O Sangue da Magia

I.

Era um tempo de escuridão para aqueles nascidos com a magia em suas veias. Em todas as eras da humanidade, nada fora tão assustador quanto a caça às bruxas. Famílias dilaceradas, crianças separadas de seus pais, pessoas mortas em fogueiras, enforcadas ou afogadas. Tudo em nome do poder. Porque era verdade: o homem temia tudo que não podia compreender. E a magia estava entre aquelas coisas incompreensíveis aos meros mortais.

Mesmo que a origem da magia remontasse aos povos das cavernas, em sua longa história os feitos alcançados através dela ainda eram um mistério para muitos. Desde suas primeiras definições até se espalhar por todo o mundo, a magia fora responsável por moldar sociedades e teria continuado a fazê-lo, não fosse pela ganância e cobiça daqueles incapazes de controlá-la.

Mas mesmo entre os horrores que varreram a Europa e o Novo Mundo, a jovem Isolde ainda mantinha sua esperança. Ela sonhava com um mundo onde bruxos e bruxas não fossem mais temidos e caçados como animais, um mundo onde ela poderia usar seus poderes para ajudar os outros. Infelizmente, suas bondosas intenções não foram suficientes para evitar todo o sofrimento que se abateu sobre ela.

Parte de sua vida Isolde viveu em Hatfield Peverel, que, à época, não era nada mais do que uma pequena vila. Ela descendia dos Waterhouse, uma família de bruxos tão antiga quanto a própria Inglaterra. Sua avó materna, Agnes, possuía a habilidade de se transformar em gato, enquanto sua mãe, Joan, conhecia encantamentos de cura como nenhuma outra bruxa da região. Seu pai, um homem comum, não havia nascido na vila, porém todos o conheciam como Tristyn de Ireby, de modo que este se tornou seu sobrenome quando ele e Joan se casaram. Na época do nascimento de Isolde, em 1566, a nuvem escura da perseguição pairava nos céus de Hatfield Peverel.

Ela ainda era um bebê quando Agnes fora acusada de usar feitiçaria para matar animais, causar doenças, bem como provocar a morte de um aldeão. A senhora de idade, vista no passado como gentil e benevolente, tornara-se uma criatura aterrorizante, encarnação do próprio mal. Notícias do julgamento de sua avó correram por todo o país, e não houve nada que pudesse ter sido feito por Joan para evitar que sua mãe se tornasse a primeira mulher executada por bruxaria na Inglaterra.

Isso fez com que a infância de Isolde fosse muito triste. Sua mãe, outrora adorável e prestativa, tornou-se sombria e se vestia apenas de preto. Ela renunciara à sua magia e jurara nunca mais usar seus poderes de cura. A pequena Isolde era proibida de brincar fora de casa e tampouco podia ter animais de estimação, já que Joan não desejava que associassem a filha à sua falecida avó. Pouco antes de completar trinta anos, ela faleceu, vítima de uma febre.

Isolde era uma menina de onze anos quando sua mãe morreu, e seu pai, não suportando ver a filha se tornar alvo de boatos da vila, decidiu deixar Hatfield Peverel. Até então, os poderes dela estavam latentes, esperando apenas uma chance de aparecer. Tristyn Ireby, não sendo um possuidor de magia, ansiava que Isolde fosse como ele, pois apenas isso poderia salvá-la da caçada impiedosa que se alastrava por todo o país. Por onde pai e filha passavam, havia sempre um rastro de fogueiras, forcas e histórias horríveis de homens e mulheres assassinados em nome da fé.

Depois de saírem de Hatfield Peverel, Tristyn havia planejado voltar para a sua Ireby natal no norte da Inglaterra. No entanto, ele temia por sua filha. Ireby era muito pequena, muito longe, demasiadamente fácil para os caçadores de bruxas encontrarem. Então eles se dirigiram para Londres, esperando começar uma nova vida. A capital do reino era uma cidade repleta de latrinas, suas construções de pedra eram cinzentas e escuras, sempre chovia e os súditos da rainha viviam com frio. Se pequenas aldeias possuíam histórias terríveis sobre bruxaria, Londres guardava para si as piores. Os Ireby estavam no olho do furacão, onde a busca por qualquer um remotamente relacionado com a magia era incessante.

Tristyn e a filha viviam em uma casa tão pequena que poderia ser confundida com um quarto, nos arredores do rio Tâmisa. Ali o cheiro de putrefação e dejetos não era tão ruim, não quando comparado com o coração da cidade, perto da fortaleza da rainha. Isolde não conseguia esconder a falta que sentia de sua antiga casa, seu antigo quarto, sua antiga vida.

Suas lembranças da mãe ainda a assombravam à noite, e mais de uma vez ela chorou até dormir. Entretanto, a pior parte eram os pesadelos que a acordavam de madrugada e a impediam de voltar a dormir. A maioria deles começava da mesma maneira: uma mulher sem rosto era amarrada a um poste, ao seus pés o fogo consumia tudo em seu caminho. A mulher gritava, mas Isolde não podia ver sua boca. O grito se tornava cada vez mais agudo até a menina ser forçada a acordar, ofegante e tremendo.

Trystin temia que o pesadelo fosse um sinal do que poderia acontecer à sua filha no futuro. Mas ele não não era um estudioso, tampouco um bruxo como fora sua esposa Joan e toda a sua linhagem antes dela. Ele era um ferreiro, um homem de poucas palavras, que mal podia compreender a magia. O destino de Isolde não lhe pertencia, ele não tinha poder para controlar os dons dela, que logo se manifestaram.

Ela começou a controlar as chamas e depois a água. Conforme a menina crescia e se tornava uma moça, os elementos começaram a se dobrar ante à vontade dela. Trystin não tinha dúvida de que ela se tornaria tão poderosa quanto sua mãe e avó, e ele se preocupava que, sem alguém para guiá-la, Isolde poderia acabar enforcada ou afogada como muitos inocentes naquela época, como sua avó Agnes.

Em cada esquina da cidade, em cada mercado de rua, ferraria ou estrebaria, havia homens e mulheres de cabelos sebosos e dentes podres prontos a recitar os ensinamentos horrendos do Malleus Maleficarum, o livro que instruía aqueles de fé a identificar e eliminar uma bruxa ou um bruxo. Esses mesmos homens e mulheres muitas vezes acendiam grandes fogueiras nas praças e lançariam no fogo sapos, gatos e qualquer animal que eles acreditassem ser um familiar das bruxas, um emissário do mal. O frenesi estava em toda parte, não apenas em Londres ou em Hatfield Peverel. Isolde ouvia falar sobre julgamentos de bruxas sendo realizados na França, na Espanha e em lugares que ela nunca soube que existiam.

Seu medo dos caçadores de bruxas se tornou raiva. Ela os desprezava com todo o seu coração. Seu pai havia explicado a ela da melhor maneira que podia. Pessoas com mentes pequenas, fantoches nas mãos dos poderosos eram os responsáveis pela morte de milhões de pessoas com sangue mágico. A maioria dessas pessoas, para a infelicidade de Isolde, eram mulheres como ela, com o mesmo sangue que ela possuía. Seu pai não lhe faltara com verdade em momento algum. Enquanto todos em sua antiga vila ainda pintavam as mulheres da família Waterhouse como enviadas do demônio, Trystin não permitiu que a filha crescesse com essa imagem nefasta de sua própria ascendência.

– Claro que existem bruxos e bruxas usando seus poderes para prejudicar as pessoas, para matar, para fazer todos os tipos de maldades, mas há aqueles com corações amáveis. Como sua mãe, como você… – Trystin repetia.

– Está certo de que tenho um coração bondoso, pai? Tudo o que sinto por esses caçadores é um desejo avassalador de transformar todos em cinzas pelo que fizeram à minha avó Agnes – ela replicava.

– Você acha que eu não os odeio, querida? Eles fizeram sua mãe sofrer, me fizeram sofrer e estão fazendo você sofrer. Mas não perca a esperança, Isolde. Depois da tempestade, o sol sempre volta a brilhar. – Trystin sorriu, evidenciando seus poucos dentes e os cabelos que já se tornavam embranquecidos pelo tempo.

Trystin de Ireby muitas vezes encontrou conforto no mais inesperado dos lugares: a igreja. Seu mundo tinha sido virado de cabeça para baixo por arautos da fé. Eles haviam lhe tirado Joan, a luz de sua vida. Ele poderia muito bem desprezar Deus ou qualquer divindade adorada em seu país. Mas no silêncio da igreja, ele encontrou espaço para estar em paz consigo mesmo. Havia muitos redutos de oração em Londres, mas nenhum era como St. Dunstan in the East.

Construída entre jardins e a uma curta distância de onde o pobre ferreiro e sua filha viviam, o pequeno santuário era pouco frequentado até mesmo por aqueles que moravam em suas cercanias. Isolde gostava de lá, a calmaria e os jardins verdes eram para ela um pequeno pedaço do paraíso entre os horrores da grande cidade. Contudo, o que é bom sempre chega ao fim. Certa manhã, enquanto pai e filha ocupavam seus lugares no interior da nave para ouvir as palavras do pároco, Isolde notou a presença de um homem que ela nunca havia visto em St. Dunstan.

Ela teria lhe dado o benefício da dúvida, se o homem não a estivesse encarando fixamente. Instintivamente, ela segurou o braço de seu pai. Mas, tomada pelo medo, seus poderes fugiram ao seu controle. Ela estava perto de seus dezoito anos, lidando com o desconhecido e sem ninguém para guiá-la. Fora apenas uma questão de tempo até algo acontecer. As chamas das velas que iluminavam a igreja se tornaram altas e o fogo começou a subir pelas paredes, o vento começou a uivar e num piscar de olhos, tudo foi tomado pela mais absoluta escuridão. Isolde estava preparada para desencadear sua fúria flamejante naquele homem estranho, quando uma mão suave tocou seu ombro. Era uma senhora alta e bem vestida, que estava de pé atrás dela.

– Acalme-se, criança. Ninguém irá lhe fazer mal enquanto eu estiver aqui – a voz da mulher era suave e tranquilizadora.

Isolde respirou fundo e tentou acalmar sua mente. A igreja gradualmente retornou à sua luz natural, e o homem havia desaparecido. Todos em St. Dunstan estavam mortificados com o acontecido, mas não houve uma só pessoa que se atreveu a falar. Onde normalmente haveria boatos e confusão sobre um ato horrendo de bruxaria cometido numa casa de Deus, havia silêncio.

– Venha, temos que ir agora – a mulher fez sinal para que Isolde a seguisse para fora da igreja.

– Espere! Quem é você? Não sabemos o seu nome. Eu não vou deixar minha filha seguir uma desconhecida – Tristyn interveio a meia voz.

– Pode me chamar de Lady Rhodes. Estive procurando por você por um longo tempo, Tristyn de Ireby.

A menção ao nome pelo qual fora outrora conhecido fez congelar o sangue do homem. Isolde viu o rosto de seu pai tornar-se pálido. Ele não era mais um homem jovem, ele tinha visto muito do mundo e grande parte de suas vivências não eram agradáveis. Isolde cuidou dele da melhor maneira que pôde, mas aquela mulher, aquela Lady Rhodes possuía poder suficiente em suas palavras para cortar o coração dele ao meio.

– O que quer comigo? Eu nunca ouvi falar de você antes, Lady ou não.

– Claro que nunca ouviu. Você é um camponês, um homem simples. Mas eu ouvi sobre você, e sobre sua filha – Lady Rhodes sorriu a Isolde.

– Um ferreiro – a garota sibilou.

– O que você disse, criança?

– Meu pai não é um camponês. Ele é um ferreiro. E embora sejamos gratos pelo que fez, nós não a conhecemos, senhora. E devo dizer que está começando a me assustar.

– Espero que me perdoem. Não era minha intenção ser rude. Mas veja você, pessoas como nós são difíceis de encontrar nos dias de hoje, criança. Sei que entenderá… – A senhora se virou para deixar St. Dunstan junto com os outros fiéis.

– Lady Rhodes, por favor não vá. E se aquele homem retornar? – Isolde a impediu.

– Oh, ele vai voltar. Porém, eu posso levá-la a um lugar seguro. Preciso apenas que confie em mim. Sua avó Agnes confiava, Isolde…

Os olhos da garota quase brilharam. Lady Rhodes era uma bruxa, ela estava convencida que sim. O que mais explicaria sua presença ali, seu conhecimento da vida de Isolde e seu pai, a menção à sua avó? E havia realmente um lugar fora de perigo para as pessoas com poderes. O lugar idílico do qual ouvira falar poderia estar a dias de viagem de Londres, mas Isolde não se importava. Uma vez lá, ela poderia viver protegida da maldade do mundo, poderia até mesmo usar seus poderes livremente, algo que desejava tão ardentemente. Seu pai, já cansado e combalido, poderia descansar e viver o resto de seus dias sem medo.

– Tem a nossa total confiança, Lady Rhodes – ela se curvou ligeiramente.

O que nenhum dos três imaginava era que um fantasma do passado ainda estava muito vivo e pronto para perseguir Isolde e seu pai. Como uma sombra, ele seguiu os passos da menina, posto que o sangue de Agnes Waterhouse corria em suas veias e tal fato não poderia ser tão facilmente ignorado. Enquanto ela vivesse, a magia de seus ancestrais seria preservada e isso era uma heresia. Não havia lugar para a magia no mundo da fé. A magia era veneno, e infelizmente para Isolde, algo que teria de ser erradicado.


II.

A carroça se movia lentamente na estrada de terra. Eles haviam percorrido um longo caminho saindo de Londres, passando por florestas, vilas e outras cidades. Caso houvesse um batedor naquelas terras, ele jamais duvidaria que se tratava de uma simples família viajando ao sudoeste da Inglaterra. As vestimentas elegantes de Lady Rhodes haviam sido trocadas por um vestido simples de linho grosso e uma capa. Quanto a Isolde e seu pai, suas roupas eram as que eles já possuíam.

– Lady Rhodes, estamos viajando a dias… Quando vai nos contar um pouco mais sobre este lugar para onde vamos? – Isolde quebrou o silêncio.

– Você é sempre assim tão curiosa, criança? – A senhora riu.

– Oh sim, milady. Desde o seu primeiro respiro, ela abriu seus grandes olhos castanhos, pronta para ver o mundo – Tristyn se recordou.

– Creio que ficará feliz em ouvir que Wydryn tem o suficiente para você ver, para explorar – Lady Rhodes falou a Isolde.

– Eu gosto desse nome. Wydryn… O que significa?

– Alguns dizem que que significa vidro, outros dizem que significa outra coisa completamente diferente. O nome é antigo, quase tão antigo quanto o tempo, cercado por lendas e histórias de reis e espadas jogadas em lagos. A verdade é que Wydryn não passa de uma cidade, talvez um pouco maior do que a que você nasceu, criança.

– Queira me perdoar, milady, mas um lugar tão comum não passaria despercebido pelos caçadores. Aqueles monstros farejam a magia melhor do que um cão pode sentir o cheiro de uma raposa – Tristyn expressou suas preocupações.

– Eu nunca disse Wydryn era comum. Na verdade, os únicos que podem encontrá-la são aqueles que sabem onde procurar. Tenho certeza que muitos homens e mulheres de fé têm tentado encontrar a nossa cidade, a fim de limpá-la do mal que é a magia, mas nenhum conseguiu – Lady Rhodes explicou.

– Como é possível manter uma cidade inteira em segredo? Deve haver um mapa de algum tipo… – O ferreiro de Ireby ainda não estava convencido.

– Olhem em frente, me digam o que veem…

A senhora interrompeu os devaneios de Tristyn para mostrar ao homem e sua filha algo na estrada. A visão dele não estava tão ruim, mas tudo o que conseguia ver era uma névoa espessa, nada mais. Isolde, no entanto, podia ver tudo claramente. O portão, os muros altos e algo que parecia ser uma torre na distância. Haviam chegado a Wydryn, a cidade de vidro em meio ao nevoeiro.

Isolde segurou a mão de seu pai ao passarem pelo portão. Uma vez nos domínios de Wydryn, o homem foi capaz de ver aquilo que sua filha havia visto. As brumas escondiam a cidade dos indignos, dos caçadores e daqueles que matavam em nome da fé. Não que Wydryn fosse muito diferente dos lugares pelos quais haviam passado e vivido, mas as mulheres da cidade possuíam sorrisos nos rostos, não olhares de terror. Os homens usavam magia para consertar rodas de carroças, para levantar caixas, para forjar espadas. Vestidos eram costurados sem a necessidade das tecelãs sequer segurarem as agulhas. Crianças brincavam com galhos de árvores, balançando-os para o alto e fazendo faíscas brilhantes irromperem das pontas.

Isolde sentia-se tão feliz de estar ali que foi preciso segurar as lágrimas. Sua mãe teria amado aquele lugar. Em vez da cinza e feia Londres, em vez da fria Hatfield Peverel, Wydryn era onde pertenciam as pessoas como ela. O coração de Tristyn estava tão aliviado ao ver a felicidade de Isolde que ele pensou que poderia finalmente descansar em paz sabendo que sua menina estaria segura.

A carroça parou em uma pequena praça onde um grupo aguardava os viajantes. Dois homens muito jovens e bem vestidos acompanhavam um senhor idoso, que usava óculos redondos e tinha cabelos brancos como a neve. Ele sorriu para ela e Isolde soube que sua bondade era genuína. Um dos jovens também lhe sorriu por cortesia, e ela sorriu de volta. O outro apenas se limitou a cruzar os braços e fazer um comentário a meia voz.

– Parece que a senhora sua mãe trouxe para casa uma morta de fome.

Ele certamente pensara que ninguém além do sujeito ao seu lado havia escutado o que dissera, mas Isolde ouvira suas palavras em alto e bom tom, seu sorriso rapidamente tornou-se uma expressão de julgamento. Por sua vez, o cavalheiro sorridente ignorou o que outro havia dito e deu um passo adiante para ajudar Lady Rhodes a descer da carroça.

– Bem vinda de volta, mãe. Espero que tenha feito uma viagem segura. – Mãe e filho se abraçaram.

– O caminho não poderia ter sido mais seguro, meu filho. Estou feliz por estar de volta – ela respondeu.

– E nós estamos contentes de tê-la de volta, Lady Rhodes. Wydryn não é a mesma sem você – a voz do senhor era grave, porém amistosa.

– O que você está esperando, Sevan? Mostre-se útil, ajude nossa jovem senhora… E por favor, não dê muita atenção a ele. Ele sempre foi assim… – o filho de Lady Rhodes comentou com um sorriso zombeteiro nos lábios.

– Ele sempre foi um idiota? Bem, há muitos como ele fora dos muros da sua cidade.

Isolde viu o senhor e Lady Rhodes contendo sorrisos, mas seu filho apenas gargalhou em voz alta. Sevan, o outro jovem, aquele que a havia chamado de morta de fome apenas engoliu em seco e estendeu a mão para ela. Seu toque era firme, mas suas mãos estavam frias. Ela o agradeceu com um aceno de cabeça e virou-se para ajudar seu velho pai. Tristyn suspirou para ela, sabendo que ela era a filha de sua mãe afinal, pois Joan teria dito a mesma coisa sobre a atitude do jovem senhor.

– Acredito que é tempo para as apresentações, minha querida. Sou o Professor Pritchard. Você deve ser Isolde e esse distinto senhor que a acompanha deve ser seu pai, Tristyn. – o senhor se curvou em uma mesura.

Ela nunca havia ouvido falar sobre um professor antes. Ela conhecia rainhas, reis, padres, até mesmo um santo papa. No silêncio de seus pensamentos, Isolde tentou imaginar qual era exatamente o trabalho de um professor e se as pessoas em Wydryn eram todos bruxos como ela.

– Pode me chamar de Eugene. Estou encantado em conhecê-la, Isolde. – o filho de Lady Rhodes se apresentou e beijou a mão de Isolde.

– É uma honra conhecê-los, meus senhores e senhora – ela curvou-se respeitosamente, como lhe fora ensinado.

– Você deve estar se perguntando se as pessoas desta cidade são todas dotadas de magia. Bem, irei lhe responder… Alguns são e alguns não são. Bruxos e comuns vivem em paz aqui, tem sido assim por muito tempo – o Professor disse.

– E existe o Sevan. Não deixe ele te enganar, Lady Ireby. Ele, na verdade, é uma gárgula – Eugene zombou.

– Chega de escárnio, filho. Isolde e seu pai precisam descansar da viagem. Por favor, seja gentil e mostre-lhes o caminho para a nossa casa.

Sevan desviou seu olhar quando Eugene passou por ele e lhe bateu de leve no ombro. Ele esperou Isolde e seu pai passarem por ele, e então os seguiu. Isolde podia sentir os olhos dele em suas costas enquanto caminhavam e a sensação era horrível. Talvez ele fosse realmente uma gárgula, como Eugene havia dito. Uma gárgula não é educada. Uma gárgula não tem boas maneiras. As gárgulas que ela conhecia eram feitas de pedra e adornavam igrejas em Londres. Talvez com alguma magia, uma delas tivesse se transformado em uma pessoa de carne e osso.

Por sorte, seu tormento não durou muito. A casa da família Rhodes poderia facilmente ser ocupada por um duque ou um conde. Era grande, construída em pedra, com um telhado feito de madeira e janelas com vidro colorido. O interior era tão mais impressionante que Isolde quase acreditou estar na corte real. Havia tapetes bordados nas paredes, móveis feitos da melhor madeira e prataria suficiente para forjar um exército de armaduras.

– Todos os bruxos de Wydryn são abastados assim? Lady Rhodes poderia muito bem ser mais rica que a própria rainha – Tristyn não conseguiu segurar sua pergunta.

– Em nossa defesa, esta casa tem estado na família desde que Wydryn foi fundada – Eugene respondeu.

– Então isso quer dizer que seus ancestrais fundaram a cidade? Eu sabia que Lady Rhodes era prestigiosa! – Isolde exclamou.

– Sim e não. Minha família tem de fato vivido aqui desde que este lugar era apenas uma vila. Mas não foram os Rhodes que fundaram Wydryn. Foi o Professor Pritchard. Mas naquela época, ele atendia por um nome que desconheço…

Nem Isolde nem seu pai precisaram perguntar quantos anos o Professor tinha ou quando a cidade fora fundada para perceber que aquele homem que os recebera tão gentilmente na praça possuía mais poder e sabedoria do que qualquer um dos presentes ali, bruxo ou não. Ela teria continuado a fazer perguntas intermináveis a Eugene se o sol não estivesse se pondo e a hora do jantar não estivesse se aproximando.

Uma criada da casa ajudou-a a se instalar em um quarto grande e confortável no piso superior da residência. De sua janela, ela podia ver os campos da cidade e na distância, a torre que havia visto em sua chegada. Os aposentos de seu pai eram um pouco afastados dos dela, no final do corredor, junto aos aposentos de Lady Rhodes. As duas portas que ladeavam a dela eram dos cômodos ocupados por Sevan e Eugene, conforme a criada explicou.

Isolde sentiu-se como uma criança em Hatfield Peverel novamente quando a criada preparou um banho quente para ela e mostrou-lhe um vestido bonito para usar no jantar. Depois dos anos vivendo na miséria de Londres, ela quase havia esquecido a sensação de se lavar com água aquecida, de usar um vestido que não estivesse cheio de remendos, de ter seu cabelo penteado em uma trança. Suas lágrimas se misturaram à água, sua tristeza fora lavada.

Uma Isolde Ireby um tanto mudada desceu para se juntar a seus anfitriões. O vestido carmesim que ela usava pertencera a Lady Rhodes no passado, mas a senhora fizera questão que o mesmo agora fosse dela. Ela sentia-se um pouco desconfortável com o peso do tecido, mas o que realmente a incomodou foi ver Sevan olhando para ela do outro lado da sala de jantar. Nem Eugene nem Lady Rhodes haviam descido, apenas ele. Sevan sem sobrenome, Sevan com cabelo escuro e maus modos. Sevan, a gárgula.

Ela estava em uma encruzilhada naquele momento. Ela podia ignorá-lo ou enfrentá-lo. Ignorá-lo seria o caminho mais fácil, o atalho. Mas enfrentá-lo seria o tapa de luva. Pedir desculpas por tê-lo chamado de idiota e fazê-lo se desculpar por ter a chamado de morta de fome era o caminho certo. Isolde reuniu toda a sua coragem e se postou diante dele.

– Espero que me perdoe por ter lhe chamando de idiota mais cedo, Lord Sevan.

– Lockwood. Se pretende ser formal comigo, precisa saber qual é o meu sobrenome – ele respondeu desajeitadamente.

– Ah, eu entendo… Geralmente, não sou rude, mas não gosto de ser chamada de morta de fome por pessoas desconhecidas. – Ela aguardou triunfante o pedido de desculpas dele.

– Está tudo bem, eu não guardo ressentimentos. Suas desculpas foram aceitas. Mas queira me dar licença, devo cuidar de um assunto antes do jantar – ele a deixou lá, sozinha e sem palavras.

Quando o jantar foi servido, ele retornou e ocupou seu lugar no lado direito da mesa. Isolde ainda estava perplexa com o que ele havia dito. Àquela altura da vida, ela precisou se repreender por ainda estar sendo surpreendida pela grosseria dos ricos e poderosos. Se ao menos sua mãe estivesse lá, Sevan Lockwood teria sido atingido por um relâmpago, sem dúvida.

– Amanhã eu gostaria que você conhecesse o outro membro da Assembleia, Isolde. Professor Pritchard falou com ele, e ele está bastante ansioso para conhecê-la, para testar seus poderes – Lady Rhodes comentou durante o jantar.

– Assembleia? O que isso significa? – A garota estava visivelmente confusa.

– Permita-me explicar. Enquanto a Inglaterra é governada por uma rainha, Wydryn é governada por um conjunto de cinco bruxos, os dotados de maior poder entre os demais, chamado de Assembleia. Quatro dos membros você já conheceu: eu minha mãe, o Professor Pritchard e o nosso amigo gárgula Sevan. Portanto, há apenas um membro para você conhecer. E ele é particularmente afeiçoado aos talentos brilhantes que minha mãe encontra e… – Eugene foi interrompido bruscamente.

– Quantas vezes eu lhe pedi para não me chamar de gárgula? – a voz de Sevan estava alterada.

– Oh, incontáveis vezes, meu amigo. Mas é realmente engraçado ver você com raiva, então eu nunca parei – Eugene ria-se.

– Parem de agir como bárbaros! Vocês são bruxos, comportem-se como tal.

Então Lord Lockwood possuía sentimentos afinal, pensou Isolde. Ela apenas trocou olhares com seu pai, algo que eles haviam aprendido a fazer devido às circunstâncias da vida em Londres. Tristyn permaneceu em silêncio enquanto Eugene explicava a natureza da vida em Wydryn, já que ele conhecia muito pouco do mundo da magia e bruxaria. Joan nunca tinha compartilhado muito depois da morte de sua mãe. E mesmo antes, Mãe Waterhouse sabia que era insensato sair por aí espalhando segredos. Tudo que Tristyn de Ireby sabia era que, com magia ou não, todos ali ainda eram seres humanos. Aquele fora seu último pensamento sobre o assunto naquela noite.


III.

– Então esta é a garota de quem ouvimos tanto falar. A neta de Agnes Waterhouse. A jovem bruxa que não conseguiram queimar – a voz firme ecoou na escuridão da torre.

– Deixe de drama, Kinloch. Vai assustar a moça. – Eugene bateu palmas e as velas no salão se acenderam novamente.

O sol já havia surgido, mas Isolde percebeu que as pequenas janelas da torre que vislumbrara em sua chegada a Wydryn não permitiam que muita luz entrasse, por isso o uso das velas. A construção não era muito alta, mas poder ver seu interior satisfez a curiosidade dela.

No centro do salão havia uma mesa redonda com a estrela de cinco pontas pintada em ouro. E, obviamente, cinco cadeiras estavam lá, para os cinco membros da Assembléia. O dono da voz firme não demorou a aparecer. O homem a quem Eugene havia chamado Kinloch possuía cabelo grisalho e barba. Suas vestes eram simples e ele estava carregando livros encadernados em couro e rolos de pergaminho.

– Onde está a sua sombra, rapaz? – Kinloch indagou a Eugene antes de gargalhar sonoramente.

– Sevan está esperando lá fora. Mas onde estão as suas maneiras, velho? Apresente-se corretamente – o filho de Lady Rhodes respondeu, acenando com a cabeça na direção de Isolde.

– Muito bem, então… Este rapaz aqui e o amigo dele que está lá fora me chamam de Kinloch. Pode me chamar de Acheron, milady – ele colocou os livros em uma pilha de canto e se aproximou de Isolde.

– Não sou uma lady. Insisto que me chame apenas de Isolde – ela sorriu.

– Como quiser, Isolde… Mas o que diabos aquele garoto está fazendo lá fora? Ele está assim com tanto medo de ser humilhado pelos poderes desta menina? – Acheron se virou para Eugene.

– Não seja tão duro com ele, velho. Eu vou buscá-lo. – Eugene se curvou e saiu.

– Você deve ter dito algo realmente ofensivo para assustá-lo… – Acheron falou a Isolde.

– Eu… Eu o chamei de idiota – ela corou ao responder.

– Que maravilhoso começo você está tendo aqui, minha querida… Tenho certeza que está provavelmente pensando que as coisas estão acontecendo rápido demais para você e de fato elas estão. Mas tudo seria diferente se Ealish houvesse conseguido trazê-la aqui quando era bebê. Mas sua avó e sua mãe não permitiram. Então, ela continuou a acompanhar você à distância. Só que tudo ficou imensamente mais complicado depois da morte de sua mãe. Você simplesmente desapareceu, menina. Ealish te encontrar em Londres foi puro acaso. – suas revelações a fizeram perder o fôlego por um instante.

– Por Ealish você quer dizer Lady Rhodes? Ela queria que eu vivesse aqui desde bebê? Por quê?

– Porque este é o único lugar realmente seguro para bruxas e bruxos. Você pode não saber, mas nestas veias corre o sangue de uma das bruxas mais poderosas que já viveu, Agnes Waterhouse – Acheron segurou a mão de Isolde com gentileza.

– Parece que todo mundo nesta cidade me conhecia, menos eu.

– Você não deve se prender a um passado que nunca aconteceu, criança. O que importa é que você está aqui agora… Então venha, me mostre o que você pode fazer.

Havia um grande campo em torno da torre de Wydryn. De onde estava, Isolde sentia-se no topo do mundo. Ela podia ver os muros que cercavam a cidade, a névoa ao longe e a vida que continuava a seguir seu curso, apesar da loucura no mundo lá fora.

– Você gosta de animais, menina? – Acheron indagou.

– Creio que sim. Minha mãe nunca me permitiu ter um. Mas acho que teria gostado de ter um gato ou um pássaro.

– Excelente! Você vai se sair muito bem então… Está vendo os dois idiotas ali com suas luvas de falcoaria? Aposto que você consegue chamar os meus falcões de volta antes que eles o façam.

Isolde nunca havia lidado com aves como águias e falcões antes. Apenas com galinhas, quando seu pai tinha a sorte de conseguir uma. Mas ela havia visto como os cavaleiros da rainha faziam. Levando dois dedos entre os dentes, ela assobiou alto. O som agudo encheu o ar, e momentos depois, do topo da torre os dois falcões desceram voando imediatamente, como se convocados por magia. Sevan e Eugene estenderam os braços com a luva, mas as aves os ignoraram. Batendo suas asas, ambos pousaram no parapeito da janela atrás de Isolde.

– Bravo! Bravo, minha querida! Viram isso, parvos? Ela tem o dom! – Acheron batia palmas e sorria satisfeito.

– Não foi nada, realmente. Meu pai costuma dizer que minha avó Agnes era capaz de se transformar em qualquer animal que desejasse, por isso pensei que valia a pena tentar – Isolde se justificou.

– Enfim, foi uma tentativa muito impressionante. Agora, eu gostaria de ver o quão bem você se defende. Eugene, um passo à frente. Mostre a ela o que você aprendeu, se é que aprendeu alguma coisa! – Acheron tomou distância.

O filho Lady Rhodes inspirou profundamente para se concentrar e uniu suas mãos pelas palmas. Faíscas começaram a voar conforme uma esfera flamejante crescia por entre os dedos dele. O sorriso em seu rosto não era mais o amistoso de sempre. Estava claro que ele não tinha nenhuma intenção de facilitar as coisas para Isolde. Ela teve de reagir por reflexo para repelir a bola de fogo lançada em sua direção. O ataque quase a atingiu, mas ela conseguiu bloqueá-lo atirando o orbe de chamas para o alto.

– É a sua vez agora, Sevan – Acheron não deu tempo para Isolde sequer respirar.

Sevan fechou os olhos e assumiu uma posição de ataque. Isolde sentiu a terra sob seus pés tremer e as nuvens no céu se tornaram escuras. Ela sentiu o ar tornar-se pesado, era difícil respirar. Sua garganta começou a se fechar com a pressão e seus joelhos mal podiam sustentar o peso de seu corpo. E então, o ataque veio. Todo o ar que ela não conseguia respirar a atingiu como um turbilhão. Ela foi atirada para trás violentamente e bateu com a cabeça no chão. A alegria de Acheron se tornou preocupação. Ele correu em direção a Isolde e a ajudou a se levantar.

– Você perdeu o juízo? Poderia tê-la matado! – Eugene gritou com raiva para Sevan.

– Kinloch disse que eu estava com medo dela. Eu não estava com medo… Eu só queria… – ele tentou se explicar.

– Você só queria machucá-la porque ela chamou você de idiota? Adivinhe só, você é um idiota! – Eugene não estava brincando.

– Estou bem agora, está tudo bem. Eu não guardo ressentimentos. Está tudo bem, Eugene – a voz de Isolde vacilou.

– Nada está bem, Lady Ireby. Ele poderia tê-la ferido gravemente – Eugene bufou.

– Por favor, não importa agora. Estou bem e…

Ela deu um passo a frente e soltou da mão de Acheron. Ela pensou que podia caminhar de volta para casa, mas a magia de Sevan acabou se mostrando mais poderosa do que o imaginado. Sua visão ficou turva e Isolde perdeu os sentidos. Ironicamente, como muitas coisas na vida, a mesma pessoa responsável por drenar suas forças segurou-a e a impediu de cair novamente.

– Eu nunca quis machucá-la, Kinloch. Você tem que acreditar em mim – Sevan se explicava. Em seus braços, Isolde permanecia desmaiada.

– Acreditar ou não em suas intenções não cabe a mim, jovem Lockwood. Cabe a ela. – Acheron respondeu.

– Talvez quando ela acordar você possa dizer a ela o quão certa ela estava sobre você. E para o seu bem, espero que ela te perdoe – Eugene sibilou.

O ronco de seu estômago fez Isolde acordar. Ela não fazia ideia de por quanto tempo esteve desfalecida, a única coisa que ela tinha certeza era de que estava com fome. Depois de abrir os olhos, ela percebeu que estava de volta à casa dos Rhodes, deitada em sua cama. A julgar pela vista de sua janela, o sol ia alto no céu indicando que a hora do almoço havia passado. Somente de tentar reclinar a cabeça dos travesseiros para levantar, Isolde percebeu que tudo voltava a girar. Que magia maldita fora aquela que Sevan lhe lançara? Ela mal conseguia se apoiar sobre seus cotovelos.

– Tente não se mexer muito. Seu mal estar passará em breve, tenho certeza. – Sevan estava sentado perto da cama, sua expressão era de desassossego.

– É melhor passar. Eu odiaria perder o jantar – ela tentou sorrir.

– Eu foi imprudente. Eu deveria saber que você não estava preparada para aquele nível de magia… Mas você defendeu o ataque de Eugene perfeitamente – ele tentou se justificar.

– Lord Lockwood, eu estava falando sério quando disse que não tenho nenhum rancor de você. Não mais.

– Fico aliviado de ouvir isso, milady. Eu realmente fico… – Isolde percebeu que ele estava inquieto com o rumo da conversa.

– Eu mal o conheço, tomamos conhecimento um do outro menos de um dia atrás, mas posso dizer que não é do tipo que pede desculpas. Mas está tudo bem, já vi pessoas fazendo coisas muito piores do que lançar um encantamento e eu aposto que pedir perdão nunca passou pelas mentes deles – ela desviou o olhar para o teto.

– Sinto muito – Sevan quase sussurrou.

– O que você disse? Eu não ouvi muito bem. – Isolde não estava brincando com ele, de fato, ela não ouvira o que ele havia dito.

– Me comportei como um selvagem com você. E você não fez nada para merecer tal tratamento. Eugene está certo, eu sou um idiota e irei compreender caso decida não aceitar minhas mais sinceras desculpas. Eu sinto muito, Lady Ireby – ele se levantou e estava pronto para sair quando Isolde o chamou de volta.

– Muito obrigada… – Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

– Maravilhoso. Eu a fiz chorar, realmente me sinto como uma gárgula agora. – ele escondeu o rosto entre as mãos.

– Ah não, não. Estas são lágrimas felizes, porque agora sei que você definitivamente não é uma gárgula. Quem me fez chorar de tristeza foram os que destruíram minha família, que forçaram meu pai e a mim a viver uma vida miserável. Esses nunca se importaram em assassinar pessoas, nunca se preocuparam com as crianças deixadas sem pais, com as pessoas que morreriam de fome. Esses sim são selvagens. Você não é. – Isolde estendeu a mão a ele.

Sevan segurou a mão dela por um momento, em seguida, beijou-a com suavidade. Aquele era o eu verdadeiro dele, era o que Isolde esperava. Não um bruxo ressentido e sem qualquer consideração para com os sentimentos dos outros. E nos dias que se passaram, ela descobriu mais sobre quem ele realmente era. Tudo graças a Eugene. O filho de Lady Rhodes não possuía travas em sua língua e era lascivo com seus sorrisos. Sevan, embora a tratasse com cortesia, nunca sorria ou falava de si.

Certa noite, eles receberam a notícia de que o Professor Pritchard deixaria Wydryn por um tempo. Seu destino era desconhecido, mas Isolde estava convencida de que nada de ruim iria acontecer na sua ausência. Mas Eugene pensava diferente. Ele a convidou para um passeio sob o luar, com a desculpa de que ela nunca havia visto nada mais bonito do que o céu noturno de Wydryn.

– A última vez que o Professor deixou a cidade, algo terrível aconteceu – ele principiou.

– Eu sabia que estava morrendo de vontade de me dizer algo, Lord Rhodes. O que pode ser assim tão sigiloso que os outros não possam ouvir?

– Você deve me prometer que não vai contar a ninguém, nem mesmo a seu pai. E o mais importante, não deixe a sua compaixão transparecer. Você promete?

– Tem a minha palavra! Farei como me pede.

– Muito bem, então… Vou lhe dizer o que aconteceu. A mãe de Sevan era uma amiga próxima da minha mãe. Elas sempre viajavam juntas à procura de jovens bruxos e bruxas que estivessem em perigo. Em uma dessas viagens, Lady Lockwood conheceu um homem, um bruxo com uma reputação não muito respeitável. Ela se apaixonou por ele mesmo assim e decidiu se casar e viver com ele. Um dia, quando Sevan era pequeno, ela decidiu voltar para casa, para Wydryn. O pai de Sevan a proibiu, então ela fugiu com o menino. Ela esperava que o Professor Pritchard fosse protegê-la e seu filho, mas ele estava fora da cidade. O homem se aproveitou disso e colocou os portões da cidade abaixo, ele teria destruído tudo em Wydryn com sua magia.

– O que o fez parar? – Isolde estava demasiado assustada com o relato para perguntar qualquer outra coisa.

– Acheron Kinloch o fez parar. Mas, infelizmente, não antes do facínora ter matado pelo menos uma dúzia de pessoas inocentes, incluindo sua própria esposa e George Rhodes, meu pai… – A voz de Eugene alquebrou.

– Oh, Eugene, não posso acreditar. É tão terrível… Pobre Sevan, sinto tanto por ele – Isolde deixou as lágrimas marcarem seu rosto.

– Ele renegou o sobrenome de seu pai e tudo relacionado a ele. É por essa razão que você nunca deve demonstrar que sabe sobre os horrores no passado dele. Nunca! – Eugene a segurou pelos ombros e olhou firme em seus olhos.

– Eu… Eu não sei se conseguirei – ela soluçou.

– Ignore-o, seja rude, faça o que for preciso!

– Você está pedindo o impossível!

– Ele acredita ser amaldiçoado, Isolde. Se você lhe revelar o que eu disse, ele pode muito bem se virar contra nós. E você sentiu em sua própria carne a extensão dos poderes dele.

Isolde se recusou a ouvir mais. Sevan não era um monstro. Os monstros estavam lá fora, eles haviam assassinado sua avó, destruído sua casa, feito sua mãe sofrer. Sevan era como ela, uma alma gentil torturada pelos erros dos outros. Ela queria consolá-lo, lhe dizer que ele era bom. Ela vira-o em seu momento mais vulnerável, ele confiara nela. Como ela poderia fingir ser cega diante do sofrimento ininterrupto dele? Isolde acreditava ser incapaz de fingir, mas assim que voltou para casa e o viu com a face escurecida pela noite, ela se lembrou do homem na igreja, aquele que a assustara e fizera seus poderes saírem do controle. Sevan poderia tornar-se como ele. Ele poderia se voltar contra ela, contra seu pai.

Para evitar tal tragédia, ela colocou uma máscara. Seus sorrisos se tornaram falsos, praticados na frente do espelho. Ela se tornou próxima de Eugene, alguém a quem ela podia confiar sua angústia por tratar Sevan de maneira tão distante. Ao lado de Tristyn, ela passava horas no jardim ou caminhando com ele pela cidade. Quando não estava com eles, estava com Acheron, aprendendo o que podia sobre a magia antiga que protegia Wydryn.

Infelizmente, o dia tão temido havia chegado, quando o Professor Pritchard acenou a todos em despedida e partiu em sua jornada. E, para o desespero de Isolde, foi o dia em que a tempestade se abateu novamente sobre Wydryn. Tudo começou com uma nuvem escura no céu, então veio a chuva. Ela odiava chuva, especialmente quando a mesma vinha acompanhada de trovoadas. Relâmpagos como os que ela via pela janela fechada haviam rasgado o céu no dia que sua mãe morrera. Ela já estava aflita por demais quando Sevan a procurara. Ele podia ver o medo nos olhos dela, suas mãos tremiam, Isolde não estava nada bem.

– Qual é o problema, Lady Ireby? – Ele perguntara gentilmente.

– Em Londres, sempre que chovia e relâmpagos como estes caíam do céu, meu pai me dizia para lembrar da igreja que sempre visitávamos, com jardins verdes e flores. Isso costumava me acalmar… – Ela desvelou.

– Que curioso, uma bruxa que ia à igreja. Você rezava, Lady Ireby? Como as pessoas comuns?

– Eu nunca pedi nada, não para mim. Mesmo vivendo uma vida miserável, existiam outros menos favorecidos do que eu. Outros com passados muito piores que o meu… – Ela lutou contra as lágrimas que enchiam seus olhos.

– Eugene… Ele lhe contou sobre mim, sobre meus pais… É por isso que tem se mantido afastada, não é? – Sevan respirou fundo, a raiva crescia em seu peito.

– Eu queria contar a verdade, mas não podia. Não sem que você me odiasse por isso. Sevan, por favor…

– Achou que eu iria odiá-la? Você, de todas as pessoas… Você me fez acreditar que eu tinha um coração e para quê? Apenas para quebrá-lo – ele deu as costas a ela e saiu porta afora antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.

– Sevan, espere!

Quando tentou o alcançar, Isolde percebeu que ele não estava em parte alguma à vista. Seu vestido estava encharcado antes mesmo que ela chegasse aos portões da cidade. Foi então que o pandemônio começou. As ruas estavam vazias, Sevan havia desaparecido. Ela teria voltado para a casa dos Rhodes quando uma figura envolta num manto escuro saiu das sombras e se mostrou para ela. O homem era careca e seu rosto era marcado por uma cicatriz. Isolde havia visto aquele rosto, ela nunca o esquecera. O homem em St. Dunstan, aquele que a fizera se sentir tão amedrontada quanto uma lebre frente a um lobo.

– Você pode correr, mas não pode se esconder de mim – a voz dele era aterradora.

– Quem é você? Como encontrou este lugar? – Ela reuniu sua coragem para perguntar.

– Eu sempre soube desse lugar, das aberrações que viviam aqui. Todos vocês merecem arder nas chamas do inferno! – Ele bradou.

– Você é um caçador… Você é a aberração! – Isolde o acusou.

– Eu sou muito mais do que um caçador. Eu sou um purificador. Sua avó me amaldiçoou, por isso eu fiz com que a enforcassem… Sim, sua bruxa imunda. Eu conheço você. Você é Isolde Ireby, filha de Joan, neta de Mãe Waterhouse – ele gargalhou.

– E eu sei o seu nome, seu monstro! Você é William Fynne, por causa de você a minha família foi destruída! – Isolde sentia a ira a dominar.

– O que você vai fazer sobre isso? Seu precioso Professor está fora, não há ninguém para salvá-la agora – Fynne zombou dela.

– Não sou eu quem precisa ser salva. É você!

Isolde tentou atingi-lo primeiro com uma bola de fogo, da qual ele se esquivou. Ela continuou tentando acertá-lo com toda a sua magia, mas ele estava sempre defendendo seus ataques. Ela foi pega de surpresa quando ele arrancou um bloco de terra do chão e o lançou contra ela. Com assombro, ela constatou que aquele homem William Fynne não era um caçador de bruxas comum, ele era um bruxo disposto a destruir a cidade, tal como o pai de Sevan. Ela tinha de detê-lo, mesmo que isso custasse sua vida.

Mesmo com a chuva ainda a cair e com os raios ainda a lhe assombrarem, sua mente começou a trabalhar em um encantamento, aquele que Acheron usara para deter o sicário pai de Sevan, mas ela só poderia utilizá-lo uma vez. Seria preciso que alguém distraísse Fynne para que ela pudesse atingi-lo. Mas não havia ninguém. Os moradores de Wydryn estavam seguros dentro de suas casas, ela não desejava que ninguém fosse pego no meio da batalha.

– Isolde! Onde está você? – ela ouviu a voz de Eugene não muito longe.

– Deve ser meu dia de sorte. Aí vem outro cordeiro para o abate – Fynne se vangloriou.

– Eugene! Não se aproxime! É muito perigoso. Volte, por favor! Encontre Sevan. Encontre-o e mantenha-o o mais longe possível deste lugar! Eu te imploro! – Era tarde demais, o filho de Lady Rhodes já estava ao lado dela.

– Não vou deixar você ficar com toda a diversão, minha cara. Diga-me, como pretende derrotar esse rufião? – Ele riu e se preparou para atacar.

– Vocês dois são muito fracos para me derrotar, são como formigas e eu sou um tigre! – Fynne arremessou Eugene para trás com um segundo bloco de terra, deixando Isolde isolada.

– Seu desgraçado. Já tive bastante de você! – Ela sabia que se não o atacasse o quanto antes, seria derrotada.

Unindo suas mãos como Acheron a havia ensinado, Isolde tentou conjurar o relâmpago de plasma. Fynne sentiu que aquele seria o embate final entre eles e usou seus próprios poderes para criar uma enorme bola de fogo. Ele iria atingi-la antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, quando o ar congelou dentro de seus pulmões.

– Isolde, você pode fazer isso! Acerte-o! – Ela achou que Eugene já estava de pé e bem novamente, em vez disso, era Sevan quem a estava ajudando.

– Eu pensei que havia perdido você… – Ela falou a ele.

– Não vai se livrar de mim tão facilmente, Lady Ireby. – Pela primeira vez, Sevan sorriu para ela.

O sorriso dele era como um céu cheio de estrelas, e ela seria capaz contemplá-lo até o fim de seus dias. Mas, primeiro, William Fynne teria de ser derrotado. Isolde sabia que o ataque de Sevan não seria capaz de deter o poder de Fynne sozinho. Então, ela concentrou toda a sua energia naquele relâmpago. Ela ignorou o sangue que lhe escorria do nariz, ignorou o cansaço, ignorou tudo.

– Vá para o inferno, seu monstro!

Fino como uma flecha, ela lançou o encantamento de Acheron na direção do homem responsável por arruinar a vida de sua mãe, de sua avó, de sua família. Atingido no peito, o corpo dele explodiu em fagulhas contra os portões de Wydryn, arrancando a madeira das dobradiças e queimando o chão.

Mas, finalmente, ela soube que o havia derrotado. Ela poderia deixar seu corpo cair no chão, poderia deixar que a chuva continuasse a cair sobre ela, poderia deixar sua consciência se esvair pelo esforço, não havia mais nada a temer. As mulheres de sua família poderiam descansar em paz agora, tudo estava acabado…


IV.

Isolde Ireby nunca apreciara tanto algo em sua vida quanto a sensação de ter a cabeça encostada num travesseiro macio. Outra coisa que ela havia aprendido a apreciar em sua nova vida em Wydryn era a companhia de Sevan Lockwood. Ele esteve ao lado dela e de Eugene quando lutaram contra William Fynne, e esteve ao lado de seu pai enquanto ela se recuperava. Ou assim lhe fora dito. Ela se lembrava muito mal daquele dia, que havia começado de maneira desastrosa e terminado com uma vitória.

Suas memórias começavam quando ela acordara, dias depois do duelo, com a luz dos sol banhando seu rosto e seu quarto abarrotado de pessoas. Eugene estava com uma bandagem em volta da cabeça, Lady Rhodes lhe sorria bondosamente, seu pai chorava de alívio, Kinloch lhe dissera que estava orgulhoso dela. Apenas Sevan estava ausente.

– Sei perfeitamente quem é que você está procurando. – Eugene lhe sorriu e afagou sua bandagem.

– Ele está aí fora, não está? Esperando que eu não vá perceber. – ela idagou a Acheron.

– Na verdade, ele passou a maior parte do tempo aqui, sentado ao seu lado. Ele saiu somente agora, para que pudéssemos entrar. – o pai dela revelou.

– Lord Lockwood, podemos conversar? – Isolde o chamou.

Sevan entrou no quarto com a cabeça baixa e as mãos atrás do corpo. Ele não estava acostumado a ser o centro das atenções, tampouco esperava que Isolde lhe chamasse tão prontamente. Acheron lhe deu um tapa nas costas capaz de entortar sua espinha, mas ele já era acostumado àquilo. Ele se endireitou e deixou suas mãos aparecerem ao lado do corpo. Num conforme silencioso, Lady Rhodes e Acheron deixaram o quarto, assim como Tristyn e Eugene, que o fez a contragosto.

– Como se sente, Lady Ireby? – ela fez sinal para que ele se sentasse ao lado dela na cama.

– Não faz muito tempo que comecei a pensar em você e em Eugene. E acho que posso anunciar que finalmente cheguei a uma conclusão. Gostaria de ouvi-la?

– Absolutamente sim. – ele se curvou para escutá-la.

– Quando Eugene sorri é como se eu visse a luz do sol, tão brilhante e cheia de vida. Quando você sorri, é como se eu estivesse olhando para um céu escuro, sem nuvens, com milhares de pequenas estrelas cintilantes e… – Sevan a interrompeu.

– Não há necessidade de continuar, entendo o que quer dizer, Lady Ireby. Eu deveria ter percebido isso antes, você e Eugene. Ele estava lá com você quando tudo aconteceu, ele sempre esteve com você desde o começo, sempre tão galante e… – Isolde o interrompeu antes que ele completasse seu raciocínio.

– Lord Lockwood, por favor, seja gentil e me pergunte qual eu prefiro: a luz do sol ou as estrelas.

– Qual deles você prefere, Lady Ireby? A luz do sol ou as estrelas? – ele indagou cabisbaixo.

– Com Eugene eu teria uma infinidade de sorrisos para preencher os meus dias. Mas nenhum deles me faria tão feliz quanto apenas um sorriso seu. Se eu pudesse trocar toda a luz do sol no mundo por um céu cheio de estrelas, eu trocaria.

Isolde estendeu os braços para acolher Sevan. Ele inclinou-se para ela, com os braços ao redor dela, a cabeça contra seu peito e os olhos fechados. Ele nunca havia se sentido tão feliz em sua vida. Depois dos danos causados a Wydryn pelo homem que um dia ele chamara de pai, Sevan crescera com a impressão que ele próprio havia tornado-se um monstro, que as pessoas acreditavam que ele nascera um monstro em pessoa. Por um longo período, as pessoas em geral acreditavam que ele era, desde sua infância, um pequeno monstro feio, para o qual ninguém conseguia olhar sem sentir medo.

Mas na segurança do abraço de Isolde Ireby, ele era apenas Sevan. Como a boa bruxa que ela era, ela havia enfeitiçado seu corpo e sua alma desde o primeiro momento em que a vira. Mas como a maioria das coisas na vida, ele só percebera o que seu coração vinha tentando lhe dizer quando era quase tarde demais. Ele seria para sempre grato pela existência dela em sua vida. Ela havia salvado não apenas a si mesma, ela o havia salvado também.

– Você me ama, Isolde? Verdadeiramente? – ele não desfez o laço entre eles.

– Eu amo, Sevan. Talvez eu sempre tenha.

Ela o puxou mais para perto de si e fechou os olhos. Tudo estava bem.

Author: M. M Drack

Além de escritora, M.M Drack é blogueira e tradutora. Nascida em 1991, essa singela representante da raça dos hobbits, que atende pelo nome de Mariana, é graduada em Jornalismo e Tradução atualmente estuda Língua e Literatura Italiana na Universidade Federal de Juiz de Fora. Nerd assumida, suas paixões vão desde a galáxia muito, muito distante de Star Wars às bonitas paragens da Terra Média, tudo isso passando por Gotham, Asgard, a ponte da U.S.S Enterprise e Hogwarts.

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