Entrevista: Enéias Tavares

foto_eneiasEnéias Tavares, o criador da série literária Brasiliana Steampunk, nasceu em 1881 e desapareceu em 1912, logo depois do temível doutor Louison escapar do Asilo São Pedro para Criminosos Insanos e Histéricas Descontroladas. Em 2012, ressurgiu como um especialista em Shakespeare e William Blake e professor de literatura clássica na Universidade Federal de Santa Maria. O que aconteceu com ele nesse hiato de um século? Ninguém sabe. Nem o próprio!

“Solfieri de Azevedo & A Estalagem dos Enforcados” é mais um conto seu que se passa no universo Brasiliana Steampunk, que reinventa personagens clássicos da literatura brasileira. Você acredita que essa reinvenção de personagens nacionais pode fermentar o interesse de um público mais jovem por estes livros clássicos?

Sim, esse é um dos principais objetivos da série. Todos nós saímos um tanto traumatizados da escola devido ao modo como os nossos clássicos foram ensinados, seja por uma hipervalorização de biografismos ou pela dificuldade que os textos apresentam, vide o exemplo de um Raul Pompeia e o seu O Ateneu, por exemplo. Ao reapresentar esses heróis com uma nova roupagem, o que pretendo é indiretamente convidar os leitores e leitoras a visitarem mais uma vez esses textos, porém agora com um interesse ou uma curiosidade renovados.

O que o Solfieri do Brasiliana Steampunk tem em comum com o Solfieri de Álvares de Azevedo?

A melancolia romântica, a linguagem mais soturna, a visão de mundo niilista, quando não desesperada. Todavia, no universo da série, o meu Solfieri é um satanista imortal, o que o fez sobreviver aos amigos mortos no texto de Azevedo e a todos os seus familiares, o que lhe dá uma perspectiva bem singular sobre a humanidade, a vida e a morte. Alguns leitores tem mencionado que ele reaparece sempre diferente em seus contos e minha resposta é a de que ele muda de uma década para outra, como cada um de nós. As únicas constantes são os seus pendores góticos e sua predileção por contar histórias de horror em tavernas não muito apropriadas a “donzelas, mancebos e carolas”.

Tanto este conto publicado na Trasgo quanto o seu livro “A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison” despontam com uma investigação. O que você acredita que seja mais misterioso no universo Brasiliana Steampunk?

A oposição entre ciência e religião, ou entre pensamento racional e espiritualidade. Quanto mais avançamos em direção a explicações positivistas e objetivas sobre o mundo e o universo, mais intensas se tornam nossas angústias e dúvidas existenciais, para não dizer espirituais ou metafísicas. Como no final do século 19 temos essa multiplicação de sociedades secretas ao lado de grandes avanços científicos e tecnológicos, temos ali um belo pano de fundo para investigar esse paradoxo, paradoxo que persiste até hoje. Em “Lição de Anatomia”, a história circunda a oposição entre razão e loucura. Já no conto da Trasgo, busquei o conflito entre a vida material e finita e a busca por imortalidade a qualquer preço. Histórias policiais são perfeitas para este tipo de reflexão ou problema, pois sempre prometem um mistério a ser resolvido. Mas é claro que isso está inserido em enredos interessantes e divertidos, sempre minhas prioridades.

O que mais te inspira em Porto Alegre a ponto de ter te levado a reinventá-la como Porto Alegre dos Amantes?

Eu amo paisagens imaginárias, como a Terra Média, Westeros e Hogwarts, para não dizer a New Orleans de Anne Rice ou a Londres de Oscar Wilde ou Conan Doyle. Mesmo quando reais, no caso dos dois últimos, suas versões literárias são mundos imaginativos nos quais podemos habitar, viver, sonhar. Eu tentei o mesmo com Porto Alegre dos Amantes, cidade imaginária repleta de histórias, mistérios e segredos. Um convite a explorar alguns deles são os mapas que temos feito para a série – sendo que muitos dos seus espaços podem ser visitados na Porto Alegre real – e o áudio drama feito em parceria com o Sarjeta RPG, que pode ser escutado gratuitamente (http://goo.gl/7cnA6y) e que permite visitarmos essa cidade na companhia de Vitória Acauã, uma das heroínas da série. Quanto à tua pergunta, adoro os prédios históricos, as árvores frondosas, a selvageria arquitetônica do centro, que é sempre um convite a deixarmos os carros no estacionamento e a caminhar sem destino fixo.

Quais são seus autores favoritos? E o que te levou a escrever steampunk?

Eu tenho diversos, tanto estrangeiros quanto nacionais, muitos mortos e alguns ainda vivos. Mas no que concerne às minhas influências na criação e escrita de Brasiliana Steampunk, certamente Anne Rice, Stephen King, Oscar Wilde, Thomas Harris e Alan Moore, para não citar as referências diretas à nossa literatura do século 19. Mas eu optei pelo steampunk não apenas por adorar o gênero, em especial a Liga Extraordinária de Moore, como também por desejar que a série tivesse esse verniz fantástico, pulp e ao mesmo tempo surpreendente, todos elementos presentes no retrofuturismo literário.

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Como é seu processo criativo? De onde vem as ideias e como elas se tornam histórias completas?

Cada projeto permite uma resposta diversa. Basicamente, Brasiliana Steampunk compreende cinco grandes romances e uma série de contos que irão preenchendo os espaços de uma linha temporal de mais de trinta anos. Então, basicamente, se trata de ver cada projeto na sua especificidade e partir dele. Para a Trasgo, por exemplo, e o conto “Solfieri de Azevedo e a Estalagem dos Enforcados”, eu queria brincar com vários elementos da série, também por saber que seria uma boa oportunidade de apresentar a série a leitores que não a conheciam. Então, veio a ideia do narrador ser Solfieri e o editor Isaías Caminha, acrescentando notas de rodapé que apontam para o livro e também com a participação mais que especial do temível Dr. Louison, anos antes de ser preso pelos crimes detalhados em “Lição de Anatomia”. No caso da escrita, eu sou mais “jardineiro” do que “arquiteto”, eu sempre parto de uma pequena ideia, de uma semente, que pode ser um enredo, um personagem ou uma cena, e depois vou construindo a história a partir disso, vendo ela crescer naturalmente. Por fim, claro, reescrevo e reescrevo e reescrevo o texto até seu estilo ficar de acordo com a voz do personagem escolhido e também com adequado à minha predileção por sonoridade.

Qual é o seu conselho para quem está começando a escrever agora?

Leia muito, muito mesmo. Ignore a cena literária e trabalhe pela literatura, indiferente do sucesso ou da exposição acontecer ou não. E não tenha medo do trabalho árduo, sobretudo do esforço braçal de se retornar ao texto diversas vezes para melhorá-lo. Por fim, um conselho que dou a mim mesmo sempre, tente não ser pretensioso e apenas contar uma boa história. Acho que há muitos romancistas hoje querendo encontrar o segredo da vida ou a grande reflexão pós-moderna sobre o homem despedaçado na sociedade contemporânea, o que só me faz cair no sono. Conte uma boa história, literatura é sobre isso. E sim, ela pode ter história, filosofia, espiritualidade, o que for, mas tem de, acima de tudo, contar uma boa história. Eu particularmente, abracei a literatura fantástica por isso, por essa leveza e esse interesse em contar uma história instigante.

No que você está trabalhando no momento?

Num romance chamado “Guanabara Real”, que deve ser publicado ainda em 2016. Trata-se de um steampunk policial escrito em parceria com Nikelen Witter e Andre Cordenonsi e editado pelo Artur Vecchi da Avec Editora. Além disso, agora que terminei o segundo romance de Brasiliana Steampunk, que deve ser publicado no próximo ano, tenho me dedicado a uma série de projetos transmídia envolvendo seus personagens, projetos que incluem um Suplemento Escolar, contos inéditos para o formato Kindle Unlimited, uma Recursão Retrofuturista para o RPG The Strange da New Order Editora, o audiolivro de Lição de Anatomia em parceria com o podcast “Caixa de Histórias” e o cardgame Cartas a Vapor, em parceria com a Potato Cat, jogo que lançaremos via financiamento coletivo em agosto próximo. Em boa parte desses projetos, tenho trabalhado com artistas magníficos como Bruno Accioly, Diego Cunha, Rodney Buchemi – o capista do romance –, Jessica Lang, Karl Felippe e Poliane Gicele, estes últimos os artistas que ilustram o conto desta edição da Trasgo. Além disso, minha parceria com o Grupo EPIC (http://goo.gl/4rLgG3) tem rendido muitos produtos legais, como camisetas, pôsteres, canecas e bustos colecionáveis.

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Onde podemos te encontrar pelos tubos invisíveis da internet? E quer deixar alguma mensagem para os leitores da Trasgo?

Estou nas redes sociais (Instagram, Facebook e Twitter) e também no e-mail brasilianasteampunk@gmail.com. Sobre a Trasgo, é uma honra ser publicado numa revista literária tão cuidadosa, seletiva e profissional. Aproveito para elogiar ao trabalho do editor e criador Rodrigo van Kampen. Tenho muito orgulho de apoiar a revista no Padrim e de indicar a amigos, alunos e leitores. Quanto aos leitores e leitoras, obrigado por acompanharem meu trabalho e por todo o carinho que tenho recebido como resposta a Brasiliana Steampunk. Literatura é um trabalho bem solitário e auto-centrado, o que às vezes é bem desgastante. Mas saber que estou escrevendo a vocês e que vocês tem se divertido com o grande elenco de Brasiliana Steampunk tanto quanto eu, tem sido de grande motivação.

Última pergunta: quem é você, Enéias Tavares, no universo de Brasiliana Steampunk?

Vou roubar a fórmula de Oscar Wilde para responder a essa pergunta: Beatriz de Almeia e Souza é quem eu penso que sou; Isaías Caminha é quem as pessoas pensam que eu sou; Antoine Louison, quem eu gostaria de ser – nesta ou em outra vida, talvez.

Um grande abraço a vocês, da Trasgo, e muito obrigado por esta entrevista. Foi bem divertida!

Author: Enrico Tuosto

Enrico Tuosto é escritor, revisor da Trasgo e rockstar fracassado. Também cuida das redes sociais e da newsletter da revista, mas o que ele gosta mesmo de fazer é jogar RPG. enricotuosto.tumblr.com/writing

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