdidos.

O convite para ir ao Uruguai nasceu de um mal-entendido cometido pelo chefe, que Vargas não fez questão de desfazer para não perder a chance de viajar. Uma semana antes executava sua coreografia rotineira, catalogando latas de filmes antigos no acervo do National Film Institute, no sopé das Blue Ridge Mountains, quando foi chamado na sala do diretor, Mike Chambers. Financiado pelo espólio de um magnata da indústria de alimentos enlatados, o Instituto recolhia, recuperava e conservava filmes antigos, em especial da era do cinema mudo. Entre curtas e longas metragens, mais de 5.000 peças, vindas de todos os cantos do planeta. Para um aficionado como Vargas, ser o encarregado da manutenção de tal acervo era como estar de posse da chave do Paraíso.

— Você não vai acreditar nisso. — Empolgado como um moleque no último dia de aula, Chambers pediu a Vargas que sentasse e assistisse ao vídeo em seu laptop. Quando o filme começou, Vargas realmente não acreditou no testemunho de seus olhos. A capa, a cartola alta, o sorriso icônico de Lon Chaney com seus dentes serrilhados, que ele vira tantas vezes em fotografias, ganhavam movimento na tela do computador. As imagens não deixavam margem para engano: o mais célebre dos filmes desaparecidos, London After Midnight, havia finalmente sido encontrado.

— Mas como é possível? — Vargas não conseguia disfarçar a incredulidade. Como se a descoberta já não fosse surpreendente, a qualidade da imagem era perfeita, algo praticamente impossível em se tratando de um filme daquela idade e natureza. Antes da adoção do acetato no fim dos anos 1940, os filmes eram reproduzidos sobre uma base de nitrato de celulose. Além de altamente inflamável — a chama do nitrato queima até sob a água — o material era muito sensível à decomposição química, deteriorando-se com facilidade. A grande maioria dos filmes mudos está irremediavelmente perdida. London After Midnight foi lançado no fim da década de 1920, e a última cópia conhecida queimara no grande incêndio dos galpões da Metro, em 1967. Desde então empreendeu-se uma verdadeira cruzada entre os fãs do cinema mudo em busca de outra cópia, mas apesar das inúmeras pistas, nada concreto fora encontrado.

— A carta com o DVD veio do Uruguai. Montevidéu. — Olhava o envelope como se fosse um objeto misterioso. — Cartas… Quem ainda envia essas coisas hoje em dia? Enfim, o dono é um velho colecionador, está disposto a doar as latas. Mas faz questão de que um especialista em conservação vá buscá-las. Na verdade, essa também é uma exigência da seguradora, para que banquem a apólice do transporte. — Desde a década de 1910 os estúdios da Califórnia e seus distribuidores enviavam cópias de seus filmes para serem exibidos em outros países, mas o custo da logística para trazê-las de volta e mantê-las armazenadas tornava a operação economicamente inviável. As latas contendo os rolos eram deixadas nos porões das salas de exibição ou iam para o lixo, para afastar o risco de incêndios. Ao longo do tempo, alguns desses rolos acabaram nas mãos de colecionadores particulares. Grande parte do acervo do Instituto veio de outras partes do mundo.

— Como você é latino, pensei que poderia ir até lá buscá-las. O que acha? Você fala espanhol, não? — O pai de Vargas havia emigrado do Brasil, o único país de língua portuguesa na América Latina, detalhe que ele já havia explicado várias vezes ao diretor, evidentemente sem sucesso. Concluiu que aquele não seria o melhor momento para tentar corrigir o equívoco. — Sim, perfeitamente. — Alguns dias depois, embarcava rumo a uma conexão na Flórida, com destino à América do Sul, munido de um vocabulário de pouco mais de meia dúzia de palavras em espanhol.

Lon Chaney era quase unanimidade entre os apreciadores de filmes antigos, e Vargas não era exceção. O ator foi objeto de seu trabalho de conclusão na faculdade de cinema, bem como de dezenas de artigos publicados em revistas especializadas. Também era participante ativo de fã clubes e grupos de debate sobre o tema. Quando algum jornal precisava de uma fonte sobre o assunto, seu depoimento era sempre requisitado.

Notório por sua versatilidade, Chaney conseguia dar vida aos mais diversos tipos, valendo-se apenas de sua caixa de maquiagem e de uma assombrosa expressão corporal. Sua galeria de personagens antológicos — um mágico paralítico; um atirador de facas sem braços; Mr. Wu, um patriarca chinês; Quasímodo, o Corcunda de Notre Dame; Erick, o Fantasma da Ópera, entre tantos outros — lhe valeu o epíteto de o Homem das Mil Faces. Os dez filmes que ele e o diretor Tod Browning fizeram para a MGM figuram entre o que de mais estranho e fascinante foi realizado na era do cinema mudo. London After Midnight foi adaptado de uma história do próprio Browning, e foi o maior sucesso de bilheteria da dupla. A crítica especializada não partilhou da mesma opinião que o público, apontando uma série de incoerências na trama. Chaney desempenhava dois papéis — Burke, investigador encarregado da solução de um assassinato — e a misteriosa figura de dentes serrilhados, olhos esbugalhados e cartola alta de pele de castor, que o roteiro sugeria tratar-se de um vampiro com poderes hipnóticos. Ao final era revelado que o vampiro era na verdade o investigador, que se disfarçara com o propósito de confundir os suspeitos e capturar o assassino.


Os casarões da avenida 19 de abril remanesciam como testemunho material da antiga glória do Prado. O bairro abrigara as casas de campo das famílias mais abastadas do Uruguai, na virada do século XIX para o XX. Ao longo do passeio divisavam-se os mais variados estilos arquitetônicos — construções neogóticas, vilas romanas povoadas de mármore, estátuas e fontes, palacetes inspirados no neoclassicismo francês e mesmo algumas tardias evocações art déco. Quando o táxi chegou ao seu destino, Vargas experimentou uma vaga sensação de familiaridade, quase que de reconhecimento, diante da fachada da residência de Gustavo Villalba, seu anfitrião em Montevidéu. O pátio frontal, com seu muro baixo tomado por heras, as colunas ornamentadas com padrões geométricos, uma grande bay window com vidros em formato de losango — era como se já conhecesse aquele lugar. Um jovem alto e parrudo, mistura de guarda-costas e secretário, veio recebê-lo na entrada.

Gustavo Villalba era um homem muito velho. Vargas estimava que já devia ter passado dos noventa anos. Contudo, ainda muito lúcido, articulado, a força de sua voz destoava da fragilidade do corpo mirrado, era como se estivesse sendo dublado por alguém trinta anos mais novo:

— Sei que deve estar ansioso para pôr as mãos nelas, rapaz. — Apontou para as sete latas contendo os rolos de 35 mm, pousadas em cima da mesa em sua sala de estar. A mesma sensação de familiaridade que tivera na entrada repetiu-se no interior da casa. Apesar do forte sotaque, o ancião falava um inglês perfeito, o que foi um grande alívio para Vargas. — Quando os filmes sonoros chegaram, no fim dos anos 20, essas maravilhas imediatamente perderam seu apelo. Nem o público nem os estúdios queriam mais saber delas. Bom, você deve saber disso, é o seu ofício, não? Aprecia o trabalho de Chaney, não é, rapaz?

— É o meu favorito, senhor Villalba.

— Era o meu também. — O sorriso enrugado revelava cumplicidade, mas também carregava algum mistério. — Esse não é um bom filme, sabe? É um amontoado de bobagens, não entendo como pode ter feito tanto dinheiro na época. Mas não importa. As razões que levam um filme a se perpetuar nos corações e mentes das pessoas pouco têm a ver com questões ordinárias, como a coerência do roteiro ou a habilidade de seus realizadores. É algo mais profundo, algo que transcende a razão humana. É como se alguns deles fossem dotados de uma alma, você entende? Como se criassem vida própria. E esse aqui — apontou para as latas — surte os mais variados e estranhos efeitos sobre as pessoas. Eu vou lhe dar esses rolos, rapaz, mas antes, minha única exigência é que você perca alguns minutos ouvindo a história de um velho solitário. Se depois de ouvi-la, ainda assim quiser levar as latas, elas serão suas. De acordo?


Instalado em uma confortável poltrona em frente ao seu interlocutor, Vargas se esforçava para acessar o recanto da memória onde a lembrança daquele lugar se escondera, mas era em vão. O voo de volta estava marcado somente para o dia seguinte, podia muito bem perder algumas horas dando atenção ao velho. A recompensa por essa boa ação seria inestimável.

— Nasci em 1910, ano em que o Cometa Halley passou pela Terra. Minha mãe sempre gostava de lembrar a efeméride, como se isso fizesse de mim alguém especial. Você sabe, um bom augúrio, como a Estrela de Belém. E talvez ela não estivesse errada, de todo modo. Meu pai era um homem rico, ele e o irmão herdaram um próspero frigorífico de meu avô. Mas nunca demonstrou nenhum apreço pelo mundo dos negócios. Deixou a administração nas mãos de meu tio e passou a viajar pelo mundo. Teve seus anos de bon vivant, embora não fosse dado à dissipação e aos exageros. Em 1906, porém, sua vida deu uma guinada. Visitava amigos em San Francisco quando foi surpreendido pelo Grande Terremoto. Foi atingido por escombros, quebrou uma perna. Minha mãe era enfermeira, ela que cuidou de seus ferimentos. No ano seguinte estavam casados e morando em Los Angeles. Ele se interessou pelo ramo dos nickelodeon, comprou algumas máquinas e se assentou por lá. Conheceu um sujeito chamado Marcus Loew, que anos mais tarde seria o magnata da MGM, e tornou-se um sócio minoritário no promissor negócio de salas de exibição de cinemas. Em pouco tempo já ganhava tanto dinheiro que não precisava mais das remessas mensais do irmão. Na verdade, o negócio prosperou tanto que ele faturava mais que o frigorífico.

Quando eu tinha 15 anos, o cinema já era parte da identidade do lugar. Respirava-se cinema por toda parte. O Variety era uma leitura tão essencial quanto a Bíblia. Os negócios iam bem, mas diferente de meu pai, mamãe era uma pessoa profundamente imbuída da ética protestante que fundou o seu país e achava que eu tinha que trabalhar. Meu pai pediu ao senhor Loew um emprego na MGM, e em fevereiro de 1925 comecei a trabalhar como projecionista em uma das salas de demonstração do estúdio. Você sabe, onde ocorriam aquelas sessões prévias para mostrar as dailies ou o corte final do filme aos produtores, para que estes dessem seu veredito.

Todo dia eu cruzava por gente como Norma Shearer, Laurel & Hardy, Irving Thalberg… E Chaney, claro. Meus colegas de aula me invejavam até os ossos, sabendo que o jovem Villalba aqui trabalhava perto do astro favorito de todos. Ele tinha uma presença e tanto, sabe? Quando entrava naquela sala, a atmosfera se transformava. O local imediatamente parecia adquirir aquela estranha ambientação que seus filmes exalavam. E ele sempre aparecia — não faltava a uma sessão prévia — do primeiro ao último corte, fazia questão de conferir o resultado.

Fui eu, Gustavo Villalba, em 02 de setembro de 1927, a primeira pessoa a projetar London After Midnight. O copião final foi exibido para uma plateia restrita, formada pelo senhor Loew, Chaney e um amigo de Louis B. Mayer, um inglês que estava de visita e queria conhecer pessoalmente o célebre Fantasma da Ópera. Browning estava nos galpões filmando alguma coisa com Lionel Barrymore. Thalberg e Mayer já haviam visto algumas dailies, concluíram que tudo ia bem com o filme e não tiveram interesse em ver o copião final. Após pouco mais de uma hora, encerrada a projeção, Loew e Chaney ordenaram que eu levasse os rolos para serem copiados — o filme estava aprovado.

Estou falando desses mesmos rolos diante de nós, sabe? Os mesmos rolos que apresentei ao chefão da Metro e a Chaney, há mais de 80 anos. Estão intactos. Alguma força invisível, cuja natureza e propósito ignoro, vem conservando esses rolos de nitrato através das décadas. Todos os homens presentes na sala de projeção naquela tarde de primavera foram afetados de alguma forma: Loew foi o primeiro, morreu três dias após a sessão, um ataque cardíaco fulminante. Cochichos maldosos na época davam conta de que seu coração não suportou a notícia do lançamento de O Cantor de Jazz pela Warner, o que colocaria seu negócio em risco. Um câncer na garganta levou Chaney dois anos depois. O amigo de Mayer — esqueci o nome daquele inglês — já de volta ao seu país, matou uma mulher em pleno Hyde Park. Em sua defesa, alegou ter cometido o crime sob influência da performance de Chaney nesse filme. O Homem da Cartola de Castor — era assim que o chamávamos então — teria aparecido em uma esquina, gritando e fazendo caretas em sua direção. A partir desse momento ele disse ter apagado — não tinha nenhuma lembrança de ter empunhado a faca e retalhado a moça. A tese da defesa foi recusada, evidentemente, e o homem foi condenado. O filme foi um sucesso, o público que o viu nas salas de cinema não foi atingido da mesma forma que aqueles que assistiram a este copião — apontou na direção das latas — naquela tarde.

— O senhor não parece ter sido afetado…

— Após a morte de Loew, meu pai vendeu a Mayer sua parte no negócio das salas de cinema. Aplicou o dinheiro da venda na Bolsa em Nova York e perdeu tudo na Quinta-Feira Negra. Na mesma época, meu tio sofreu um derrame. Um irmão falido no Estados Unidos, o outro incapacitado para o trabalho no Uruguai — a solução parecia evidente — deveríamos nos mudar para a América do Sul.

Poucas semanas antes de embarcarmos, passando pelo galpão onde os filmes eram guardados, eu senti o chamado. Não um chamado literal, vozes, nada disso. Foi uma sensação, um impulso, algo irresistível. Era como se ele estivesse me atraindo, me chamando. Eu tinha quase vinte anos de idade e até então jamais havia roubado. Naquele momento, porém, não tive dúvidas ou escrúpulos. Carreguei as latas até a sala de projeção onde eu trabalhava, e no dia seguinte, as levei embora no banco de trás do Cadillac de meu pai. Desde então, nunca mais nos separamos.

Você observou que eu não fui afetado — essa questão me deixou intrigado, durante algum tempo. Especulei que o fato de eu ter permanecido na cabine durante a projeção, separado da sala de exibição, teria me protegido de qualquer emanação maléfica que porventura tivesse sido liberada naquela manhã. Não era nada disso.

Não houve uma epifania, nenhuma revelação repentina na forma de uma sarça ardente. Foi só com o arrastar dos anos que percebi a razão pela qual fui poupado. A mim estava destinada uma tarefa: o filme me escolhera para ser seu guardião. Não, não se preocupe em esconder o riso, rapaz, eu não ignoro o quanto isso parece absurdo. Mas por favor, deixe-me terminar, peço apenas por um pouco mais de sua indulgência, prometo que a arenga desse velho está quase no fim.

Chegamos a Montevidéu em meio à primeira Copa do Mundo — você gosta de futebol? O clima na cidade era festivo, as pessoas sorriam e o Uruguai venceu o torneio, o que foi como uma espécie de prelúdio da era de bonança que iniciava em nossas vidas. Os negócios no frigorífico prosperaram, minha mãe não teve muitos problemas em se adaptar aos novos costumes. E mantive o filme a salvo dos olhos do mundo. Enquanto eu o protegesse, ele me protegeria.

Após a morte de papai, tomei a frente dos empreendimentos familiares e tratei de diversificá-los. Passei a exportar embutidos e carne enlatada para várias partes do mundo, inclusive o seu país. Em poucos anos havia multiplicado o capital, tudo isso sem precisar sair de minha casa. Sem precisar sair de perto dele.


Vargas não desejava ferir a suscetibilidade do velho. Receava que pudesse melindrá-lo, fazendo com que mudasse de ideia a respeito da doação. O depoimento apresentava sérios problemas de credibilidade logo de saída. Villalba deveria ter 105 anos para que sua história absurda pudesse ser confirmada. Sem mencionar a tal maldição que as latas carregavam consigo. Mantendo-se impassível, Vargas não levantou nenhuma questão inconveniente, nada que pudesse magoar o ancião. Levou o teatro adiante:

— Mas por que o senhor resolveu doar o filme ao Instituto? Não teve herdeiros? Nunca se casou?

— Nunca casei nem tive herdeiros. Rapaz… Nenhum Instituto vai ganhar esse filme. Ele está destinado a você. Ele escolheu você. Ele sabe que dentre tantas pessoas nesse mundo, é você que vai entender a importância da missão que tem pela frente. Ordenei a meus empregados que buscassem pessoas que apreciassem o trabalho de Chaney e Browning, alguém que estivesse profundamente conectado a esse universo. Quando o seu dossiê caiu em minhas mãos, senti novamente o chamado. A mesma sensação que tive há oitenta anos, quando o filme me escolheu.

Sei que você não está me dando crédito algum nesse momento, pensa que são apenas desvarios de um velho decrépito. Mas em pouco tempo você vai descobrir que falo a verdade. Estou com mais de cem anos, esses rolos me proporcionaram uma vida longa… Muito longa. Estou cansado. Minha missão está chegando ao fim. Preciso de alguém para passar a guarda, alguém que se importe com o filme, que reconheça sua importância. Por essa razão fiz com que você fosse contratado pelo Instituto. Foi por essa razão que ordenei a Chambers que enviasse você a mim. Qual foi mesmo o motivo alegado por ele para a sua escolha? Ah, sim… Que você era latino, não? Você está aqui porque o chefe do seu diretor requisitou a sua presença. O Instituto… Financiado pelo espólio de Charles McNaughton III, magnata da indústria de alimentos? Basta acrescentar um algarismo romano a um sobrenome qualquer para conferir seriedade a um personagem.

As últimas palavras causaram desconforto em Vargas. Haveria algum pingo de verdade em meio à montoeira de bobagens despejadas pelo velho? Antes que tivesse tempo para refletir, Villalba encerrou:

— Diante de tudo o que expus, eu entrego essas latas a você, e pergunto: deseja realmente levá-las consigo, rapaz?

— Senhor Villalba, nada me daria mais orgulho — respondeu em um tom de condescendência tão forçado, que imediatamente sentiu o rubor queimando sua face. Teria o velho percebido a falsidade em seus modos? O sorriso misterioso no rosto encovado dava a entender que sim.

— Uma última coisa, rapaz. Quando for assistir ao filme, peço que preste atenção a uma determinada cena, perto do fim, quando o assassino é preso. Creio que ela será de especial interesse para você.


No balcão da companhia, o funcionário repetia palavras como carta de porte, conociemento de transporte, enquanto apontava insistentemente para as latas. Vargas intuiu tratarem-se de documentos necessários para o embarque do filme, mas não conseguia entender nada do que lhe diziam. Não resolveria esse imbroglio sem ajuda e telefonou para a residência de Villalba.

— Olá, senhor Vargas. Lamento informar que o senhor Villalba acaba de falecer. — O funcionário prosseguiu impassível, monocórdio, como que seguindo os passos de um roteiro ensaiado. Lamentou o ocorrido, iria imediatamente enviar alguém para ajudá-lo com a papelada. Parado em frente ao balcão, Vargas já não ouvia mais os sons do outro lado da linha — estava atônito.


A primeira projeção de London After Midnight após oitenta anos foi cercada de muita discrição. Apenas Vargas, Chambers e o agente da companhia de seguros estavam presentes, e todos concordaram em manter o mais absoluto sigilo quanto à descoberta dos rolos. O diretor pretendia mostrá-los ao mundo com grande alarde no próximo festival de filmes antigos da UCLA, na costa oeste. Seria a consagração do Instituto.

Bastou que a projeção iniciasse para que Vargas recordasse o porquê da residência de Villalba ter lhe parecido tão familiar — o velho a construiu nos moldes da casa que servira de cenário principal na maioria das cenas. Uma réplica perfeita, por dentro e por fora.

Viu-se obrigado a concordar com a opinião dos críticos da época. Ainda que não fosse de todo execrável, London After Midnight era um filme medíocre, muito abaixo do potencial de Chaney e Browning. Aguardou ansioso pela cena sobre a qual Villalba o havia alertado, mas quando finalmente ocorreu a prisão do assassino, não percebeu nenhum fato inusitado: Burke, o investigador, revelava que o assassino era o melhor amigo da vítima. Seus assistentes prendiam o sujeito e o arrastavam para fora. Na rua, alguns populares testemunhavam a prisão. Não percebeu nada de estranho na cena. Pelo menos, não da primeira vez.

Estava voltando para casa quando sentiu pela primeira vez o chamado. Uma vontade irresistível, que fez com que retornasse imediatamente ao Instituto. Sentia que precisava revê-lo. Tinha que estar perto dele. O filme não podia ser abandonado. De volta à sala de projeção, reviu a cena. Foi então que ele apareceu.

Não havia dúvidas. Era Villalba. Os policiais carregavam o assassino pela rua, sob os olhares curiosos dos vizinhos — entre eles, Villalba. Não o jovem de 17 anos que trabalhava na MGM nos anos 20, mas o velho que falara com ele há apenas dois dias, em Montevidéu. Reviu a cena uma, duas, várias vezes. Seria possível que os outros…? Buscou fotos de Marcus Loew, o chefão da MGM, na internet e logo em seguida o reconheceu entre os figurantes da cena. O inglês condenado por assassinato também deveria estar ali, supôs. Vargas permaneceu por horas ao lado do projetor, de cabeça baixa, buscando desesperadamente algum sentido em toda aquela loucura.

Poucos minutos após a meia-noite, decidiu ir embora. Tencionava retirar o rolo do projetor e guardá-lo na lata, mas sentiu um desejo irrefreável de assistir mais uma vez à cena. E mais uma vez percebeu algo diferente. Entre os populares, além de Villalba e Loew, também reconheceu os rostos de seu chefe e do inspetor da companhia de seguros.


O segurança do estacionamento relatou que, ao sair do Instituto, Chambers acercou-se do homem da seguradora, que estava com o capô de seu carro levantado, coçando a cabeça, como se não soubesse o que fazer. Precisava estar no aeroporto até às 20:00, não iria conseguir chegar a tempo. O diretor ofereceu-lhe uma carona. Cerca de quinze minutos depois, uma jamanta carregando Buicks tombava sobre os dois em uma curva da Via Expressa. Morreram instantaneamente.


— Bom dia, senhor diretor! Aqui estão os seus recados. A reunião com o reitor será às 10:30. — A secretária do Instituto era toda sorrisos para Vargas. A nomeação aconteceu cerca de um mês após o acidente. Um representante legal do espólio de Charles McNaughton III notificou que, por considerá-lo o nome mais indicado para o cargo, o Conselho escolheu Vargas para assumir a direção do Instituto.

Entrou em sua sala, durante algum tempo olhou distraidamente para alguns papéis sobre sua escrivaninha, e em seguida dirigiu-se a uma outra porta, que ligava seu gabinete à sala de projeção. Abriu o cofre que mandara colocar no canto da sala. O segredo, 01041883, era a data de nascimento de Lon Chaney. Escolheu uma dentre as sete latas, retirou o rolo e encaixou-o gentilmente na bobina de alimentação. Engatou o início do filme nas rodas dentadas localizadas por trás da lente e puxou até alcançar a bobina de recolhimento, no outro extremo do aparelho. Chaveou a porta, apagou as luzes e acionou o projetor. O homem de cartola e olhos esbugalhados levantou sua capa. Parecia sorrir, com seus dentes pontiagudos. Instalado em sua confortável poltrona, Vargas retribuía-lhe o sorriso.

Author: Paulo Alcaraz

Paulo Alcaraz é gaúcho radicado em Florianópolis, 45 anos, servidor público federal e guitarrista amador. Historiador que acabou não seguindo o ofício, fã de cinema em geral e dos velhos filmes mudos em particular. Após a Meia-Noite é minha tentativa de reunir essas duas paixões, história e cinema.

2 thoughts on “Após a meia-noite

  1. Gostei muito da ambientação do conto, da mistura dos fatos reais e ficcionais (tanto que acho impossível diferenciá-los sem embarcar numa pesquisa meticulosa). Confesso que no quesito filmes mudos só conheço Chaplin e também Mélies (mas só pelo que vi no filme A invenção de Hugo Cabret). Realmente é um mundo mágico que se descortinou, só tenho a agradecer a experiência. O clima sobrenatural também me capturou (arremeteu-me à Christine de Stephen King, sobretudo a questão de passar a posse) e tive até um arrepio com a senha do cofre (mas isso deve ser mais comigo, pois são números que conheço bem, pois é a data do meu aniversário – só que no caso 1983, não sou tão velho assim rsrs). Parabéns, Paulo!

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