— Tem certeza de que quer fazer um feitiço tão poderoso? — Perguntou a mulher. — Se o que procura é inspiração para seu trabalho, eu poderia fazer algo menos arriscado.
— Aceito os riscos. Quero o melhor, não importa qual o preço. — Insistiu. Estava lá porque aquela mulher era capaz de conseguir coisas que ninguém mais conseguiria, e não iria embora com menos. Não tinha medo dos fantasmas e demônios que assombram as histórias. Conhecia-os bem.
— Como quiser — concordou ela. Ao contrário das charlatonas idiotas que existiam aos montes pela cidade, sabia que magia séria sempre envolvia riscos, mas o cliente pagava bem e tinha noção do que estava fazendo.
Lembrava-se bem da primeira visita daquele homem. Na época ele era um rapaz universitário, com menos dinheiro para esbanjar e cheio de perguntas.
O escritor também se lembrava perfeitamente da bruxa. Quando jovem, buscava inspiração para suas histórias de horror em lugares supostamente assombrados. Morou em casas decadentes e isoladas, conheceu médiuns e videntes. Aquela mulher lhe proporcionara uma das experiências mais interessantes em seus anos de procura. Confiava em sua competência. Precisava dela.
— Estou pronto. Fale logo, o que é preciso?
— Primeiro, diga exatamente o que quer. Pense com cuidado. Preste atenção, escolha bem as palavras, seja exato.
O escritor sorriu. Escolher bem as palavras era sua principal atividade há mais de dez anos.
— Não seja presunçoso, lembre-se de que está aqui para conseguir palavras, afinal. Tenha cuidado.
— Para conseguir as palavras perfeitas. As mais intensas e envolventes. Um texto inesquecível, algo que faça o leitor se sentir incapaz de parar de ler. É isso que desejo. — Disse, irritado pelo aviso.
A bruxa olhou-o, franzindo as sobrancelhas.
— Pois que seja. Posso conseguir isso. Feche os olhos.
A bruxa o seguiu e notou sua ansiedade ao entrar no carro. As notas altas que recebera pelo serviço bastavam para custear sua vida sem luxos por meses. Era muito mais do que o valor habitual, e o sujeito tinha oferecido espontaneamente, mas ela se sentia incomodada.
— Eu cobro meu preço, mas a magia tem o dela também. — Avisou outra vez. — O dinheiro não pode pagar o preço da magia.
Mas os vidros do carro já estavam se fechando.
Enfiou a chave na porta de casa, com vontade de correr para o quarto e não sair da escrivaninha até terminar o trabalho. Embora acreditasse que nada poderia atrapalhá-lo durante sua sessão de escrita, preparou um café forte, esvaziou a bexiga e até tomou uma chuveirada rápida na água fria. Não queria ter que interromper-se para nada no mundo depois de se sentar diante do papel. Confiava no poder da bruxa, embora fosse uma velha chata com medo de usá-lo.
Abriu o livro sobre a escrivaninha. Não era seu. Nem era exatamente um livro, não tinha nenhuma palavra escrita, nem na capa nem nas grossas folhas brancas.
Respirou fundo, apertando a caneta entre os dedos, preparado pra ficar sentado ali até o amanhecer. Mesmo que a casa estivesse desmoronando, que a energia elétrica acabasse e bombas explodissem na rua, nada o faria parar.
A historia não era de todo original. Os personagens já figuravam em alguns de seus contos e romances, o que deixou o escritor ainda mais satisfeito. As palavras escapavam de seus dedos sem que precisasse — ou conseguisse — pensar nelas. Sendo autor das personagens, não parecia uma trapaça ter precisado da ajuda da bruxa para esta que, tinha certeza, seria a melhor de suas narrativas.
Histórias dentro de histórias. Personagens contando que foram escritos, mas falando de si como pessoas reais. Uma velha queimada viva. Uma garota violentada. Um homem deformado com corpo desproporcional que mal conseguia andar. Um garoto que todas as noites sonhava com a própria morte, sempre de forma diferente. Um rapaz imortalizado em forma de estátua que continuava consciente, com fome, com sede, sono e necessidades fisiológicas cada vez mais insuportáveis. Uma menina presa em um labirinto sem saída.
O escritor estava assustado. Aquilo soava cruel. O efeito gerado pela admissão que as histórias haviam sido escritas tornava-as reais demais. Personagens admitindo-se personagens, mas existindo fora das histórias nas quais foram criados, sofrendo por elas.
— Temos uma chance de vingança agora. O que vamos fazer, matá-lo? — Propôs o rapaz-estátua.
— Aquele covarde maldito vai pagar. Mas acho muito melhor que prove do próprio veneno. — Disse a velha coberta de queimaduras. — Que o autor vire personagem.
— Tenho ideias de uma história para ele. Por favor, quero começar. — Pediu a garota.
O escritor sorriu. Aquilo estava ficando muito divertido. Tinha uma pitada de humor somada à dureza do texto. O que quer que a bruxa tivesse feito para plantar essa ideia, estava funcionando maravilhosamente.
Quase podia se esquecer de que era apenas uma história, afinal, e aquele sofrimento todo não passava de literatura. Personagens não são pessoas, não são reais. Ele não era aquela figura sombria a quem acusavam de sádico, torturador e assassino.
Era?
Havia um personagem a mais no ambiente da conversa, revelado agora. O único que não fazia parte de histórias anteriores. Era o escritor, autor de todos os outros. Ele mesmo, portanto, inserido na história que estava escrevendo.
Começou a sentir-se mal com a raiva que era dirigida a seu eu personagem, como se este funcionasse como um boneco daqueles de vodu. Quis alterar um pouco o enredo, fazer o escritor-personagem argumentar em defesa própria, mas algo o impedia de inseri-lo na conversa.
— Nós nunca tivemos voz para você. Você nunca se importou conosco, nunca achou que fôssemos gente! Por que deveria ter chance de falar agora? Eu não quero te ouvir! — Diz a garota.
O escritor-personagem enfrenta seus olhos coléricos, incapaz de falar ou fugir.
O escritor real se arrepia. Quase pode ver a garota, sentir seu olhar. Imaginava-a claramente. Magra demais, aparentando catorze anos, embora tivesse alguns a mais, com os cabelos nos ombros, calçando chinelos. O escritor se lembra da história. Ela não merecia sofrer tanto.
— Eu fiquei com tanto medo naquele labirinto… Não tinha ninguém comigo, eu não sabia onde estava, e fazia tanto frio… — Disse a menina pequena, choramingando, como se quisesse alguém para pegá-la no colo e dizer que tudo ficaria bem. A garota mais velha abraça seus ombros.
— Era excitante pra você, descrever torturas? Seu desgraçado! Como seria ser espancado e amarrado a uma estaca para queimar? Como seria sentir as brasas em seus pés, saber que elas o devorarão e não ter como escapar? — Acusou a velha.
Ele sentia o medo, sim, o desespero da menina perdida, sentia o calor sufocante das brasas de uma fogueira imensa como se estivesse no meio dela…
— Você é um covarde nojento — continuou ela. — Sempre protegido, do outro lado da história… Achou que estaria seguro para sempre?
As acusações não paravam. Quantas personagens estavam ali? Dezenas? Mais de uma centena? O escritor-personagem estava acuado, enlouquecendo de medo e de horror, horror de si mesmo, de saber que as histórias de algum modo eram reais o bastante para causar isso, saber que o sofrimento não ficava no papel, fictício, nunca… Não aguentava mais ouvir as acusações, não podia suportar nenhuma palavra mais… Mas não tinha saída, precisava continuar.
O escritor real estava se assustando a sério. Aquela história era brilhante, irresistível, mais real e mais viva do que podia querer… E também mais do que o suportável para qualquer sanidade mental. A bruxa o havia colocado em uma pegadinha? O que aconteceria com ele no final daquele texto? Não com seu eu-personagem, não se importava com isso, mas será que ele corria algum risco?
Nunca achou que fosse odiar não conseguir parar de escrever uma história excelente. Nunca achou que fosse querer interromper uma escrita fluindo bem. Mas estava acontecendo.
— Gostaria de pelo menos agradecer a chance, sabe? Fique sabendo que é um prazer estar em igualdade de posição com você. Nós vamos escrever sua história agora. Aliás, você vai nos fazer esse favor, já que está com a caneta na mão. — Disse a garota. Não se dirigiu ao escritor-personagem.
O escritor tentou desesperadamente tirar a caneta do papel, mas seu corpo não o obedecia. Sua consciência talvez não estivesse mais exatamente — ou apenas — nele. Não sabia mais o que pertencia ao papel e o que era vida real.
— O que está no papel também é real, idiota, será que ainda não entendeu? Essa é a nossa história, escritor. Você vai adorar.