Ainda na cama, esfrego os olhos. Vejo além da janela aberta que o céu noturno é claro. A noite imensa e clara, uma lua no céu, lua cheia. Desta vez, eu não ficarei me lamentando embora já tenha dito isso no mês passado.
Coloco uma camiseta e calça pretas, tênis. Estou descansado e alerta. Preparo um café e torradas. Não é ainda manhã então acho que não é certo dizer que estou tomando café da manhã. Quase engasgo pensando em crepúsculo. Não é crepúsculo algum, mas penso naquela droga de filme. Crepúsculo era uma de minhas palavras favoritas antes daquela droga de filme. É a hora em que a noite e o dia se misturam, a luz difusa brilha opaca e etérea, confundindo os sentidos em meio ao silêncio e às brumas. Foi em um crepúsculo do inverno, na praia, que eu o conheci. É o homem mais bonito que vi em minha vida. Para não ser clichê não vou dizer que ele saiu do mar e veio na minha direção. Não vou dizer. Ele estava ainda arfando pelo esforço. Veio nadando desde a outra praia. Queria conhecer aquela menor, mais reservada, difícil de chegar. A mesma em que eu estava.
Pela vidraça da cozinha, a lua é uma flor de camélia no céu. Imagino as pétalas brancas se desprendendo, caindo uma a uma. Tenho que ir. Sento no sofá da sala e encosto a cabeça, olhando para o teto. Insetos mortos dentro da luminária. Ele me disse que os escutava se debatendo. Aquilo o deixava louco. Mas o som do mar ao fundo o acalmava. Sorte eu morar perto do mar. Sorte ele ter me achado e decidido passar um tempo comigo. Não contei que eu apenas cuido da casa, que não é minha, achei que ele teria ido embora muito antes de o verão chegar e alguém decidir alugar o imóvel. Logo virão, eu sei. E eu vou ter que contar tudo a ele. Engraçado pensar nisso. Ele me contou o que ele era e eu não consigo dizer que sou um caseiro. O que tem de errado neste mundo?
Não. Preciso ir. Não vou ficar aqui como ele me pede sempre, não vou. Levanto de um pulo e corro para fora de casa sem nem ao menos fechar as portas, trancar as janelas, sem verificar se desliguei o fogão, sem apagar as luzes, sem escovar os dentes, sem beber aquele copo de água, sem tomar o advil, nem dar um trago para criar coragem.
A noite clara, continuo correndo para o parque. A corrente de turquesas batendo no meu peito. Turquesas são para comunicação, facilitam o fluxo de nossa energia interior para o mundo exterior, eu contei para ele. Ele riu, disse que eu acreditava em bestagens demais. O sorriso dele é lindo. Os caninos são um pouco pronunciados, os olhos se fecham quando ele sorri. Se ele não odiasse gatos, eu diria que ele se parecia com um.
Continuo correndo. O parque não é distante mas mesmo assim tenho que parar duas vezes para recuperar o fôlego e ordenar para mim mesmo em alto e bom som que não, eu não vomitaria.
As folhas das árvores dançam em sincronia. A maioria delas é chapéu-de-sol. A vegetação mais afastada é de mata atlântica, e é de lá que vem o som de cliques como pequenas castanholas. Eu sei que são sementes chacoalhando mas sei também que é a voz da floresta dando boas-vindas.
Posso escutar ele rindo e me dizendo para deixar de ser besta.
Eu amo aquele besta.
Nem consigo dizer que sou caseiro, imagina dizer mais. Preciso fazer mais.
Fecho os olhos para sentir o aroma salgado no vento e quase vomito com o grito. O grito corta a noite como raios em tempestade. Uma mulher gritou. Não estava muito perto. Eu tinha que chegar até ela. Ele está lá com ela, eu sei.
Eu vou vencer essa resistência besta, esse medo infantil e vou chegar até ele hoje. Eu vou conseguir chegar até ele e até o bicho em que ele se transforma nessas noites de lua cheia. Se eu seguir os gritos, chego até ele, a tempo, antes, antes de ele fugir, ou ele me encontrar, o que é mais provável. Ele se afastaria do corpo inerte da moça e rosnaria para mim. Uma nova presa, ele não conseguiria conter a besta, me rasgaria com suas patas imensas, me dilaceraria com seus caninos afiados, mas eu sei, eu sei, antes de me matar, algo lá de dentro dele me veria, algo lá de dentro daqueles dentes afiados e pastosos de meu sangue mesmo. Eu sei, ele não me mata. Ele se afasta, arrastando o monstro dali, e de dentro do oco dele mesmo grita para eu sumir. Eu não consigo me mover, como poderia? Eu não me mexo e o brilho nos olhos dele voltam a se embaçar de selvageria. Tiros. Eu escuto tiros. Vieram pelos gritos. Sempre gritam. E os tiros vêm mais cedo ou mais tarde. A jovem morre, morre sempre, morre além de qualquer outro destino. Os tiros se aproximam de mim. Cães farejadores me encontram no chão. Dois pastores, cachorros da polícia. A fera pula sobre eles. O ganido do cão e depois nada, mais tiros. Quero gritar para que não atirem, parem, mas minha garganta rasgada… Escuto um “bom menino”, “a moça está morta”, “e aquele ali?”, “deus do céu”, “está respirando”, “deus do céu”. Os policiais param de respirar por um momento. Eu não me movo. “Não vai sobreviver”, escuto e responderia que sim, que vou sobreviver, que estarei estabilizado dali a alguns dias, nem completaria um mês e eu já conseguiria falar e respirar sem ajuda de aparelhos, que em menos de dois meses eu teria alta e que na próxima lua cheia seria eu a… mas não ele, ele teria caído com os tiros, sempre gritam, sempre vêm os cães pastores e os policiais, ele não conseguiria fugir sempre, e ele sempre me pede para não me aproximar e eu nunca consigo me aproximar, ele tem os medos dele, eu tenho os meus, e ele nem desconfia, nem desconfia de meus planos apesar de todo meu pavor, eu tenho meus planos, e ele tem a fera dentro de si, a fera ataca uma moça e eu escuto ao longe os gritos, sempre gritam, sempre gritam, os gritos são como trovões, arrebentam em meus tímpanos e eu me encho de arrepios.
Esfrego os braços para afastar o medo mas falho miseravelmente. Caio de joelhos na grama e reparo, sorte, muita sorte, uma pedra roxa, um cristal, uma drusa de ametistas ali no meio do parque, um presente da natureza, do espírito da floresta, talvez um sinal, um sinal do espírito da floresta. Em meio à mata, aos gritos, eu encontro uma ametista. Eu a pego e traço meus passos em reverso, a lua continua cheia, nada mais de gritos nem de tiros, a brisa traz de novo o ar fresco e salgado, volto à casa que não é minha para deixar a ametista entre as outras pedras de minha coleção.
Ele vai voltar, eu sei. Eu vou contar tudo, vou contar, sou o caseiro e te amo, vou contar, mas só depois que o seguir em uma próxima noite, com a lua cheia, o ar sem gritos, e ser atacado por ele, sobreviver e ter a fera também no meu sangue. Depois disso, eu falo, eu falo.
Lindo Érica Bombardi. Pra variar, amei o seu texto. Consegui sentir as mesmas sensações do caseiro, me imaginando tomada pela fera. Acho que a gente fica mais fera conforme passa o tempo … Genial!! Adorei.