O pai passa a mão pela careca, já toda salpicada por gotinhas de suor. Confere mais uma vez o relógio no pulso antes de finalmente aproximar-se do balcão da companhia aérea. Atrás dele, a filha de cinco anos diverte-se com um pequeno mico, um animalzinho cinzento e felpudo que lhe puxa as orelhas e guincha sem parar. A menina ri com uma alegria genuína.
“Bom dia, senhor,” o jovem funcionário da companhia aérea o saúda de maneira mecânica.
“Opa,” o pai responde, içando duas pesadas malas por cima do balcão. Uma é preta, de aparência comum, já a outra é rosa berrante, com dezenas de chaveiros espalhafatosos pendurados. “Essa é a da minha filha,” ele acrescenta, como se precisasse se desculpar por tamanha excentricidade.
O rapaz observa o cliente de cima a baixo, da filha ao macaquinho e depois tudo de novo outra vez.
“Hum,” ele diz. “Posso ver as passagens?”
O pai adianta-se com a mão no bolso de trás da calça. De lá retira uma dupla de bilhetes ligeiramente amassados e entrega ao funcionário, olhando novamente para o relógio.
“Vai ser você e essa menininha aí atrás?” o jovem pergunta, coçando a nuca.
O pai pressente problemas:
“Sim, somos nós dois. Algo errado?”
“O senhor não pretende embarcar o macaco junto, não é?”
O pai ri, aliviado. Um equívoco comum.
“Ah, ele não é um macaco. É um metamorfo,” responde. O rapaz à sua frente continua com a mesma expressão, e o pai vacila. “Você sabe, não sabe? O que é um metamorfo?”
“Está falando dos seres espirituais que escolhem um único ser humano para seguir e amar por toda a vida e que podem se transformar em qualquer animal?”
“Isso mesmo…”
“Olha, senhor, ainda assim não podemos transportar macacos. Existem cláusulas contra o transporte de animais silvestres. Você precisa ter a papelada necessária.”
“Mas ele não é um macaco!” O pai vira para trás e aponta para o mico com o dedão. Já é possível ver o resto do pessoal na fila revirando os olhos pela demora.
“Mas no momento ele é um macaco.”
O homem careca esfrega os olhos, tentando desanuviar as ideias. Chama a garotinha para perto e ajoelha-se a seu lado.
“Meu docinho, será que você pode pedir ao Sr. Prinkles para virar um cachorro?”
“Mas o Sr. Prinkles não gosta de ser um cachorro! Eles têm pulgas!” A menina arregala os olhos, mortificada.
“Eu sei, meu amor, mas é só por um minutinho, está bem? É muito importante para o papai.”
A garota faz beicinho, ponderando se o pai merece ou não tamanha dádiva. Dá de ombros e pega o macaquinho no colo, sussurrando algo em seu ouvido. Ouve-se um pequeno silvo seguido por uma fumaça roxa com cheiro de repolho, e de repente a menina não segura mais um mico, mas sim um rechonchudo buldogue que espalha baba por todos os lados.
O pai, satisfeito, lança um olhar triunfal para o atendente:
“Pronto, agora ele é um cachorro.”
“Cães desse tamanho não podem viajar na cabine. O senhor precisaria ter trazido uma caixa de transporte nas proporções indicadas pela companhia,” o jovem recita de memória cada uma das palavras.
Ouve-se outro silvo e mais cheiro de repolho. Agora a menina tem nos braços um minúsculo poodle.
“O senhor trouxe a carteirinha de vacinação?”
“Carteirinha…?” O pai ergue as mãos para o céu. “Mas meu amigo, ele não é um cachorro! Como posso dar vacina de cachorro em algo que não é um cachorro?”
“Eu sinto muito, senhor, são as normas.”
“Olha aqui, hã…” ele lê o crachá do funcionário. “Rubem. A minha esposa é uma cientista renomada da área da bioparanormalidade. Foi assim que o metamorfo acabou entrando pra família.”
“Fico encantado em saber, senhor.”
“A mãe dessa menininha vai ganhar um puta prêmio, Rubem, e eu preciso muito pegar o próximo avião para que estejamos com ela nesse momento. E eu não sei se você sabe, mas não dá para separar um metamorfo do seu humano sem causar sequelas horríveis. Então eu realmente preciso da sua ajuda para embarcar a porcaria do Sr. Prinkles!”
“O Sr. Prinkles não é uma porcariaaa…” a garota cai de joelhos no chão e começa a chorar copiosamente. Suas bochechas estão vermelhas e inchadas. O poodle começa a uivar.
“Vocês ainda vão demorar muito aí?” Uma mulher bem vestida, a próxima da fila, reclama, ganhando o apoio imediato de um velhinho, dois amigos e uma família gigante com roupas iguais.
“Olha aqui, minha senhora,” o pai grita, tentando se fazer ouvir acima do choro, das vaias e dos uivos. “Eu tenho meus direitos! Estou na minha vez e não estou fazendo nada de errado. Em vez de me encher a paciência, vocês poderiam pensar em me ajudar!”
O funcionário abre a boca, mas não consegue emitir nenhum som. De repente, alguém deixa escapar:
“Já sei! Quem sabe um passarinho? Um não silvestre, claro.”
Mais fumaça de repolho se espalha pelo lugar quando um periquito australiano pousa no ombro de sua dona, que ainda convulsiona em soluços sentidos.
“Agora vai, hein?” O careca pisca animado para seu salvador que aguarda na fila, mãos nos quadris.
O funcionário precisa pescar um manual surrado no fundo de sua gaveta, Começa a folheá-lo e percorrer as linhas com a ponta do dedo. Parece encontrar o que estava procurando:
“O senhor tem um parecer veterinário sobre clamídia?”
Um urro de decepção percorre a fila de ponta a ponta. A careca do pai já está encharcada de suor.
“Um mini porco?” outro sugere.
“Foi vacinado contra a gripe suína?”
“Um pombo?”
“Preciso do atestado sanitário.”
“Uma iguana?”
“Só com autorização do IBAMA.”
“Um elefante!” grita um garotinho, levando um tapa imediato da mãe.
“Senhor, por favor…” o funcionário apoia a testa nos braços agora estendidos sobre o balcão.
Um agourento futum de repolho domina o ambiente, e já é difícil visualizar as pessoas no meio de tanta fumaça. O pai tosse e tenta dissipar a nuvem arroxeada abanando-a com a mão. Está exausto, está atrasado e com certeza vai tomar esporro da mulher. Olha para sua filha, de semblante pidão encostada junto a um bebê elefante que se balança de um lado para o outro.
“Rubem, meu amigo,” faz uma última tentativa desesperada para o rapaz da companhia aérea. “Você sabe que eu posso transformar o metamorfo numa formiga e levá-lo bem debaixo do nariz de vocês, não é?”
“O senhor até poderia, mas agora que me contou, eu seria obrigado a chamar a segurança.”
“Pois é! Veja só: estou aqui cumprindo meu papel de cidadão, estou AVISANDO para vocês que vou levar um metamorfo. Você acha justo que eu seja impedido de viajar só porque sou um cara decente? Vocês já devem ter levado dezenas deles sem saber!”
“Mas senhor, eu realmente só estou fazendo o meu trabalho…Se a gente permite que um animal viaje sem autorização e ele passa alguma doença pra alguém, a companhia aérea é processada.”
“Mas ele não tem como passar doenças porque ele NÃO É UM ANIMAL DE VERDADE, CARAMBA!” O rosto do pai está tão roxo quanto a fumaça de Sr. Prinkles. “Metamorfos são limpinhos, não tomam vacina, não tem pulgas!”
Assim que termina a frase, os olhos do pai se tornam injetados e distantes, como se ele vislumbrasse ao longe algum tipo de plano maléfico extremamente promissor. Com um semblante maníaco, agarra as orelhas do bebê elefante e encosta sua testa na do animal:
“Sr. Prinkles, preciso que você volte à sua verdadeira forma. Será que pode fazer isso por mim, meu camarada?”
O elefante o afasta lentamente com a tromba, como um especialista preparando-se para dar um show de mágica. Um silvo altíssimo ecoa por todo o aeroporto, seguido por uma quantidade absurda da fumaça fedida.
“Meu Deus,” diz alguém na fila, “como é que vocês aguentam uma coisa dessas dentro de casa?”
Mas o cheiro de repolho em nada se compara com a verdadeira aparência do Sr. Prinkles. Passados alguns segundos de suspense, um contorno vai se tornando visível em meio à bruma arroxeada.
É uma criatura humanoide, mais ou menos do tamanho de uma criança, com braços compridos e flácidos que arrastam pelo chão. Seu abdômen é dilatado, como se ele carregasse vermes, o que faz com que sua coluna incline-se, entortando em um ângulo estranho. A pele é cinzenta e pegajosa, coberta de pústulas e verrugas. Seus olhos são empapuçados e baços, leitosos e levemente azuis.
A criatura abre a boca e exibe duas fileiras de dentes enormes e pontiagudos. O público na fila se encolhe, mas a garotinha abre os braços e corre para cumprimentar seu amigo. Aparentemente, aquela é a forma como um metamorfo sorri. E a menina não parece estar mais chorando.
Faz-se um silêncio sepulcral. O pai, que mesmo depois de tanto tempo ainda se surpreende com a feiura do bichinho de estimação, suprime um arrepio e vira para o balconista.
“E então? Será que assim nós podemos embarcar?”
O pobre Rubem ainda está paralisado, com uma das mãos tampando a boca. Não é todo dia que ele vê coisas assim no aeroporto. Geralmente são apenas malas e discussões sobre frascos de perfume e shampoo. De qualquer forma, o rapaz demora para sair do transe.
Quando finalmente cai em si, consulta novamente o manual, virando febrilmente as páginas amassadas. Quando passa a última das folhas, o funcionário morde o lábio e encara seu cliente com um olhar suplicante:
“Eu sinto muito, senhor, mas nosso código não fala nada sobre metamorfos…”
“É o quê?” Uma veia salta no pescoço do pai de família. O pessoal da fila suspira e lamenta.
“Metamorfos não estão previstos nas regras.” Rubem empurra o manual aberto para frente, indicando o índice do documento. “Não são criaturas comuns, ninguém pensou sobre o que fazer no caso de algum deles precisar viajar de avião.”
“Isso é porque a maioria deles vai disfarçado!”
“E-eu…eu posso chamar meu gerente…”
O pai estende a mão, fazendo com que o atendente se cale. Sua testa está completamente vincada e ele aperta a base do nariz entre os dedos. Parece à beira de um colapso.
“Rubem,” ele diz, esforçando-se para soltar as palavras devagar. “Quer saber? Deixa pra lá. Eu te agradeço, mas acho que não vamos chegar a nenhum lugar aqui. Eu já não tenho mais ideias de classe, filo ou espécie para tentar embarcar essa criatura. Espero que você tenha um bom dia.”
Rubem levanta da cadeira e se debruça sobre o balcão, estendendo a mão num cumprimento. Parece realmente chateado.
“O senhor me desculpe mesmo, viu? Se dependesse de mim…”
“Não, tudo bem,” o pai retribui o gesto e puxa as malas de volta para o chão.
“O seu metamorfo parece ser muito bem apessoado, quer dizer…” ele olha com asco para a figura molenga que segura a mão da menininha. “Ele parece um cara legal.”
O homem careca balança a cabeça, num agradecimento mudo. As pessoas na fila lhe dizem palavras de solidariedade, e mandam beijos para a garotinha que se afasta junto ao pai, agora levando um camundongo marrom num dos bolsos do vestido.
“Papai,” ela chama, quando os dois alcançam as portas do aeroporto.
“Pois não, minha flor.”
“Nós não vamos mais encontrar com a mamãe?”
O pai respira fundo e observa o horizonte por algum tempo. Depois, pega a filha no colo e sorri, olhando-a com todo carinho.
“É claro que nós vamos, meu bem.” Ele recomeça a andar, levando a menina num braço e as malas no outro. “Me diga uma coisa, você acha que o Sr. Prinkles consegue se transformar numa baleia?”
“Claro que consegue, não consegue?” O ratinho coloca o focinho para fora do bolso e seus bigodes parecem animados com a perspectiva.
“E quanto tempo você acha que uma baleia levaria para nadar daqui até a Flórida?”
Minha Cara Fernanda Castro!
Que incrível! Amei, juro!
Vou imitar seu bonequinho ” \o/ \o/ \o/ ”
Meus Parabéns Minha Amiga!
Comentarei mais no e-mail, ok?.
Abraços,
Amor, Paz, Luz e Namastê.
Brito Santos.
Sou autor de contos e viciado nesse tipo de literatura. Infelizmente tenho encontrado muita coisa ruim por aí, como antologias com trabalhos editoriais lindíssimos e conteúdo de gosto duvidoso.
Assim, foi um prazer descobrir a revista TRASGO! Comecei pela última edição e fui surpreendido com o conto NA FILA DO CHECK-IN, de Fernanda Castro (que por sinal é o nome da minha irmã rs).
Achei interessante, divertido e dinâmico, sem encheção de linguiça. Leria mais dez páginas, se fosse o caso. É um dos poucos textos que literalmente arrancou risadas minhas. Realmente, me divertiu! Muito obrigado, Fernanda.
Aguardo os próximos!
Rodrigo Oliveira
Ótimo conto. Divertido e simples. A edição parece ter sido impecável, não existem palavras sobrando, falas ou descrições excessivas. O ritmo dos acontecimentos é perfeito. Foi uma boa experiência de leitura.