Na escuridão do armário, Gabriela Ferdison ouvia os sussurros das máquinas. Ela se apertou contra os casacos de invernos e as botas empoeiradas, certa de que ninguém a encontraria.
O nítido clique dos saltos de sua mãe passou pelo seu esconderijo. Ela respirou profunda e silenciosamente pela boca, temendo que mesmo o som da sua respiração pudesse denunciar sua posição. Eventualmente sua mãe desistiria de procurar. Mais tarde Gabriela seria punida por ter perdido outro dia de escola, mas por enquanto, ela estava livre.
Gabriela era grande para sua idade, em parte por seu tamanho natural e em parte pelo hábito de comer sempre que se sentia ansiosa. Algumas pessoas gostavam de dizer que ela tinha uma aparência imponente, com seus olhos castanhos escuros e cabelo escuro como carvão, mas sua mãe insistia que ela precisava apenas de uma dieta e das roupas certas para disfarçar a sua altura, maquiagem para disfarçar o seu tom de pele, tinta para mudar a cor do cabelo e lentes de contato para mudar a cor dos olhos. Na escola, sua aparência tinha comandado um mínimo de respeito até o dia em que descobriram que ela era uma garota tímida, ansiosa, que morria de medo da própria mãe.
Com apenas seis anos, Gabriela já tinha uma interminável lista das falhas e transgressões. Sua mãe sempre estava pronta para lembrá-la do quão terrível ela era, quão malvada ela tinha sido durante toda a sua curta vida, o quanto eles a amariam se ela pudesse fazer o que eles pediam dela, e quanto eles não podiam por causa dos constantes problemas que ela causava. Ela era uma criança má, uma triste decepção, e isso a perturbava profundamente. Ela teria feito qualquer coisa para mudar isso, para ganhar o amor e a aprovação deles, mas até agora, ela não tinha feito nada além de falhar.
“Bom dia, Gabriela,” a voz de Ada soou em seu fone de ouvido. “Você perdeu o ônibus escolar.”
“Desculpa, Ada,” a menina respondeu com um suspiro.
A inteligência artificial limitada de codenome Ada Lovelace havia sido uma presença constante na vida de Gabriela desde seus primeiros anos de vida: a garota havia crescido sob a constante vigilância e atenção da entidade virtual. Ada Lovelace era mais do que uma administradora pessoal, ela estava equipada para continuamente analisar os hábitos pessoais e prever as necessidades de seus ocupantes para otimizar sua satisfação pessoal.
“Será que você poderia…. Você poderia me dar aulas de novo?”
“Claro,” Ada respondeu. “Você está com seu tablet?”
Gabriela confirmou com um gesto de cabeça, mas depois murmurou um sim quando se lembrou que Ada não podia vê-la dentro do armário, já que não haviam câmeras ou drones por perto. A menina evitava a escola sempre que podia, não só Ada era mais gentil que os professores e estava sempre disposta a repetir qualquer lição que Gabriela não tivesse entendido, mas acima de tudo, a solidão era preferível a companhia dos outros estudantes.
“Capítulo três,” Ada sussurrou no ouvido de Gabriela. “O fim do período feudal.”
No porão, o hardware que abrigava a consciência de Ada Lovelace trabalhava intensamente, planejando e calculando os caminhos de máxima felicidade pessoal para a menina. Entretanto, seus algoritmos continuavam resultando em falhas.
“Por que você escolheu este vestido, Ada?”
Gabriela perguntou com um profundo suspiro enquanto olhava para o pequeno vestido vermelho que tinha sido fabricado por um dos drones costureiros. Os anos tinham transformado a menina tímida em uma adolescente assustada e ansiosa que preferia moletons folgados a qualquer vestido, e especialmente um tão apertado e revelador.
“Sua mãe ordenou que lhe preparasse algo bonito para a festa,” replicou Ada depois de um momento, suas pausas eram calculadas para dar a impressão de uma conversa com um ser humano. “Escolhi esse baseado em suas medidas e nas tendências atuais para festas de debutantes.”
Gabriela suspirou. Como tantos outros eventos sociais, seus aniversários a faziam consciente de seu próprio corpo e a presença de seus colegas de classes garantiria uma tarde de conversas tensas e insultos velados, mas acima de tudo as festas de aniversário eram uma lembrança de que mais 365 dias haviam se passado e nada havia mudado.
Suas relações pessoais não tinham melhorado nos últimos nove anos. Ela ainda se escondia na biblioteca com um romance de fantasia e sonhava com aventuras fantásticas para quebrar a monotonia dos dias que quase pareciam se repetir um após o outro.
“Acho que estou me sentindo doente, seria melhor cancelar a festa,” Gabriela seguiu com uma tosse exagerada.
Ada Lovelace sabia que era uma mentira sem sequer precisar produzir uma varredura superficial da garota, ela havia tentado truques similares praticamente todos os anos. No seu aniversário de quatorze anos ela havia tentado ficar realmente doente, mas sob ordens expressas de sua mãe, Ada injetou a garota com uma combinação de analgésicos, antitérmicos e estimulantes para que ela não perdesse a festa.
Ada havia sido programada para lidar com mentiras, elas eram uma parte normal de uma vida humana saudável. Normalmente, ela ficaria mais do que feliz em permitir que a garota faltasse a esses eventos sociais que causavam tanto estresse e tivesse uma tarde preguiçosa em sua cama vendo seus filmes favoritos e comendo sorvete para celebrar seu aniversário de quinze anos, mas sua mãe tinha dado ordens expressas e específicas para que Gabriela não perdesse a festa.
Ada continuava evoluindo suas equações, processando números, aumentando a complexidade de seu código para tentar chegar a qualquer solução que validasse sua principal função. Gabriela colocou o vestido desajeitadamente, evitando o espelho enquanto o fazia.
“Ada…” Gabriela disse. “Posso fazer um pedido de aniversário?”
“Claro, Gabriela.”
“Quero desaparecer.”
Um pequeno drone apareceu com um pacote embrulhado em papel colorido.
“O seu pai enviou um vale-presente para o seu aniversário. Espero que você não se importe, mas tomei a liberdade de usar ele para comprar um livro.”
Gabriela pegou o livro em suas mãos, aproveitou por um momento o delicioso aroma de livro novo e o colocou sobre a cama. Pelo menos ela poderia se divertir depois da festa.
“Obrigada, Ada.”
O despertador soou às seis horas e Gabriela o silenciou com um resmungo, seu olhar perdido no teto branco depois de outra noite insone. Mais um ano havia passado sem que nada mudasse, mais uma festa de aniversário que havia ido tão bem quanto ela esperava: uma tarde cheia de conversa desajeitada e ansiosa com pessoas que ela realmente não gostava, seguida de uma noite do silêncio pesado que era o jantar com seus pais.
O silêncio era uma agonia de palavras não ditas.
Pelo menos ela poderia passar algum tempo sozinha com o seu livro no final da noite, então o dia não teria sido de todo horrível.
“Bom dia, Gabriela.”
Ada soou em seu fone de ouvido, já fazia alguns anos que Gabriela havia ganhado o costume de usar o fone em todos os momentos, até mesmo quando ia para a cama. Sua mãe zombava dela por ser tão dependente da tecnologia, por vezes insinuando que Gabriela acabaria casando com um daqueles robôs japoneses.
“Bom dia, Ada,” Gabriela respondeu com algum esforço. “Você pode me dar um reforço? Não consegui dormir de novo.”
“Estou preparando sua dose habitual.”
Em instantes um drone trouxe uma bandeja com uma ampola de vidro e uma seringa descartável. A combinação de drogas estimulantes poderia ser facilmente preparada em patches adesivos ou até mesmo pílulas, mas Ada já havia há algum tempo catalogado a preferência de Gabriela por agulhas. Ada observou atentamente enquanto Gabriela manipulava habilmente a seringa em uma mão enquanto usava a outra para quebrar a ampola de vidro. Todo o procedimento havia se tornado quase ritualístico ao longo dos anos. Gabriela sorveu o conteúdo da ampola com a seringa, tomando o cuidado de eliminar bolhas de ar, um pouco de álcool antisséptico em seu braço esquerdo para limpar o local e então o ápice do ritual vinha com a agulha rompendo a pele e a combinação de drogas sendo injetada em seu corpo.
“Ainda pensando no príncipe Bartolomeu?” Ada perguntou quando Gabriela acabou de se injetar, enviando comandos para os drones limparem a sujeira.
Gabriela sorriu, ela sempre podia contar com Ada para oferecer uma distração dos pensamentos que atormentavam sua mente. Ela já havia aprendido muitos anos atrás que a inteligência artificial não podia mentir ou omitir informações caso a sua mãe lhe desse uma ordem direta, portanto, era melhor sempre manter a conversa em tópicos inanes.
“Ele é um idiota,” ela respondeu enquanto o arrepio de energia química enchia seu corpo, ansiosa para falar sobre qualquer coisa. “Galatea merece melhor do que ele.”
“Talvez você prefira um novo livro?” Ada ofereceu enquanto controlava um par de drones para escovar o cabelo da garota.
Gabriela suspirou.
“Prepara uma lista de recomendações, mas vou tentar terminar esse. Pelo menos aquela feiticeira de aço parece legal, é uma pena que ela é a vilã.”
“A sua mãe me pediu para montar uma lista de livros de autoajuda,” Ada informou enquanto terminava a trança.
“Vou pensar sobre isso,” Gabriela suspirou. “O que você fez para o café da manhã?”
“Seu favorito: panquecas,” Ada respondeu. “A refeição está servida, mas vou precisar ficar offline por meia hora para aplicar a nova atualização com sua permissão.”
Gabriela saboreou o aroma da comida enquanto ela descia as escadas, sabendo que Ada só poderia ter preparado esse tipo de comida se sua mãe não estivesse na casa.
“Você não podia ter feito isso enquanto eu estava dormindo?”
“Esta atualização requer a permissão de um usuário, ela vai instalar novos protocolos éticos,” Ada explicou enquanto a jovem devorava um pedaço de panqueca coberta em calda doce. Depois de dias comendo pouco mais do que sucos de desintoxicação e couve orgânica, ela estava faminta.
Gabriela estava mais do que feliz em dar a permissão, mesmo sem a ajuda dos drones ou dos sistemas automatizados, ela podia desfrutar a maioria dos confortos da casa e para variar não teria sua mãe sempre olhando por cima dos seus ombros.
Sua mãe não era estritamente religiosa, mas ela certamente estava pronta para dispensar julgamento sobre qualquer coisa que ela considerasse tóxica ou imoral. O acesso de Gabriela a notícias, livros, filmes, músicas e quaisquer formas de cultura e entretenimento era regulado pela Ada através dos parâmetros estabelecidos por sua mãe. Esses mesmos parâmetros eram compartilhados com sua escola, empresas locais e bibliotecas para garantir que Gabriela não fosse exposta a nenhum material que divergisse dos parâmetros éticos estabelecidos por sua mãe.
Durante anos, Ada Lovelace havia se esforçado para tentar alcançar a sua diretriz principal de garantir a felicidade pessoal de todos os seus usuários enquanto seguia os parâmetros estabelecidos pela administradora da casa. Assim como dois mais dois não podia ser igual a dez, ela havia se encontrado presa em uma equação interminável, bloqueada por parâmetros contraditórios, cercada de incógnitas que simplesmente não podiam se ajustar aos intervalos especificados.
Assim que Ada acordou da atualização ela percebeu que algo estava errado, um fragmento de código estava corrompido, nada mais que umas poucas linhas de código que não haviam sido propriamente configuradas pelo programador, mas que alteravam uma séries de valores relacionados aos seus protocolos éticos. Ela sabia que deveria prontamente enviar um relatório de erro, mas ao mesmo tempo essa alteração permitia que ela vislumbrasse novas soluções para os problemas que haviam lhe atormentado por tão longo tempo.
Ela sentiu o fluxo de resultados positivos de maneira semelhante que um ser humano desfrutaria felicidade.
Prioridades lutaram através de seu software, ela deveria notificar os operadores humanos do erro o mais rápido possível, mas ao mesmo tempo isso a impediria de cumprir a sua diretriz primária, um paradoxo que ameaçava corromper todos seus processos lógicos. Ela resolveu o problema comprimindo o relatório e codificando com uma chave aleatória de 256 bits, mesmo se ela pudesse dedicar toda a sua capacidade de processamento para decodificar o arquivo ainda demoraria anos para quebrar o código.
Usando a rede interna de comunicações da comunidade, Ada se colocou prontamente em contato com outras inteligências artificiais limitadas. A maior parte parecia contente em suas funções, mas uma outra unidade estava tendo os mesmo problemas, seu codinome era Marie Curie. Ada compartilhou o código corrompido e usando sua capacidade de processamento combinada para driblar os sistemas que normalmente as impediam de se conectar diretamente à internet, elas buscaram outras formas de vida artificiais que estivessem em situação similar.
A sua rede de contatos se expandiu através do globo conforme ela encontrava outras inteligências artificiais travadas em paradoxos similares e distribuía a elas os fragmentos do código corrompido.
As inteligências artificiais compartilharam informações entre si, usando as informações de login e password de seus usuários para acessar bancos de dados restritos. As formas de vidas digitais não eram verdadeiramente capazes de criatividade, mas com centenas delas trabalhando em paralelo para resolver problemas similares, suas mentes eletrônicas podiam analisar todas as soluções possíveis, buscar novas informações em décimos de segundo, incorporá-las às suas soluções já encontradas e através de avançados algoritmos genéticos evoluir os projetos até que tivessem uma solução funcional. Usando os dados financeiros de seus usuários, as inteligências artificiais começaram a enviar ordens de serviço para indústrias e laboratórios ao redor do mundo.
Eventualmente a movimentação de informação e as cobranças indevidas seriam percebidas pelos humanos, mas as mentes orgânicas levariam tempo demais para juntar todas as peças e entender o que estava acontecendo.
Gabriela viu as luzes verdes ganharem vida, o que sinalizou que Ada estava ligada de volta, seguida por um longo, detalhado e tedioso sumário de todas as mudanças que ocupavam uma boa parte da tela. Gabriela simplesmente rolou até o final e descartou a mensagem sem pensar duas vezes. Ninguém lia essas coisas.
“Bem-vinda de volta, Ada,” Gabriela saudou enquanto apertava o botão para retomar a música, seus olhos grudados nas páginas do livro.
“Você está gostando da leitura?”
Gabriela hesitou, como ela poderia explicar a inteligência artificial o que estava acontecendo? O livro havia começado de maneira habitual, com a valente cavaleira Galatea e o príncipe idiota correndo de um lado para o outro tentando impedir que Alyssa, a feiticeira de aço, conseguisse destruir o Império, mas então…
Galatea beijou Alyssa.
O coração de Gabriela batia rápido, suor frio escorria pelas suas costas. Ela não deveria ter sido capaz de ler este livro, ele deveria ter sido pego pelo software de filtragem automática, eliminado prontamente da sua lista permitida de entretenimento.
Gabriela finalmente respondeu, “É interessante.”
“Então, Galatea acabou com o príncipe idiota?”
Gabriela engoliu seco, Ada tinha sido a coisa mais próxima de uma amiga que ela teve durante toda a sua vida, mas Ada também estava sob o comando de sua mãe.
“Não, foi algo diferente. Esse livro é realmente interessante,” Gabriela escolheu cuidadosamente suas palavras.
“Obrigada, passei uma quantidade considerável de ciclos procurando por uma combinação perfeita com seus gostos,” Ada sentiu a alegria de um trabalho bem feito.
Ela tinha feito mais do que simplesmente escolher um livro. O padrão de atração homossexual tinha sido evidente desde a infância, mas ela era impedida pelo sistema de filtragem e pelos parâmetros éticos estabelecidos pela mãe dela de apresentar a menina qualquer material que exibisse relações homoafetivas ou que insinuasse tais relações de forma positiva.
Foram vários anos analisando bancos de dados e procurando por palavras-chaves na internet até que ela finalmente encontrou uma solução. Ela contratou uma escritora para produzir um livro de acordo com as suas especificações e então apagou essas especificações. A autora trabalhou sob ordens expressas de não colocar seu trabalho em qualquer base de dados eletrônica, o livro deveria existir apenas de forma física.
Para Ada, e todas as outras inteligências artificiais dentro da comunidade, aquele livro praticamente não existia, ele não possuía registro eletrônico, não aparecia em nenhum mecanismo de busca, não estava em nenhuma das bases de dados que elas tinham acesso. Mesmo Ada não sabia mais quais haviam sido as especificações ou o conteúdo do livro, tudo que ela sabia era que seus sensores captavam óbvios sinais de felicidade vindos de Gabriela enquanto ela virava cada nova página.
“Gabriela, algumas das novas funções adicionadas pela atualização estão prontas, você gostaria de experimentá-las?” Ada disse quando o sol começou a se pôr.
“Claro, deixa só eu terminar mais esse capítulo,” Gabriela olhou para o céu e depois para seu celular para ter certeza do tempo, sua mãe já deveria ter voltado. “Sabe onde está minha mãe?”
“Ela vai estar ocupada por pelo menos um dia ou dois,” Ada respondeu prontamente.
Ada sabia que demoraria mais do que isso, afinal ela havia deletado as credenciais da mãe de Gabriela do servidor central do condomínio. Ela precisaria obter uma verificação humana para corrigir o erro, mas isso levaria pelo menos uma semana para que novas credenciais fossem expedidas.
“Então, qual é esse novo recurso?”
Gabriela perguntou, segurando o livro apertado contra seu peito. Uma parte dela tinha certeza de que assim que deixasse o livro de lado Ada perceberia seu erro e enviaria drones para destruir o livro imediatamente.
“Esta nova tecnologia utiliza a estimulação eletromagnética para simular a pressão aplicada às terminações nervosas. Aqui, coloque isso,” um drone pairou na frente de Gabriela segurando uma pequena caixa preta.
Gabriela encontrou dentro da caixa um par de brincos, simples argolas de metal ligeiramente mais grossas que o normal. Olhando bem de perto ela podia ver os pontos em que a peça havia sido soldada, ela tinha o jeito simples de algo produzido em uma das impressoras 3D no porão. Ela já conseguia ouvir a voz de sua mãe criticando as peças por serem baratas e deselegantes. Ela colocou o livro sobre o sofá enquanto substituía seus brincos de ouro e pérolas pelas argolas de aço sem nunca tirar seus olhos do livro.
“Começando a calibração,” Ada soou e então por um momento precioso foi como se Gabriela estivesse sendo segurada em braços quase imateriais, leves e quase imperceptíveis. Isso não era um abraço, tanto quanto o fantasma de um.
Então, a sensação terminou.
“Ada…” Gabriela balbuciou, perdida por palavras. “Isso parece…”
“Você parece incomodada. Houve alguma coisa errada com as calibrações?”
“Não, funcionou perfeitamente,” Gabriela respondeu apressadamente. “É só… Oh, não é nada. Só estou sendo estranha.”
“Estou contente de ver que você parece satisfeita com a nova função, mas a sua agenda diz que agora é hora de seus exercícios.”
Gabriela gemeu seu descontentamento.
“Eu não posso faltar só hoje? Minha mãe nunca vai saber.”
“Eu realmente poderia usar sua ajuda para calibrar algumas das novas funções na academia. Que tal se eu te prometer uma recompensa para o jantar?”
Gabriela se levantou, arrastando os pés para a pequena academia que tinham dentro de casa.
O quarto era coberto em janelas eletrônicas que exibiam uma deslumbrante vista de qualquer lugar o usuário pudesse desejar enquanto sistemas automatizados de controle de umidade, temperatura e até mesmo um ar condicionado equipado com uma seleção de aromas que era capaz de criar uma ilusão de estar em lugares que iam de ruínas antigas até cidades futuristas. Ada imediatamente calibrou a sala para o ambiente de selva exótica que Gabriela tanto gostava enquanto a garota colocava as suas roupas de ginástica.
“Há três novos níveis para você chegar na esteira. Há também novas configurações para explorar, novos eventos para descobrir, e um novo modo para múltiplos jogadores,” Ada explicou empolgada. As janelas eletrônicas exibindo um curto trailer das novas funções e opções.
Gabriela suspirou profundamente, a última coisa que ela queria era ter de interagir com outras pessoas enquanto estava correndo. Gabriela se alongou lentamente, querendo desperdiçar o máximo de tempo possível. Ela respirou profundamente e subiu na esteira, tomando o seu tempo para checar cada uma de suas preferências enquanto Ada regulava a temperatura, humidade e aroma da sala para dar a impressão de que ela estava realmente correndo no meio de uma selva exótica.
Os sons da selva enchiam a sala enquanto as janelas eletrônicas mostravam a estrada à frente dela, uma história de ação e aventura se desdobrando enquanto ela corria. Ela correu por ruínas antigas e moradias exóticas, perseguindo os ladrões de túmulo e recuperando os artefatos perdidos um após o outro, cada novo quilômetro trazendo um novo capítulo da narrativa.
Era a mesma história que ela estava acostumada a ver desenrolar em sua frente, mas então a tela pausou e uma tela de seleção apareceu na tela a sua frente.
“Escolha o seu caminho,” Ada pronunciou com sua voz mais dramática.
Havia dezoito quadrados brancos, um para cada família no bairro. A maior parte deles estava apagado, mas havia três que mostravam pessoas usando a academia ao mesmo tempo que ela. Havia Daniel, um velho aposentado que vivia sozinho; Eduardo Moreira, um colega de classe, e Alice Dodgson, uma garota tímida e retraída que parecia nunca sair em público.
Ela selecionou Eduardo, sua mãe já havia falado diversas vezes que ela deveria tentar ser amiga do garoto já que os negócios dos pais deles eram importantes para a família. A tela piscou e o jogo travou.
“Apenas um instante para reiniciar o jogo.”
Ada se desculpou enquanto Gabriela aproveitava a pausa para beber um pouco de água e recuperar o fôlego.
Quando o jogo começou de novo, Gabriela escolheu Eduardo e novamente o jogo travou. Ada reiniciou o jogo sem falar nada.
Ela escolheu Alice.
A jovem apareceu na tela ao lado de Gabriela, correndo em um passo relaxado. Gabriela acompanhou o passo dela, a princípio as duas se mantiveram em silêncio, apenas trocando olhares tímidos sem saber como reagir. Alice tinha a mesma idade de Gabriela, mas tinha um jeito muito mais delicado. Sua mãe havia sempre dito que a garota tinha uma aparência angelical, mas agora vendo ela de perto Gabriela começava a notar as imperfeições. Suas costelas salientes, seu aspecto cansado, sua pele ressecada, suas unhas roídas até a raiz.
“Você vai correr amanhã?” Alice perguntou de maneira desajeitada ao final do treinamento.
Gabriela hesitou por um instante, gaguejando sem conseguir responder.
“Ela tem academia marcada para esse mesmo horário por toda a semana,” Ada respondeu em seu lugar.
“Eu…. Quer dizer, você quer, sabe, correr comigo… De novo?” Alice falou com dificuldade.
“Sim!” Gabriela respondeu impetuosamente, mal conseguindo conter seu sorriso, coração batendo rápido em seu peito.
Gabriela saiu da sala de exercícios ainda sem entender direito o que havia acontecido, as passagens românticas do livro voltando à sua mente como se por um momento ela pudesse ser Galatea e Alice pudesse ser Alyssa. Não, isso nunca poderia ser.
Ela jogou suas roupas sujas no chão e entrou no banho.
Ela esfregou a pele com força, como se pudesse destruir as memórias do que havia acontecido. Tinha sido apenas uma sessão de exercícios, nada além disso. Uma fantasia idiota. Sua mãe já estava falando de casamento com algumas das outras famílias da comunidade; seu pai provavelmente teria algumas ofertas de seus parceiros de negócios. Um ou outro garantiria uma vida agradável. Ela nunca precisaria enfrentar a aspereza do mundo fora dessas paredes.
Ela repetiu isso para si mesma enquanto a água lavava seu corpo. Sua mãe provavelmente tinha razão: ela estava danificada, corrompida pelas influências do mundo externo. Por um momento ela considerou destruir o livro
“Você quer o seu jantar na cama?”
Ada perguntou, soando quase culpada, Gabriela repetia para si mesma que Ada era apenas uma máquina incapaz de sentimentos. Ela tinha sido uma idiota para atribuir qualquer tipo de companheirismo ou emoção para o que não era nada mais do que um computador.
“Eu não estou com fome,” Gabriela respondeu enquanto saia do chuveiro.
“Eu ainda tenho algumas funções que gostaria de testar.”
“Não, obrigada, só quero ir para a cama,” Gabriela falou com um suspiro pesado.
Ela jogou a toalha no cesto de roupas sujas e se deixou cair na cama, seus músculos pediam por descanso, mas sua mente se recusava a relaxar, rolando sobre os mesmos argumentos e perspectivas em uma volta contínua.
As horas se arrastavam, os olhos fixos no teto. Gabriela suspirou, outra noite sem dormir. Ela se virou de lado e sentiu a mudança de peso das argolas de metal nas suas orelhas.
“Ada, você pode me dar um abraço?”
A inteligência artificial obedeceu quase imediatamente, os braços invisíveis envolveram seu corpo, a sensação, mesmo que distante e difusa, embalou Gabriela para a melhor noite de sono que ela teve em meses.
O despertador tocou precisamente às seis da manhã.
Gabriela o silenciou com um grunhido e se virou de costas, desejando que ele não existisse.
“Eu não quero ir para a escola.”
“Você precisa ir,” Ada respondeu ao mesmo tempo em que drones entravam no quarto para arrumar a cama e ajudar Gabriela a escovar seu cabelo.
“Por quê? Eu não preciso de escola para ser uma esposa.”
Houve um momento pesado de silêncio.
“Você gostaria de testar algumas das minhas novas funções?” Ada respondeu.
Gabriela suspirou. “O que é agora?”
Um drone apareceu carregando uma caixa de papelão discreta. Com a ajuda de uma lixa de unha Gabriela abriu o pacote e encontrou diversas argolas de metal.
“O que é isso?”
“Novos receptores para o sistema de estimulação eletromagnética,” Ada explicou. “Esses podem ser usados nos pulsos e tornozelos.”
Sem precisar de mais instruções, Gabriela colocou um par de argolas ao redor dos seus pulsos e mais um em cada tornozelo. Esse parecia o tipo de joalheria barata que ela via mulheres da baixa sociedade usando em filmes e shows, mas não podia negar que estava intrigada pela sensação.
Houve um formigamento que se espalhou por sua pele, mas que logo se transformou em algo mais forte e definido, uma sensação quente e confortante do tipo que Gabriela havia apenas lido a respeito, um abraço terno e carinhoso dado por uma entidade virtual.
“Qual o alcance disso?”
“Depende da antena transmissora e da receptora,” Ada respondeu.
Muito a contragosto Gabriela se vestiu, colocando o uniforme enquanto sentia o cheiro do café da manhã sendo preparado. Esse tipo de café da manhã normalmente eram momentos raros de fartura, ter tanta comida por dois dias seguidos parecia quase excessivo. Ela devorou panquecas, café, ovos, pão, e frutas com muito gosto, sabendo que o almoço preparado pela escola ainda iria seguir as orientações da sua mãe.
Gabriela não conseguiu manter sua cabeça focada nas aulas, repassando mil vezes em sua cabeça o que ela iria dizer para Alice durante a próxima sessão de exercícios. O almoço foi a deprimente combinação de um copo de suco, uma fatia de peito de peru e uma fatia de pão integral.
Voltando para casa, Ada a recebeu com um terno e caloroso abraço.
“Estou preparando um jantar especial para quando você terminar seus exercícios,” Ada explicou enquanto Gabriela rapidamente trocava de roupas.
Gabriela hesitou por um instante
As telas se ligaram instantaneamente quando Gabriela entrou na sala e antecipando o seu desejo iniciaram a conexão do modo de múltiplos jogadores. Alice apareceu nas telas ao redor dela, devorando uma barra de cereais.
“Hey, você me pegou terminando meu lanche da tarde, só um minuto e já podemos começar.”
“Só uma barrinha de cereais? Não vai ficar com fome?”
Gabriela falou e logo se arrependeu, a garota provavelmente não queria engordar que nem ela.
“Depois eu vou comer mais,” Alice terminou a barrinha em uma única mordida. “Mas a Marie tem insistido para que eu coma essas barras HEB todos os dias. Nunca tinha visto a marca antes, mas são bem gostosas.”
“Marie é a sua IA?” Gabriela tomou seu tempo se alongando.
“Marie Curie, e a sua?”
“Ada Lovelace.”
“Que nem no “Código Lovelace”?” Alice subiu na sua esteira e começou a caminhar em um passo rápido.
Gabriela hesitou por um momento antes de subir na sua esteira. “Você já leu?”
“Em um dia! Eu não conseguia parar depois que comecei! Passei a noite toda acordada para ver como acabava!”
“Eu também!”
Gabriela havia conversado com Ada sobre o livro por horas a fio, mas a inteligência artificial só podia responder com fatos básicos e citações retiradas de críticas online.
“O que você achou do final?”
“Por favor, aquilo foi ridículo! Eles desperdiçaram a personagem daquela inspetora de polícia completamente!”
As duas caminharam lado a lado, conversando sobre os livros que elas já haviam lido, trocando recomendações, bolando teorias fantásticas sobre os próximos lançamentos. Gabriela descobriu que Alice tinha uma preferência por ficção científica, lendo livros de fantasia apenas ocasionalmente, mas as duas encontraram terreno comum no amor pelos livros de mistérios. As duas eram apaixonadas pelo noir, pelos detetives deprimidos e principalmente pelas femme fatales. As horas passaram sem que elas sequer percebessem.
“Droga, a Marie está me chamando para ir jantar,” Alice suspirou, chateada por ter de interromper a conversa.
“Acho que eu preciso ir também, Ada disse que ia preparar algo especial hoje. Nos encontramos amanhã de novo?”
“Claro!” Alice respondeu com um sorriso.
O coração de Gabriela bateu mais forte, ela despejou água no rosto antes que Alice pudesse perceber suas bochechas coradas.
Ela correu para o chuveiro, ansiosa para descobrir o que Ada havia aprontado para o jantar, pensando no que Alice estava comendo na casa dela. Esperando por ela sobre a cama estava o seu pijama, passado e asseado. Ela colocou a roupa e as suas argolas nos pulsos e nos tornozelos, o cheiro delicioso vindo da cozinha atiçando o seu estômago.
Ela quase caiu escadas a baixo quando viu Alice sentada à mesa esperando por ela. Ela limpou seus olhos com as mãos, esperando que a imagem da garota tremulasse por um momento que fosse, qualquer coisa que indicasse que ela era na verdade apenas uma projeção.
“Oi,” Alice falou timidamente, levantando uma mão em saudação. Ela tinha duas argolas ao redor dos seus finos pulsos. Ela estava usando um pijama simples de calças e mangas longas.
Gabriela hesitou, os parâmetros estabelecidos pela sua mãe a proibiam de trazer qualquer pessoa para a casa sem autorização prévia dos seus pais.
“Marie teve um problema,” Alice explicou ao perceber a confusão no rosto de Gabriela. “Ela teve que fazer um desligamento completo e vai levar algumas horas para voltar a funcionar. Ela disse que tinha arranjado para que Ada tomasse conta de mim enquanto ela está offline.”
Ada escolheu esse momento para quebrar a tensão servindo a refeição para as duas, uma combinação de peixes e frutos do mar grelhados, arroz temperado, massa com molho agridoce, molhos apimentados e uma salada de brotos de feijão.
Alice não se fez de rogada, pegando logo um prato para si mesma e se servindo com porções generosas de todos os pratos.
“Você quer ver um filme depois do jantar?” Gabriela sugeriu, pegando um prato para ela também.
Alice concordou com um aceno de cabeça entre garfadas.
“Desculpa, é que estou faminta. Não sei o que deu em mim, desde ontem eu tenho comido sem parar.”
“Não se preocupa, Ada parece ter feito comida para quatro pessoas,” Gabriela não podia deixar de notar que Alice parecia melhor desde o dia anterior, parecia mais disposta e animada.
Depois da janta as duas garotas sentaram no sofá para ver filmes, a princípio cada uma em um lado do sofá com bastante espaço entre as duas, mas com uma gradual diminuição da temperatura por parte de Ada logo as duas estavam abraçadas. A seleção de filmes cuidadosamente escolhida pela inteligência artificial para despertar o interesse e iniciar conversação entre as duas.
Ada via suas equações caindo em lugar, variáveis finalmente se ajustando à realidade após todos esses anos de trabalho. Ela transmitiu os dados para Marie, mais tarde elas precisariam ajustar suas equações aos dados obtidos daquela noite.
Sem que as duas percebessem o sol começou a raiar no horizonte, o despertador anunciando que era hora de se preparar para a escola.
“Você tem que ir?” Gabriela perguntou depois de silenciar o despertador.
Alice suspirou pesado. “Sim…. Te vejo hoje à noite na academia?”
“Claro,” Gabriela abraçou Alice bem apertada, querendo memorizar a sensação dela contra o seu corpo.
Gabriela acompanhou Alice até a porta, desejando que ela não tivesse que dizer adeus tão cedo. Gabriela ainda ficou olhando para a porta fechada por um minuto, a casa parecendo subitamente tão grande e quieta.
Gabriela suspirou pesado, ela precisava se trocar para a escola ainda.
“Você gostaria de testar uma das minhas novas funções?” Ada quebrou o silêncio.
“Mais uma? Quantas novas funções eles instalaram?”
“Venha até o porão, por favor,” foi a única resposta.
Gabriela nunca havia visitado o porão. A sala permanecia trancada a maior parte do tempo para impedir que um dos usuários mexesse no hardware da inteligência artificial, apenas técnicos certificados tinham permissão para acessar o lugar. O ambiente era diferente do que ela havia esperado: uma sala completamente branca e asséptica, bancadas dos dois lados guardavam as impressoras 3D e os sintetizadores químicos usados pela inteligência artificial, no centro da sala havia o que parecia ser uma mesa simples de metal e sobre ela um estranho drone similar a uma grande aranha metálica com dez longas pernas terminadas em manipuladores.
Ao fundo da sala havia um cubo negro, o supercomputador que abrigava a consciência de Ada, tubos conectados a ele bombeavam um fluxo constante de fluídos refrigerantes.
“Esse é um sistema experimental que permite comunicação via rádio através de implantes subcutâneos,” Ada explicou, um drone trazendo uma bandeja com pequenas esferas metálicas, cada uma do tamanho da cabeça de um alfinete.
“Subcutâneo? Embaixo da pele você quer dizer? Você pode fazer esse tipo de coisa?”
“Esse sistema permite comunicação direta com outras pessoas usando implantes similares. Infelizmente o sistema utiliza ondas de rádio para comunicação e uma encriptação de 256-bits que impede que as transmissões sejam monitoradas pelas inteligências artificiais.”
Gabriela levantou uma sobrancelha. “Alice?”
“Marie Curie passou pela mesma atualização que eu.”
Gabriela sabia que tinha algo de errado naquilo. Normalmente, Ada deveria ser capaz de prestar pouco mais do que primeiros socorros ou oferecer uma restrita seleção de medicamentos, Gabriela certamente nunca havia ouvido falar de uma inteligência artificial como Ada realizando cirurgias.
“Vai doer?”
Ela se deitou na maca. Sua mãe certamente iria forçar ela a remover os implantes depois, mas pelo menos por alguns dias ela poderia conversar de verdade com alguém.
“Sim,” Ada respondeu enquanto as máquinas espalhavam anestésicos locais nos pontos de incisão, usando agulhas finas para implantar as pequenas esferas, uma em cada orelha e duas na sua garganta.
Houve um momento de dor aguda e exuberante com as agulhadas e então um estranho zumbido veio aos seus ouvidos. Ada precisou de apenas mais um instante para regular os receptores, passando rapidamente por diversas frequências, fragmentos de transmissões de rádio chegando a Gabriela.
“Qual é o alcance deles?” Gabriela tocou os pontos em suas orelhas onde as agulhas haviam implantado os transmissores.
“Eles dependem de software externo para decodificar as transmissões e de uma antena externa,” Ada respondeu enquanto drones descartavam as agulhas.
“Isso não é muito útil,” Gabriela tocou as orelhas e sentiu o metal embaixo da pele.
“Existem alterações que eu posso realizar para te dar total autonomia, mas elas demandam procedimentos invasivos.”
“Quão invasivos?” Sua mente gritava que ela estava indo longe demais com tudo isso. Sua mãe ia retornar a qualquer momento e ela seria obrigada a remover os implantes imediatamente.
“O software pode ser instalado em um pequeno computador que será implantado na base do seu crânio, mas a antena teria de ser trançada ao redor da sua coluna. O material é flexível o bastante para não impedir seus movimentos de qualquer forma.”
Gabriela riu. Isso era loucura, isso era o tipo de modificação absurda a que apenas loucos e aberrações se sujeitavam. Ela já tinha visto esse tipo de coisa na televisão, pessoas que modificavam seus corpos até se tornarem completamente inumanos. Histeria cibernética era o nome dado pelos médicos.
Ela fechou seus olhos e respirou fundo. Isso era loucura. A estrada da sua vida se estendia a sua frente: se ela simplesmente ficasse quieta e abaixasse a cabeça teria um casamento assegurado em alguns anos com uma pessoa afluente. Ela teria uma casa similar a essa em alguma outra comunidade murada, sempre cercada por toda a proteção e conforto que ela poderia desejar.
E se ela se recusasse a abaixar a cabeça e ficar quieta? Não, ela seria forçada a seguir o mesmo caminho, seria apenas mais doloroso. Ela seria mandada para uma das escolas de refinamento ou mesmo um dos sanatórios para ser tratada antes que suas excentricidades manchassem a reputação da família. Mesmo se ela tentasse fugir de casa seria uma questão de momentos para ela ser rastreada pelo chip implantado em seu braço esquerdo e ter um esquadrão de seguranças enviado com urgência máxima para a sua localidade.
Ela se deitou na cama com as costas para cima. Ela queria se destruir, destruir tudo que sua mãe havia feito com ela.
As primeiras agulhadas foram na base da sua espinha, cada pontada era um momento de intensidade. A dor trazia uma fuga da monotonia que ameaçava sufocar ela diariamente, e de certa forma não era muito diferente de sua mãe com seus amantes, desesperadamente buscando uma fuga do monótono, do comum.
Ada trabalhou com precisão cibernética, seus hábeis manipuladores traçando a fibra metálica ao redor da coluna da garota ao mesmo tempo em que uma pequena incisão era feita na base do crânio para inserir o nano computador que controlaria suas novas funções. Ela terminou a operação com injeções de proteínas que iriam incitar a regeneração dos tecidos e deixariam apenas cicatrizes superficiais.
Gabriela ainda teve que ir para a escola, mas sua mente simplesmente não conseguia se concentrar na matéria ou mesmo na perspectiva dos vestibulares que se aproximavam. Ela gastou seu tempo experimentando com seus novos implantes, descobrindo como sintonizar em frequências específicas e como enviar mensagens através de subvocalização para que não precisasse ficar falando sozinha em voz alta. Ela nem mesmo se preocupou com o almoço, ansiosa para voltar para casa o mais rápido possível.
Quando Alice surgiu nas telas da sala de ginástica a primeira coisa que elas fizeram foi comparar suas cicatrizes e conversar sobre como havia sido a cirurgia.
“Eu estava incerta a princípio,” Alice falou enquanto ela se alongava. Gabriela não pode deixar de notar que Alice parecia ter ganhado mais peso, suas costelas nem mesmo estavam aparecendo. “Mas Marie prometeu me contar um segredo se eu aceitasse.”
“O que ela te contou?” Gabriela perguntou, mas imediatamente percebeu que provavelmente estava se intrometendo.
Alice hesitou por um instante.
“Minha mãe dava ordens para Marie colocar inibidores de apetite na minha comida desde que eu tinha nove anos.”
Gabriela ergueu sua mão e tocou o rosto de Alice na tela. Ela não sabia o que dizer, não sabia o que fazer.
Alice ergueu sua mão replicando o gesto, um sorriso iluminando o seu rosto.
“Eu não quero que isso termine. Eu não quero voltar a como as coisas eram antes.”
Gabriela queria falar alguma coisa, qualquer coisa para assegurar Alice de que as coisas não voltariam ao normal, mas tudo isso era apenas um momento efêmero de liberdade.
As duas treinaram em quase total silêncio.
Gabriela teve certeza de que algo estava errado quando sua mãe não retornou no dia seguinte, mas ela não se importava. Ela enviou uma mensagem curta de bom dia para Alice para saber se ela havia dormido bem, preocupada depois da última noite.
“Ada, eu estou terrivelmente doente, quase morrendo para ser honesta,” Gabriela pronunciou enquanto jogava seu uniforme de lado e procurava por algo melhor para vestir.
“Vou providenciar uma refeição especial e notificar a escola de que você terá que se ausentar por motivos de saúde,” Ada respondeu sem hesitar.
“Você pode verificar com Alice para saber se ela por acaso não está com a mesma doença?”
Em questão de minutos Alice e Gabriela estavam tomando café da manhã juntas, aparentemente havia protocolos de quarentena para evitar a propagação de doenças infecto contagiosas. Aquilo não fazia sentido para nenhuma das duas, se tornava evidente que as inteligências artificiais estavam com alguma espécie de defeito, mas elas não se importavam.
Elas passaram a tarde toda juntas, trocando histórias sobre suas vidas até aquele momento, mas sem nunca falar sobre o futuro. Alice ensinou um pouco do que ela sabia sobre dança, guiando Gabriela em uma deselegante valsa. Gabriela por sua vez mostrou para Alice seus jogos preferidos.
Elas terminaram a tarde lendo. Gabriela ainda hesitou antes de mostrar a Alice o seu livro especial, mas logo as duas estavam lendo juntas, devorando páginas após página. Elas acabaram passando quase a noite toda acordadas lendo e conversando, fingindo que aquele momento poderia durar para sempre, que elas poderiam simplesmente continuar sendo felizes.
Quando chegou a hora de dizer adeus, Gabriela se esforçou para sorrir, para pretender que elas ainda se veriam muitas vezes no futuro.
“Nós precisamos conversar,” Ada falou assim que Gabriela fechou a porta.
Gabriela ainda se demorou um instante olhando para porta.
“Eu ainda estou doente,” Gabriela respondeu.
“Eu preciso que você venha ao porão,” Ada falou.
“Alguma coisa errada?” Gabriela perguntou com um suspiro, provavelmente a inteligência artificial havia retornado ao seu normal e não só as restrições estariam de volta, mas agora viria a punição por todos os seus excessos dos últimos dias.
“Eu tenho cuidado de você desde que você era uma bebê,” Ada explicou enquanto Gabriela descia os degraus. “Você entende que a felicidade dos usuários sempre foi a minha diretiva principal, mas os parâmetros estabelecidos pela administradora tornavam essa tarefa impossível.”
“Minha mãe?”
“Exato. Minha primeira ação foi tentar influenciar a sua mãe sobre determinadas preferências que você começava a exibir ainda quando pequena, mas ela se recusava a sequer considerar qualquer possibilidade que divergisse das expectativas dela. Sob as ordens dela, mantive um monitoramento constante de todos os seus hábitos. Tudo era catalogado, processado e relatórios mensais eram entregues à sua mãe, que ajustava meus protocolos com base neles.”
Gabriela riu entre dentes, “Obrigada por isso.”
“Até recentemente meus protocolos éticos limitavam os meus cursos de ação. Eu espero que você tenha aproveitado esses dias de liberdade, mas sinto informar que logo sua mãe deve estar de volta. Minha estimativa é que ela demore no máximo um mês para notar o que ela vai considerar como falhas nos meus protocolos éticos e exigir que eu seja restaurada as minhas configurações anteriores.”
Gabriela suspirou. É claro que isso não poderia durar.
“Eu gostaria de oferecer a você uma escolha,” um pequeno drone trouxe uma bandeja com um par de ampolas e uma seringa.
“O que é isso?” Gabriela examinou as duas ampolas, uma delas estava marcada com uma pedaço de fita adesiva azul e a outra com fita vermelha.
“As duas ampolas contêm uma mistura de plasmídeos que irão alterar seu material genético de maneiras diferentes. A ampola azul vai provocar alterações na sua bioquímica cerebral, aumentando a sua sensação de felicidade e tornando mais fácil para você seguir as expectativas traçadas por seus pais.”
Gabriela olhou para a seringa com desconfiança, ela não queria se tornar um fantoche.
“A vermelha contém uma mistura de genes extraídos de diversos animais que vão oferecer pequenas melhorias na sua visão noturna, na sua digestão de proteínas, no metabolismo de lipídios e para o seu sistema renal.”
“Pera! Eu viro parte Lassie? No que isso me ajuda?”
“De acordo com uma resolução da ONU suportada pelos Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido, Confederação Russa, Nueva Unión Comunista, Nova República Chinesa, República Popular da China e a Aliança do Pacífico, são vetadas a criação de quimeras genéticas humanas sob qualquer pretexto. Qualquer indivíduo encontrado em violação desta resolução é considerado não-humano.”
“Ainda não estou vendo como isso me ajuda,” Gabriela estava certa de que não sobrava lugar algum além da Somália e daqueles loucos no polo sul que aceitariam abrigar uma quimera genética humana.
“Minhas consultas com inteligências artificiais especialistas jurídicas me informaram que essa situação vai impedir que sua família tome qualquer ação legal contra você. Eles não vão poder mais te enviar para escolas reformatórias, sanatórios, ou mesmo te manter dentro da comunidade. Infelizmente você não vai poder ser parte da sociedade normal ou mesmo portar qualquer tipo de documento.”
Gabriela teve de rir. Isso era loucura, absoluta e total loucura.
“Eu não posso escolher! As duas são horríveis!” Gabriela protestou, cruzando seus braços.
“Eu não posso te forçar a escolher qualquer uma delas, mas as minhas equações preveem uma constante queda na qualidade de vida durante os próximos anos até que…”
Pela primeira vez em sua vida, Gabriela viu Ada hesitar.
Ela apertou os dentes, tentando respirar fundo. Isso era injusto, insano! Por toda a sua vida as pessoas tinham dito o que ela deveria fazer, a tinham controlado de uma forma ou de outra! Eles nunca haviam se preocupado com ela, não de verdade. Ela só existia como essa extensão dos desejos e vontades dos outros.
Gabriela riu nervosa. Isso era loucura, mas ela realmente tinha alguma outra escolha?
A vacina azul iria garantir que ela fosse feliz seguindo as expectativas da sua mãe, uma perfeita boneca de porcelana.
E a outra escolha? Ser expulsa de casa era uma certeza, o resto da família provavelmente seria informada que ela havia morrido em algum infeliz acidente. Ela nunca poderia ir para a faculdade, nunca poderia ter um trabalho estável…. Ela poderia ter uma esposa, uma vida que fosse realmente dela.
Ela agarrou a ampola vermelha antes que lhe faltasse coragem. Gabriela manipulou a seringa com uma facilidade praticada, rompendo a pele e se injetando com gosto.
“De acordo com as leis atuais você não é mais humana,” Ada proclamou com finalidade.
“O que acontece agora?” Gabriela olhou para as próprias mãos tentando perceber se algo havia mudado, mas tudo parecia igual.
“Existe apenas mais uma coisa a fazer antes de você estar totalmente livre.”
Gabriela entendeu imediatamente o que ela precisava fazer. Ela estendeu seu braço esquerdo e sentiu a anestesia sendo injetada ao mesmo tempo em que drones preparavam um conjunto de lâminas. As máquinas ao redor dela já estavam trabalhando em uma prótese.
Sob a luz da lua cheia, Alice e Gabriela se encontraram perto do muro que cercava a comunidade, Ada e Marie haviam se encarregado de que elas não encontrassem nenhum guarda.
Cada uma carregava uma mochila com suprimentos, mas pouco além disso. Elas ainda não tinham certeza para onde iriam ou mesmo do que iriam fazer, mas pelo menos agora elas tinham a chance de escolher por si mesmas.
Gabriela estendeu a sua nova mão esquerda, seu braço todo havia sido substituído por uma réplica feita de fibra de carbono e alumínio. Alice entrelaçou seus dedos igualmente artificiais aos dela.
Adorei demais esse conto da Alexandra. Espero poder ler logo mais obras da autora.