Ciência é magia com explicação plausível. Pense em como seus avós veem o seu smartphone, seu computador, mesmo as ligações internacionais sem telefonista e sem um cabo ligando o aparelho na parede. Caramba, pense no absurdo que é um telegrama, se você não entende de cabos submarinos e código Morse — não parece magia negra? Meia dúzia de barulhos ritmados e opa, lá está uma mensagem. Pense em como você via as transmissões via satélite ao vivo: como é possível? Eles lá — e lá era longe, muito longe, Bagdá, Moscou, Berlim — e você aqui, e tudo isso acontecendo ao mesmo tempo? Tudo ao mesmo tempo?
Quem te garante então que o que eu sou não representa nada? Que não é real, só porque parece impossível?
Não é alucinação. Não é magia. É Ciência. Você é que não chegou lá ainda.
Eu e você estamos acontecendo ao mesmo tempo. É como uma transmissão via satélite, só é um pouquinho mais complicado porque envolve tempos diferentes. Mas o princípio é o mesmo. Dá para me entender?
Eu sei que é difícil. Acha que é fácil para mim? Vê-la ali, parada na esquina, com o telefone na orelha, vestida de um jeito que eu nunca imaginei — essas plataformas são medonhas, francamente, parece que ela tá andando com dois ferros de passar nos pés — vê-la andando e imaginar que daqui a dois meses você e ela vão brigar feio porque você é um imbecil e ela é uma teimosa. E aí ela vai para Porto Alegre, fica três anos dando aula no Colégio Militar (ela odeia milicos, mas eles pagam bem) e você fica aqui em São Paulo no seu reino imaginário, no Emílio Ribas — eu sei, eu sei!, seus estudos são importantes, não me interrompe. Eu sei. Presta atenção: você vai brigar feio com ela, e o fato de vocês terem dormido juntos só piorou a situação…
Mas quer fazer o favor? Eu tenho a sua idade. Na verdade, um ano mais velho. Eu sei que ainda não existo aqui, neste tempo, mas vamos lá, dê esse desconto. Eu sei que eu não vim da cegonha. Ou dos repolhos, como dizia sua avó. Eu sei de onde eu vim. Dela. E de você. Essa porcaria de cabelo – ou o que sobrou dele – é culpa sua. E esse nariz. Esse nariz! Dá para ser mais judeu do que isso?
É, eu sei. Os meus olhos são os dela. Dói quando eu lembro. Quando eu vejo esses mesmos olhos no rosto do meu filho mais velho.
Quando ela estava grávida, ela me chamava de Andrômeda. Eu sei que Andrômeda era uma mulher – e ela também sabia, obviamente. Mas era uma constelação que ela adorava e todos somos feitos de estrelas. Então, Andrômeda. Não ia ter a mesma graça se ela me chamasse de Betelgeuse!
No meu agora, os humanos têm uma pequena colônia em Marte. Coisa pouca: cinco astronautas, ralando para fazer tudo funcionar. Tem até uma brasileira, uma figuraça, os vídeos dela são a coisa mais hilária. Mas, ei, pensa, vocês aqui ainda estão com a Mars Rover tirando fotos e a gente já com astronauta morando no terreno e mandando vídeos. Em quarenta anos! Eh? Nada mal! Considerando a velocidade das invenções e tal.
Não, nada de sinais de vida fora do sistema, ainda. Mas dá mais umas décadas. Seus netos, talvez? Daqui a mais quarenta anos? Vai saber o que mais tem no fundo do baú. Ciência! A linguagem universal! Igual para mim e para você, como era igual aos seus avós e será igual aos seus netos. Gravidade e atração magnética funcionam desde sempre e sempre irão funcionar.
E Ciência é o que faz eu estar aqui falando com você. E você achando que é delírio. Aqui está você, um cientista que entende de pernilongos e mosquitos… Sim, sim, a vacina existe no meu tempo, você venceu a batalha! Feliz com o spoiler? Posso continuar? Aqui está você, um homem exausto, olhando para uma mulher com plataformas horrorosas – não, pai, desculpa, elas são feias pra caramba – e pensando “o que diabos que eu fiz?”
Bem, você a ama. Você sempre soube. A Ciência explica muita coisa, mas não consegue ainda destilar esse tipo de coisa, nem agora nem daqui a quarenta anos terrestres. Você procura uma vacina contra a dengue. Ela procura nomes para equações, números que podem desvendar como fazer uma construção ficar pronta mais rápido, um avião voar mais longe com menos combustível. E no fundo disso, no fundo da noite, estão uma ateia e um judeu tentando se fazer entender em idioma que nenhum dos dois compreende direito.
Ciência é língua de louco, não é? DNA e cultura também são. Imagina isso: tem uma mulher que fala minha língua em Marte agora – no meu agora. E você aqui, no seu agora, parado nessa porcaria dessa esquina, quatorze mil e seiscentos dias antes, sem conseguir falar para aquela mulher que sim, você é um imbecil deísta e machista que acredita que ela é quem deve te seguir e não o contrário. A ideia de que você pode, deve, consegue segui-la nem te passa pela cabeça.
E por causa disso ela vai mandar você à merda e vai para Porto Alegre. Quer mesmo o fim da história?
Por que eu voltaria no tempo? Por que eu arriscaria o meu pescoço em uma máquina em testes, em um laboratório ainda meio atrapalhado, meio capenga (algumas coisas não mudam muito, financiamento público entre elas — desculpa!), por que eu deixei esposa e dois filhos me esperando do outro lado dos meus quarenta anos apenas para esses cinco minutos aqui, na Avenida Paulista, setembro de 2012?
Por que eu iria arriscar tanto?
Eu sinto muito.
Eu sinto tanto a falta dela!
Ciência é magia com explicação plausível, mas não tem nenhuma explicação plausível para o tanto de saudade que eu carrego no meu peito. Ela sempre falava desse tempo, desses dias malucos, ela indo e você voltando do trabalho, e eu tentando entender como, como? Vocês dois! Não dá para ver a Irene sem o Ruben, todo mundo fala isso: é dois pelo preço de um sempre. Como é possível que vocês tenham tido tantos problemas antes?
Mas eis aqui como estamos: meu tempo está acabando. É, que é que você queria? A máquina está em testes. É incrível que eu tenha conseguido chegar até aqui sem estourar uma veia. Sim, já aconteceu. Não, não foi tão grave.
A pior parte é que você não vai lembrar de nada quando acabar. Você vai atravessar a rua, ela vai tentar pegar a sua mão e você vai ficar com medo — do quê, seu imbecil, eu não sei — e daqui a dois meses ela vai para Porto Alegre e você vai demorar três anos para descobrir que Ciência é uma coisa, amor é outra, e religião e sociedade não tem nada que se meter nem com uma nem com outra.
E você vai pegar um avião para ir atrás dela e vai se humilhar como nunca antes nem depois, espinha e coração quebrados, enfim, e daí nascerá uma imensa constelação: eu. E seus netos. E o futuro: astronautas em Marte, novos planetas no telescópio, vacinas contra a dengue, um mundo que seus olhos não vão ver, que os olhos dela não vão ver – mas que eu vou ver por vocês dois.
Um mundo do qual meus netos vão achar graça. Eles vão achar os meus sapatos ridículos e minhas pesquisas ultrapassadas. Como a gente que lê Verne e acha engraçado o Capitão Nemo ter uma biblioteca no submarino. Como eu acho engraçado que as pessoas aqui, agora, têm medo de micro-ondas e de alimentos geneticamente modificados.
O futuro é um país estrangeiro, meu pai; eles fazem as coisas diferentes por lá. Mas nem por isso a gente deixa de fazer as malas e partir, não é mesmo? Não é mesmo?