O Vento do Oeste

Já se passaram dez anos, mas eu me lembro de tudo como se tivesse acontecido ontem. Safiah din naan, é como se diz em Sawad. “Pela vontade da Deusa”. Talvez tenha sido uma das únicas vezes em que me senti guiado por ela e não pelos ventos traiçoeiros de Bahaal’zar.

Aconteceu quando eu abandonei de vez Qasar. Quantas vezes minha mãe, minha pobre ammah, não havia peregrinado de tribo em tribo, buscando um lar que nos aceitasse de vez. Fomos nômades como tantas tribos de Sawad o são, mas nem mesmo os andarilhos da areia nos aceitavam quando percebiam que eu não adoecia nunca, nem mesmo quando os ventos da febre vermelha sopravam. Não levava muito mais que um ano para que percebessem que eu era um Ahmar. É assim que eles chamam os filhos de Bahaal’zar, o demônio do vento.

Minha ammah nunca se recuperou completamente do que aconteceu a ela. Quando tinha quinze anos, ela desapareceu da casa paterna sem deixar vestígios e reapareceu, uma lua depois, sem saber o que havia acontecido. Bastaram mais duas luas para que ela e sua ammah percebessem que carregava um filho. Tenho certeza de que ela tentou me tirar de seu ventre. Mas os Ahmar não são assim tão fáceis de matar, mesmo quando ainda não podem se proteger sozinhos. Bahaal’zar cuida disso.

A partir de então, a ruína recaiu sobre a família Nafsaji, minha família. Dizem que isso acontece quando nasce um Ahmar. Meus avós perderam tudo o que tinham, a doença matou minha abbulah, e minha mãe, Amina, foi expulsa de Ayyub, nossa tribo. De alguma forma, ela encontrou forças para continuar me amando e frequentemente dizia que esquecera que eu era um Ahmar depois que viu meus olhos se abrirem pela primeira vez. Me dizia que jamais vira olhos tão bonitos em toda a sua vida, negros como a noite sem Lua. “Foi um anjo do vento que me levou e me deu um filho, e não Bahaal’zar. Você é um anjo, meu pequeno naleen”.

Jamais dei ouvidos a ela, é claro. Sabia muito bem o que eu era. Por onde passávamos, lá estava a desgraça atrás de nós e a dor nos olhos de minha ammah. Chegaram a jogar pedras nela uma vez. Amante de Bahaal’zar, meretriz da desgraça. Aquele dia eu a vi chorar, chorar muito. Não tanto pelas pedradas que levara, mas sim porque eu quase morrera ao tentar defendê-la. Apanhei como um cachorro sarnento de um grupo de homens enquanto outros três a seguravam e ela berrava desesperada. Foi um velho encarquilhado que parou tudo, o ancião daquela tribo, uma entre tantas. Ele nos levou para dentro de sua casa, mas pediu que partíssemos em alguns dias. Eles nos matariam se permanecêssemos ali, e o velho não poderia segurar a tribo inteira por muito tempo. Ali ninguém gostava de Ahmar. Em toda Qasar, ninguém gostava dos Ahmar.

Passamos anos sem ter um rumo, um lar para chamar de nosso. Isso adoeceu minha ammah. Eu sei que ela partiu porque seu coração definhou de tristeza. Amina Nafsaji morreu na pequena tribo de Sannat, um grupo de gente com crenças estranhas que não se importava tanto comigo, mas que também não fazia questão de que eu ficasse por lá. Eu tinha dezesseis anos na época e finalmente senti que Qasar não tinha mais nada para mim. Resolvi partir, mas precisava me preparar. Em minha vantagem havia o fato de que já sabia fingir melhor e conseguia esconder minha condição por mais tempo.

Fiquei por um período com os andarilhos da areia, servindo como cuidador de camelos e pastor dos rebanhos que eles vivem a guiar em busca de água. Também íamos a todo tipo de feira fazer negócios. Eu vendia lã de camelo e em dois anos juntei dinheiro o bastante para comprar uma espada. Quando completei vinte, finalmente decidi ir a Qasif, a confederação do leste, decidido a me tornar um guerreiro Ansat, um guardião, na maior cidade de toda Sawad, Murad. Eu ouvia falar deles desde que era um menino, mas uma vez, na feira de Sasnit, escutei de um mercador algo que me deixou perplexo. Ele disse que em Murad eles aceitavam os Ahmar. De verdade.

Lá eles aceitam gente desta laia. Há até Ahmar entre os Ansat. Você acredita numa coisa destas? Não é algo que se comente muito, mas todos sabem. Depois de cuspir no chão com uma expressão de asco, ele se foi, mas aquelas palavras acenderam em mim uma esperança que há muito não sentia. Eu tinha uma profunda vontade de ser alguém que não precisasse se esconder o tempo todo. Embora ela me amasse, nunca havia sido motivo de orgulho e felicidade para minha ammah. Quem sabe pudesse ter uma vida de verdade, em nome dela e de minha família. Eu não podia me tornar mais sábio, mais inteligente ou menos Ahmar, mas podia treinar para ser um guerreiro respeitável. Foi naquele momento que eu realmente resolvi partir, para não mais voltar, se possível. Depois de chegar em Qasif, eu fui rumo a Murad.

No caminho para a cidade, meu brando entusiasmo — eu me acostumara a não esperar muito das coisas, mesmo quando apostava todas as minhas moedas nelas — foi diminuído pela fome e pela sede. Eu demorava mais tempo para ser atingido por essas sensações, é verdade, e já ouvira dizer que os Ahmar não morrem destes males, mas jamais me atrevera a tentar comprovar se era verdade ou não. No entanto, foi exatamente esta condição especial que fez com que eu fosse descuidado, não me abastecendo de suprimentos o bastante. Há muitos dias não encontrava um poço, e a carne seca acabara há mais de uma semana.

Tentei encontrar um escorpião que fosse, mas o deserto parecia mais árido e sem vida do que nunca. Meu camelo — que eu roubara, Safiah me perdoe — ainda estava bem, e suas fezes secas me ajudavam a fazer fogueiras nas noites frias do deserto. Não que eu sentisse muito frio, mas eu me acostumara a fingir todas as sensações possíveis, até mesmo quando estava sozinho.

Em algum momento, a fome e a sede começaram a me provocar muito incômodo. Por um lado, até me senti feliz por saber que havia esse traço de humanidade em mim. Certo dia, em um acesso de loucura, cheguei a gritar para os ventos sempre constantes, rindo como um idiota: está vendo, Bahaal’zar? Não sou seu filho! Sou filho de Amina Nafsaji e do deserto de Sawad! Sou feito de carne e ossos e de areia! Não pertenço a você, maldito demônio do vento!

Como fui estúpido. Não se deve provocar a fúria de Bahaal’zar, é o que dizem. Depois de ter gritado isso, fui pego de surpresa por uma tempestade de areia, súbita e bastante violenta. Não tive tempo algum de me preparar, mas sabia que podia confiar em meu camelo. Ergui o tecido de minha cafia atabalhoado, de modo a cobrir o nariz, e tentei fazer com que o camelo se sentasse para me proteger ao lado dele, usando sua corcova salvadora como escudo.

E então o maldito começou a correr. Ele correu de mim, em meio à tempestade, e imaginei que eu estava vendo coisas. Ou então que meu camelo não passava de uma manifestação de Bahaal’zar, porque ele me abandonou exatamente quando mais precisava dele. Seria um castigo por roubá-lo? Eu achava que já bastava de castigos.

Não posso dizer o que levou meu companheiro a fazer aquilo, tudo o que sei é que naquele momento fui tomado por uma sensação de desalento. Parecia impossível trilhar o caminho do destino com meus próprios passos. Estava cansado da sombra de meu suposto “pai”, cansado de ser um Ahmar, um proscrito. Comecei a pensar que, se aquela tempestade me matasse, eu não me importaria. Até hoje me lembro disto com estranheza. Passara vinte anos obcecado por encontrar a razão de estar vivo, mas no meio daquela tempestade, só pensava em desaparecer e me tornar um com o pó de Sawad. A areia entrou em meus olhos, causticou minha pele e me impediu de respirar. Eu comecei a caminhar, sem rumo, cego.

Acho que meu cansaço foi dramático o suficiente para chamar atenção de Safiah. Quem sabe a Deusa Lua tenha mesmo se compadecido. Depois de cerca de uma hora, talvez mais — já não conseguia medir o tempo — a tempestade se foi. Eu continuei a cambalear, tropeçando e caindo nas dunas, mas depois que as lágrimas lavaram meus olhos cheios de areia, eu pude ver o céu insuportavelmente azul de Sawad e o sol que brilhava incansável novamente.

Além disto, eu vi um pequeno vilarejo surgir no meio da areia.

No estado em que me encontrava, não podia perder aquela oportunidade. Fui me aproximando do lugar, sentindo as pernas pesadas como chumbo. Iria anoitecer em breve e eu precisava muito de água. Comecei a pensar que aquele lugar era um sinal de que eu não estava sozinho, e uma grande euforia invadiu meu peito. Hoje percebo o quanto estive suscetível e desequilibrado naqueles dias. Solidão, sede e fome são três companheiras cruéis.

Em algum momento, em meio a minhas divagações, eu cheguei ao vilarejo. Não era um lugar tão pequeno quanto eu havia imaginado. As casas, quadradas, baixas e de tetos retos, corroídas pelo tempo e pela areia, eram modestas. Algumas eram feitas de pedras cor de mel claro, outras de barro. Cada uma delas tinha uma porta de cor diferente ou apenas uma cortina de colorido vivo e pequenos bordados separando o ambiente interno do externo. Nos primeiros minutos, não encontrei uma alma viva perambulando pela cidadezinha. Mas minha preocupação, na verdade, era encontrar um poço, e eu não via nenhum por perto. Comecei a enxergar algumas tendas mais à frente. Isso não me chamou tanto a atenção — era comum que houvesse andarilhos da areia e mercadores acampando em locais como aquele. O que realmente me chamou a atenção foi uma suave melodia que comecei a escutar à medida que ia caminhando. Reconheci o som de alguém dedilhando o oud, tocando uma música mais parecida com um lamento do que qualquer coisa. Virei em uma ruela mais larga do que as outras, com casas de pedra um pouco maiores, e então ouvi uma voz ecoar, cantando.

Soube naquele momento que a canção era um pranto, um pedido à Safiah. A voz feminina me fez lembrar de minha ammah, e estaquei por alguns instantes, vulnerável a qualquer estímulo. Aquilo me hipnotizou, e mesmo que eu quisesse, não poderia deixar de procurar a dona daquela voz. Acho que vi uma ou duas pessoas passarem por mim em algum momento, os primeiros moradores que encontrei no vilarejo, mas não prestei atenção a eles. Apenas segui a canção.

Fui dar em um prédio maior do que as casas de pedra clara. Tinha dois andares e uma porta e janelas em arcos. Era um lugar bonito e mais sofisticado do que o restante. À frente dele, sentada em uma banqueta, havia uma mulher usando uma longa trança no cabelo negro e um kaftan cru e marrom. Ela devia ter a idade de minha ammah quando morreu e era muito bonita.

Aquilo me fez parar e sentar no chão, um pouco afastado, para escutá-la. Os olhos dela estavam tristes. Eu sabia reconhecer aquela tristeza porque a vira durante quase toda a minha vida. Aquela era uma mãe, e ela lamentava por seu filho, mesmo que sua canção falasse sobre as estrelas e a noite no deserto. E sobre o vento do oeste.

 

Vento do oeste, não, não,
Não venha nesta noite
Vento do oeste, deixe que as estrelas brilhem
Na noite do deserto
Vento do oeste, não leve para longe
A minha alegria
Oh, vento do oeste,
Deixe que as estrelas brilhem

 

O oeste, onde estava Qasar. Eu sabia do que tratava o vento do oeste da música. Em Qasif, acreditava-se que os ventos que traziam a febre vermelha eram sempre vindos do oeste porque era onde Qasar ficava. Qasar era mais fustigada pelos caprichos de Bahaal’zar do que a próspera e sagrada Qasif, lar de Murad, a cidade dourada, a joia de Sawad. Só a Deusa sabe porquê, mas é verdade. Minha terra natal é uma terra de sofrimentos, de luta pela sobrevivência. Por consequência, uma terra de guerreiros, disputas e sangue. Mas também de certa lealdade e senso de justiça, muitas vezes mais apurado do que o que encontramos em Qasif — não em relação aos Ahmar, que fique claro. Os Ahmar realmente são mais bem aceitos em Qasif, mas não pelos motivos que eu imaginava inicialmente, nos meus tempos de idealismo e esperança, e sim por outros muito mais pragmáticos.

Safiah din , eu divago. Não sou um bom contador de histórias e peço perdão. É claro que todos estes detalhes eu só soube depois, e não naquele momento. Naquele momento, eu apenas contemplava uma mãe — daquilo tinha certeza. Será que seria tal qual a minha, Amina Nafsaji? Eu mal sabia que aquela mulher mudaria a minha vida para sempre.

— Você parece cansado e faminto — ela disse, sorrindo, e eu nem percebera que havia parado de cantar, absorto em meus devaneios. — Salwaan, meu jovem. É um viajante, certo?

Eu me levantei, envergonhado, tirando a poeira de meu kaftan amarelado, mais cheio de areia do que o próprio deserto. Fiquei olhando para a mulher com uma expressão levemente tola, acredito, porque ela riu, ainda que houvesse uma sombra em sua expressão.

— Meu nome é Amina, Amina Lafta — ela disse. — E sou a senhora desta casa. Se deseja matar sua fome e sua sede, pode entrar. Caso seu coração não seja puro de intenções, que a Deusa Lua, Safiah, te impeça de me fazer mal. Ainda que eu ache que não haja mais mal a ser feito.

Fiz um não com a cabeça para indicar que não faria nada de ruim, e não sei se ela entendeu que estava recusando seu convite. Eu ainda digeria o fato de que ela tinha o mesmo nome de minha ammah, de modo que não prestei tanta atenção no que ela havia dito por último.

— Você parece estar precisando de um chá quente — ela falou novamente, fazendo um gesto convidativo. — Entre, eu insisto. Qual é o seu nome?

— Farid — respondi, com a voz rouca, a garganta machucada pela areia — Farid Nafsaji, boa senhora. Salwaan, e perdoe-me se eu interrompi sua canção.

Ela fez um não com a cabeça, e notei pela primeira vez que Amina Lafta usava maquiagem e que o kohl de seus olhos estava levemente borrado.

— Eu já havia terminado. Vamos, Ibn Nafsaji. Eu te convido a entrar em minha morada.

Agradeci, ainda sem jeito, um pouco desconfiado. Não estava acostumado a gentilezas, mas me lembrei de que ela ainda não sabia que eu era um Ahmar . Quando entrei, tirando meus sapatos, Ibn Lafta me pediu que deixasse minha espada em um cesto ao lado da porta. Hesitei, mas ela sorriu e disse suavemente que não havia razão nenhuma para eu andar armado ali.

— É uma bela cimitarra — ela disse — mas é tempo de tomar chá, jovem Nafsaji, e não de brandir uma lâmina, nem mesmo de carregá-la. Cada necessidade deve ser satisfeita na hora e no local apropriado, não acha?

Concordei silenciosamente e abandonei minha preciosa espada, minha única posse valiosa. Depois de aquietar minha relutância, passei a prestar atenção ao ambiente. A casa tinha paredes brancas com algumas tapeçarias penduradas, mostrando figuras e motivos que eu não conhecia inteiramente. Pareciam exibir parte de alguma história e eram muito bonitas. Ibn Lafta não me deu muito tempo para olhá-las, no entanto. Ela me guiou até uma sala arejada, com uma mesa baixa, um tapete vermelho e dourado e almofadas confortáveis de cores alegres. Confesso que sorri discretamente. Meu traseiro estava cansado de se sentar em um camelo.

— Sente-se, Ibn Nafsaji — Amina disse. — Eu volto em um instante.

Obedeci. Ibn Lafta desapareceu por alguns minutos, e comecei a ficar apreensivo, com medo de que ela voltasse com guardas que me jogariam em algum poço para morrer. Bobagem, Farid. Você aprendeu a fingir. Ela não sabe de nada. Até perguntou se você estava com fome, e as pessoas sempre pensam que Ahmar não sentem fome.

Pareciam impressões sensatas, foi o que achei. Eu já estava tão acostumado a falar comigo mesmo que pensava ter um amigo dentro de mim. Congratulei aquele espírito que vivia a caçoar de minha pessoa quando vi Ibn Lafta aparecer novamente na sala, seguida de uma mulher vestida com um kaftan branco impecável e de sorriso tão farto quanto suas carnes. Ela carregava uma bandeja com dois copos delicados cheios de folhas de hortelã e sálvia e um bule fumegante. Está vendo, cérebro de camelo, eu disse que não havia nada de errado!, ralhei, parte de mim triunfante.

— Suleima — Ibn Lafta disse, dirigindo-se à mulher que estava com ela – por favor, traga o pão, a coalhada e um pouco de arroz e de carneiro. Nosso convidado deve estar com fome.

A mulher de kaftan branco, ainda com aquele sorriso afável, fez um sim com a cabeça e colocou o copo com a hortelã e a sálvia na minha frente. Depois, derrubou a água fervente do bule em cima das folhas, e eu senti meu estômago pular assim que o vapor perfumado do chá invadiu minhas narinas. Deixei que aquela fumaça enovelada umedecesse meu rosto por alguns segundos, respirando fundo e observando os enfeites dourados que ornamentavam o copo. Depois de tanto tempo vendo apenas areia e a cabeça de um camelo, aquilo me parecia a coisa mais bonita e civilizada do mundo. Ibn Lafta se sentou à minha frente, também servida de chá, e observou Suleima sair com passos rápidos da sala. Depois, voltou-se para mim. Eu sorvia o chá vagarosamente e sentia uma alegria branda e quente se espalhar pelo meu corpo.

— Você é jovem — ela disse, de repente. — Quantos anos tem? Dezoito? Dezenove?

— Vinte, Ibn Lafta — eu respondi. — Acabo de fazer vinte.

Ela assentiu.

— Você deve me perdoar por ter te deixado sozinho — continuou — Veja bem, há dois dias, o vento do oeste passou por aqui e trouxe a febre vermelha. Provavelmente, você notou que a cidade está bastante vazia, Ibn Nafsaji. Muitos estão doentes… Incluindo meu marido, o senhor desta casa, Ibn Zayn Lafta.

Eu estremeci e larguei meu copo de chá na mesa. Estava habituado a achar que as coisas ruins que aconteciam eram culpa minha. Tenho certeza que Ibn Lafta percebeu a mudança em meu comportamento, mas ela apenas sorriu, com gentileza.

— Tem sido difícil, Ibn Nafsaji — ela continuou, olhando para mim. — Mas deixemos isto um pouco de lado. Notei que seu cabelo está cheio de areia…

— Perdi meu turbante — eu disse, nervoso, perdendo toda a compostura que aprendera a ter. — Ibn Lafta, eu temo que já a aborreci o bastante. A senhora certamente quer estar ao lado de seu marido, e…

Nesse momento, Suleima voltou à sala cheia de bandejas sobre os braços gordos. O cheiro de carneiro e arroz infestou o lugar, quase me fazendo chorar. Eu estava com fome, mas precisava sair dali. Seria mal educado partir no meio de uma refeição oferecida a mim, mas eu não podia permanecer naquela casa por mais nenhum minuto. Eu trouxera o vento do oeste a Qasif. Tinha chegado exatamente há dois dias, como ele. De alguma forma, acreditava que Ibn Lafta descobriria e tentaria fazer algo. Não estava mesmo em meu juízo perfeito.

Ibn Nafsaji, por favor, não deixe uma mulher triste como eu sozinha — Ibn Lafta disse, com a voz melancólica. — Eu tenho algo a lhe contar.

Suleima deixou a comida e dois pratos na mesa. Eu quase pedi a ela que distraísse sua patroa para que eu pudesse fugir, mas ela foi embora com seus passos apressados.

— Você acredita em destino, Farid Nafsaji? — Ibn Lafta me perguntou quando Suleima saiu, encarando-me com tamanha força que não fui capaz de me levantar daquela mesa. Os olhos negros, emoldurados pelos cabelos e pela pele cor de canela me deixavam desconcertado. Como ela me lembrava de minha ammah.

— Sim — eu respondi, inquieto — mas alguns destinos são terríveis demais. Eu gostaria de não acreditar, por vezes.

Ibn Lafta aquiesceu.

— Coma — ela disse. — Coma, e em troca eu lhe peço apenas que responda algumas perguntas.

— A senhora não disse que eu teria de pagar um preço — objetei — se assim for, eu prefiro lhe dar as poucas moedas que tenho.

Ela sorriu. Eu estremeci. O que pensar de um homem que se recusa a responder perguntas antes mesmo que elas tenham sido feitas?

Ibn Nafsaji esteve na tempestade, não esteve? — Ela perguntou, ignorando o que eu dissera. — Nós a vimos daqui, uma nuvem de areia se levantando nos céus.

Eu não queria responder.

Ibn Nafsaji não me parece ferido, por mais que haja ghuls rondando pelo deserto como pragas todas as noites. Ontem mesmo, perdemos dois homens. Você não encontrou nenhum ghul? Pela sua aparência, não faz pouco tempo que está viajando.

Sentia-me cada vez mais acuado. Ibn Lafta me perfurava com os olhos.

— Eu já chequei sua espada — ela concluiu — e não há sinal de sangue nela. Por que os ghuls te evitariam, Ibn Nafsaji?

Checou minha espada? Bastava daquilo. A mulher estava pronta para dar o bote e todos os meus instintos começaram a pedir que eu saísse dali rápido. Comecei a me levantar, e ela percebeu. Em um gesto inesperado, no entanto, Ibn Lafta pegou uma de minhas mãos, e vi os olhos dela encherem-se de lágrimas.

— Nafsaji — ela disse, abandonando a formalidade. — Me responda, por favor, me responda… Você é um Ahmar?

Senti o pavor que aquela palavra evocava tomar conta de meu corpo. Estremeci, estremeci como um homem de minha idade não deveria estremecer, ainda mais na frente de uma mulher que parecia sua mãe. Mas eu odiava ser chamado daquela forma e respondi, por reflexo, chegando a ser ríspido:

— Não, e a senhora me ofende. Eu preciso ir, Ibn Lafta. Agradeço pelo chá e tenha um bom dia.

Levantei-me e virei as costas para ir embora. Não ficaria ali mais um minuto.

Mas eu a ouvi chorar. Ibn Lafta chorou como minha ammah chorava. Por Safiah, como aquilo me machucou. Como eu desejava nunca mais ouvir aquele tipo de choro.

Eu hesitei e parei por alguns segundos. E até hoje agradeço a Safiah por isso. Abençoada seja a Deusa Lua, três vezes sobre o céu, porque eu parei e ouvi.

— Não vá, não vá, Ibn Nafsaji — ela pediu. — Eu perguntei apenas porque preciso da ajuda de um Ahmar. Jamais perguntaria se não…

Ibn Lafta soluçava e não conseguiu terminar sua frase. Ajuda de um Ahmar? Aquela era nova para mim. Ninguém jamais pedira minha ajuda para nada. Eu continuei parado, escutando, ainda de pé e pronto para partir.

— Minha filha — ela continuou. — Minha filha, Jahira. Quando o vento do oeste veio, ela desapareceu, desapareceu como se fosse feita de ar. Por Safiah, ela tem apenas quinze anos. Quinze anos, e Bahaal’zar a levou, Nafsaji. Eu não tenho dormido desde então.

Ao ouvir aquilo, meu sangue se tornou quente em minhas veias. Quinze anos. Bahaal’zar. Já ouvira algo parecido, muito parecido, e a história se repetia. Não podia acreditar. Que espécie de brincadeira do destino era aquela?

Virei-me e encarei Ibn Lafta novamente. Seu rosto banhado de lágrimas me fez reverter meus passos. Eu me vi sentado de novo, escutando o que ela tinha a dizer. Acho que no fundo estava esperando o momento em que eu iria acordar daquele estranho sonho.

— Zayn, meu marido, não consegue nem se levantar da cama — ela lamentava — e, de qualquer modo, não haveria nada que ele pudesse fazer. Bahaal’zar… Ninguém pode encontrar Bahaal’zar. A não ser…

Fiquei prestando atenção. Eu achei que sabia o que ela iria dizer e estava pronto para ouvir um “a não ser que ele queira”. Mas ela disse outra coisa, para mim mais absurda do que qualquer disparate que eu já ouvira.

— A não ser um Ahmar. Por isso…

Ibn Lafta viu o quanto fiquei perturbado. Ela me encarou, ainda com um pedido nos olhos. Esperava uma confissão. Esperava ardentemente por uma confissão. Eu suspirei.

— A senhora está enganada — eu disse. — Não é verdade que os Ahmar podem encontrar Bahaal’zar. Ninguém pode encontrá-lo. Ninguém. A não ser que ele queira.

Ela sorriu, esperançosa.

— Você é um Ahmar?

Baixei a cabeça, querendo negar. Mas sabia que seria inútil. Meu destino já estava ligado a Ibn Lafta. Por três vezes ela havia me chamado: quando cantara, quando falara seu nome e quando me dissera o que acontecera com sua filha. E eu sabia que o que quer que fosse preso por três nós não se desatava mais. Não em Sawad.

Ibn Lafta está enganada, eu não posso ajudar — eu disse, levantando os olhos com pesar. — Gostaria, mas não posso. Nunca encontrei Bahaal’zar.

Naquele momento, Amina Lafta juntou a palma das mãos sobre o peito e disse “Safiah din naan” com tamanha gratidão que pensei que ela não tivesse escutado o que eu acabara de dizer.

Ibn Nafsaji! — Ela disse, com as duas mãos levantadas para cima — que Safiah o abençoe!

Eu fiz um sinal negativo com a cabeça, tentando demonstrar que não poderia fazer nada. Eu não conseguia encontrar Bahaal’zar. Se bem que… Nunca tentara. Ibn Lafta pareceu adivinhar meus pensamentos.

— Se você não encontrou o demônio do vento até hoje — ela disse — é porque nunca quis, o que o faz muito sábio. Nunca ninguém lhe contou que os Ahmar podem seguir o vento do oeste? Ibn Nafsaji nunca ouviu as vozes das mulheres chorando ou a risada do tenebroso ecoando e rastejando pelas areias de Sawad? Dizem que é assim. Dizem que muitos de vocês ficam loucos.

Eu pisquei com as pálpebras pesadas. Sim, eu já ouvira aquilo. Eram momentos de pesadelo consciente e angústia. Odiava ouvir o choro no vento. Quando pequeno, eu chegara a tentar furar minhas orelhas por dentro, mas minha ammah me impedira. Nunca me acostumara de fato com aquilo, mas depois de algum tempo parei de ouvir com tanta frequência.

— Dizem também que vocês param de ouvir depois que atingem uma certa idade, mas… se eu lhe der algo de Jahira. — Ibn Lafta continuava a chorar, mas aquelas lágrimas tinham esperança em seu sal. — Você ouvirá o lamento dela. É o que dizem, Ibn Nafsaji, e quem sabe seja verdade… Quem sabe… Você a encontre antes que o pior aconteça…

Apoiei meus cotovelos sobre a mesa e esfreguei os dedos na cabeça. Aquilo não podia estar acontecendo. Parecia que eu havia sido colocado ali pela mão de alguma força maior — não sabia se Safiah ou Bahaal’zar. Sinceramente, tinha medo daquilo. Mas não podia virar as costas. Por outro lado, não tinha a mínima certeza de que encontraria a filha de Ibn Lafta.

Olhei para ela. Eu estava certo desde o começo. Eu ouvira o lamento de outra Amina, não por seu filho, e sim por sua filha, a joia de sua casa.

— Nafsaji, eu posso te recompensar de alguma forma… — Amina Lafta disse. — Pensaremos em algo bom… Eu e Zayn podemos…

Eu respirei fundo e a interrompi.

— Você confia em um Ahmar, Ibn Lafta? — Disse. — Como pode saber que eu encontrarei sua filha e não irei levá-la e vendê-la para o dono de um harém?

Amina sorriu, com toda a tristeza do mundo em seu semblante. Na hora não soube perceber que o que eu disse a machucara. Sua filha podia muito bem ter um destino ainda pior.

— São seus olhos, Ibn Nafsaji — ela disse, respirando fundo. — Parecem janelas e dizem quem você é. Homens com olhos assim são difíceis de encontrar, mas existem. Eu não vi maldade em você quando sentou para ouvir minha canção, eu vi pesar. Seja você quem for, eu sei que entende a minha dor e tem razão para isso, Ahmar. Lembra-se que eu lhe perguntei se você acredita em destino? Pois bem, eu acredito também. E creio que foi o destino que te trouxe aqui. Que Safiah me livre de viver em um mundo onde eu não possa confiar em meu coração, naleen.

Naleen . Filho. Fazia tempo que não ouvia aquela palavra. Suspirei, resignado.

— Se puder me emprestar um camelo ou cavalo — eu disse — e o objeto de Ibn Jahira… Eu partirei agora mesmo.

Ela estremeceu, parecendo indecisa.

— Não, Nafsaji — Ibn Lafta disse. — Agora não. A noite vai cair em breve.

Eu dei de ombros.

— Acredite em mim, Ibn Lafta. À noite é quando os demônios caminham mais livremente.


Parti naquela noite, mas Ibn Lafta fez questão de que eu comesse, me lavasse e trocasse minhas roupas antes. Eu não havia percebido o quanto estava parecendo um mendigo com minhas vestes rasgadas e olhos esfomeados. De qualquer modo, quando finalmente subi no camelo da casa Lafta e me lancei novamente ao vento, Safiah brilhava alta no céu e transformava a areia branca de Qasif em prata líquida. Depois do banho e da refeição, meu raciocínio estava lento, mas meus sentidos aguçados. Eu sentia a bainha de minha espada batendo fria em minha perna e o aroma de jasmim da trança de Ibn Jahira rescender na noite.

Ibn Lafta me confiara uma fina trança do cabelo de sua filha. Era um cabelo tão negro quanto ébano, delicadamente envolvido em um fio de ouro e seguro por pequenos prendedores de prata, uma espécie de joia que muitas mães de famílias mais abastadas faziam com os cabelos de seus filhos. Fiquei me perguntando como uma pessoa podia confiar tanto em um Ahmar a ponto de dar a um deles algo assim e finalmente comecei a acreditar que talvez pudesse viver uma vida diferente em Qasif.

O vento soprava forte, e precisei manter minha cafia erguida o tempo todo. Esperava que Ibn Lafta estivesse certa e eu conseguisse ouvir alguma coisa além do murmúrio da ventania. Andei por muito tempo, seguindo o oeste. Pela noite inteira, eu tentei escutar. Nada. Nada além do vento e do silêncio dentro de mim. Nem mesmo meu amigo interior dizia alguma coisa. Ou dizia?

Você não vai conseguir, Farid. Não vai. Como foi aceitar uma coisa destas? O que vai fazer? Fugir com este camelo e a trança da menina? É isto que você queria, cérebro de ghul?

O sol estava nascendo. Mandei aquela voz calar a boca. É claro que não era aquilo que eu queria.

Será que não é isto que quer… Filho de Bahaal’zar?

Espere. Aquilo era novo.

Filho de Bahaal’zar, Farid. Farid’zar, hahahahaha! Farid’zar!

A voz não era minha. Não mais. Que diabos era aquilo?

Procure o murmúrio da garotinha, naleen. Procure. Vamos ver se você a encontra antes que eu faça outro de vocês para andar nessa terra.

Estaquei, sentindo um frio arrepio percorrer minha espinha, mas meu sangue ferveu dentro das veias, fazendo com o que ódio que senti se transformasse em palavras.

— Maldito seja, três vezes sob o céu de Safiah — disse, cerrando os dentes. — Maldito seja, demônio do vento.

Fiquei olhando ao meu redor, atento. Havia enrolado a trança de Ibn Jahira no pulso direito e, por um instante, tive a impressão de que ela começara a esquentar. Por reflexo, levantei o braço e encarei o lugar onde a trança estava.

Foi então que ouvi.

Um lamento, um lamento tenebroso ecoava no vento. Era a voz de uma menina, de uma moça, que chorava e pedia por socorro. A trança agora queimava em meu pulso, e eu me lembrava dos murmúrios que eu ouvia quando pequeno. Senti minha cabeça girar.

Quanto mais a trança esquentar, mais perto você estará, Farid’zar. Hahahaha! Vamos ver se você consegue! Hahahaha!

Aquela voz e aquele lamento me incomodavam tanto que por um momento minha visão ficou turva. Naquele mesmo instante meu camelo bufou e passou a correr sem que eu tivesse me segurado bem o bastante. Eu quase caí, mas me agarrei às rédeas e deixei que ele me levasse cegamente por um tempo. Me forcei a pensar que eu precisava seguir o vento, seguir o pedido de socorro. Ele me levaria a Ibn Jahira. Em algum momento, me acalmei e segui. Segui e não parei mais.

Por dois dias corri pelo deserto, sem pausas para descansar ou dormir. Jamais conseguiria dormir com aquele pedido de socorro me assombrando. Por vezes, a trança em meu pulso ficava mais fria, mas se eu voltasse para certa direção, seguindo a noroeste, ela tornava a esquentar. A cada segundo, minha angústia crescia. Fazia quatro dias que Ibn Jahira estava com Bahaal’zar. Duvidava que o mal ainda não tivesse sido feito, mas rezava a Safiah por todo o tempo e com todas as minhas forças, pedindo que ela poupasse de alguma forma aquela garota e sua ammah do mesmo sofrimento que eu conhecia tão bem. Imaginava Ibn Lafta cantando na porta todos os dias, esperando que sua filha voltasse. E continuava. Continuava, vendo as cascavéis surgirem cada vez mais abundantes na areia e as aves de rapina e os abutres voando agourentos no céu ao longe. Comecei a me sentir o que eu realmente era: uma simples presa no meio do deserto. Presa de Bahaal’zar.

Foi na manhã do terceiro dia que senti a trança de Ibn Jahira esquentar tanto em meu pulso que tive de tirá-la de onde estava. Quando fiz isto, eu também recebi a benção do silêncio novamente. Os lamentos pararam e nunca imaginei que pudesse me sentir tão aliviado.

Eu já chegara na fronteira entre Qasar e Qasif. Podia ver, ao longe, um paredão rochoso, uma espécie de falésia. Ela me parecia escura e estranha, maléfica e cheia de sombras, mas acho que não estava mais completamente são depois de ouvir vozes e pedidos de socorro por dois dias inteiros. De qualquer modo, aquele lugar me atraía. Sabia que acharia algo lá, e comecei a acreditar que Safiah jamais estivera comigo — aquilo era uma armadilha montada para mim.

Não seja tolo, Farid. Não se dê tanta importância.

Não era questão de me dar importância. Era questão de saber que o mal me perseguia e que eu estava fadado a topar de verdade com ele em algum momento do meu destino. Destino traçado pelas mãos erradas.

Segui por algumas milhas em direção à falésia. Em certo momento, o terreno começou a ficar mais difícil. Havia rochas e pedregulhos despontando na areia, e eu percebi que meu camelo não continuaria a andar ali por muito tempo. Amarrei-o em uma formação que mais parecia uma estátua, alta, amarela como a areia e de extremidade abaulada. Se ela tivesse olhos, não me surpreenderia. Mas a ignorei, vendo que ela não era a única ali, e agradeci meu companheiro por me levar até aquele ponto. Sem hesitar, adentrei aquela estranha floresta de pedra.

Eu podia sentir o chão quente sob minhas botas e, depois de algum tempo, não havia mais nenhum trecho de areia fofa — o solo tornara-se mais duro, batido, repleto de pedras, algumas bastante afiadas. A proximidade com a falésia mudara o solo. Eu andava com cuidado, mas comecei a ser invadido por uma sensação estranha. O calor, que geralmente não me incomodava, passou a me perturbar. O suor escorria por minha testa e entrava em meus olhos, já castigados pelo sol escaldante que brilhava cruelmente. O vento finalmente parara de soprar, a trança não estava mais em meu pulso, mas, ainda assim, aos poucos, eu comecei a escutar um murmúrio baixo e lento, que a princípio tentei ignorar. No estado em que me encontrava, qualquer som era perturbador, e eu me forcei a continuar sem prestar atenção a ele, tentando sabotar os meus próprios sentidos. Mas o lamento foi crescendo, crescendo, como se quisesse que eu o escutasse. Quanto mais eu tentava me evadir dele, mais alto ficava. Em algum momento, percebi que não era uma voz desconhecida que eu ouvia. Era um choro muito familiar. Algo que me trazia uma vaga lembrança… Não, não tão vaga… Não era nada vaga, na verdade. Eu apenas não queria acreditar.

Aquele era o choro de minha própria ammah.

O susto e a raiva que senti ao finalmente perceber aquilo me fizeram pisar em falso. Eu caí, estatelando-me sobre as rochas de pontas afiadas, que abriram um talho em meu antebraço direito. O sangue se espalhou pelo chão como se eu tivesse derrubado uma xícara de chá, e o cheiro metálico que invadiu minhas narinas me deixou enjoado. Atordoado, levantei pronto para gritar algum impropério, segurando o braço que sangrava e sentindo uma dor aguda partindo do ferimento, mas estaquei assim que percebi que não estava mais sozinho.

Uma hiena. Os pelos secos e malhados de negro estavam eriçados, as orelhas redondas levantavam-se em alerta, e os olhos amarelados me encaravam com algo de voraz. Não era um animal normal, mesmo porque hienas eram comuns nos confins de Qasar, mas não em Qasif, nem mesmo na fronteira. Aquele era um espírito do deserto disfarçado. Um ghul. Um servo de Bahaal’zar.

Tirei a minha espada da bainha. O animal não pareceu se importar. Veio se aproximando com passos leves, erguendo o focinho e farejando o ar. Parecia sorrir e arreganhou a boca mostrando os dentes, ganindo um som estrangulado que se assemelhava a uma risada. O som ecoou por todos os lados, reverberando em meus ouvidos e me fazendo sentir uma súbita dor de cabeça. Pisquei, confuso, e quando abri os olhos, vi que a hiena corria rapidamente ao meu redor.

Com a espada ainda em minha mão, eu virava meu corpo para todos os lados, acompanhando a corrida do ghul. O sangue pingava de meus dedos, e meu braço direito pendia estranhamente amortecido ao lado do corpo. Eu agradeci por usar a mão esquerda naquele momento, por mais que aquilo muitas vezes fosse associado a Bahaal’zar em minha terra natal. Apertei o cabo da espada, tentando controlar a tensão e o medo que cresciam em mim. A criatura continuou a ganir e correr e, de repente, pulou em minha direção.

Mas aquilo já não era mais uma hiena. Ainda no ar, a criatura se transformou na mais tenebrosa visão que eu havia contemplado até então. As patas se transformaram em braços e pernas retorcidos, os pelos desapareceram, dando lugar a uma pele acinzentada e doentia, e o rosto da criatura… Eu mal consigo descrever. Era feito de osso, órbitas oculares vazias, carne podre dependurada nas têmporas e no maxilar. O cheiro era horrível. Ele avançou sobre mim, e eu tentei me defender. Ergui a espada, mas as mãos dele, surpreendentemente ágeis e com garras longas e afiadas, me atingiram de raspão no peito. Novamente, senti uma dor aguda que se espalhou por todo o meu corpo. Girei em meus calcanhares, desviando de uma nova investida do ghul, tentando brandir a espada de forma mais segura. Eu não sabia o que estava acontecendo comigo. Sentia o corpo tremer. A cabeça latejava. O corte no antebraço pulsava, e agora o peito também doía mais do que o normal.

As garras vieram de novo e desta vez resvalaram na lâmina da espada. Sem muita destreza, ergui de novo a cimitarra e consegui fazer um corte em um dos braços da criatura. Ela guinchou e me atacou ferozmente, abrindo a boca cheia de dentes e tentando cravá-la em meu pescoço. A investida foi tão violenta que ela conseguiu. Mas não sem pagar um preço.

Minha espada ficou cravada no ventre do ghul. Nós dois havíamos caído no chão, e eu sentia o hálito pútrido dele no meu pescoço, o sangue quente escorrendo, e minha visão ficando novamente turva. Era a primeira vez que eu via tão de perto e enfrentava uma daquelas criaturas. O peso dela sobre mim foi mais intenso do que eu pensava que seria. Depois de alguns segundos, me dei conta de que precisava tirá-la dali. Meus braços trêmulos não obedeciam direito, mas eu consegui, depois de algum esforço.

Naquele segundo, tive um dos piores pesadelos de minha vida.

Quando empurrei o ghul para o lado, olhei novamente para ele e, ao invés de encontrar aquela horrível criatura cinzenta com a cimitarra cravada em seu ventre, eu vi outra coisa. Outra pessoa.

Ele havia se transformado em minha ammah.

Dei um grito de pavor, desesperado, e me arrastei para trás, cortando minhas mãos nas pedras do chão. Queria sair correndo, mas não consegui me levantar. Apenas fiquei ali, os olhos vidrados, torturado demais por aquela cena. Era uma brincadeira nojenta. Era a pior coisa que já haviam me feito.

O tempo parou naquele momento. Eu nem ao menos sei quanto tempo passei ali, olhando para minha espada cravada no ventre de minha mãe. O sangue escorria de meus ferimentos, e eu me sentia cada vez mais fraco. Não era normal. Eu não costumava sangrar daquele jeito. Ahmar não sangram com tanta facilidade, e seus ferimentos não ficam abertos por muito tempo. Mas eu estava sangrando como um carneiro imolado. E não me importava. Cheguei a me esquecer de Ibn Lafta, de Jahira, de meus planos de viver em Murad. De tudo. Eu morreria naquele inferno de Bahaal’zar. Era o fim.

Foi naquele momento que ele veio. Passos suaves como o vento, sem fazer barulho nenhum. Trajava um kaftan negro imponente, bordado com fios de prata, e um manto da mesma cor. Era um homem de cabelos negros, pele morena e olhos tão escuros como a noite. Fiquei enojado ao perceber que ele se parecia muito comigo, mas era mais velho. Era mais velho e segurava uma mulher nos braços. Uma jovem mulher.

Ibn Jahira . Ela era parecida com sua mãe, mas tinha a pele mais escura e os cabelos inteiramente trançados. Usava um delicado kaftan lilás, e estava desacordada. Por um momento, meus sentidos se reavivaram. Aquele homem parecido comigo tinha uma aura de depravação e maldade tão grande que tudo o que eu queria era arrancar aquela jovem, uma imagem de luz e pureza, de seus braços. Naquele momento, o homem riu, e sua voz se espalhou pelo vento, que voltara a soprar.

Naleen. Seja bem-vindo. Espero que tenha gostado da minha recepção.

Nunca sentira tanto ódio em minha vida. Cuspi no chão, mas não consegui falar. Eram tantas as palavras e as maldições que tentavam sair de meus lábios que nenhuma delas achou espaço para escapar.

— Não fique zangado, naleen — ele disse, sorrindo. — Sabe, foi assim que eu me manifestei para sua mãe, quando eu te fiz. Não está vendo que me pareço com você? Não deve se zangar, naleen. Tire esse ódio de seus olhos. Eu estive te esperando há muito tempo porque você é especial para mim. Todos os meus filhos são.

Ele se aproximou, rápido como o vento. Olhei para minha espada, que continuava longe de mim, agora cravada no chão. O ghul havia desaparecido.

— Farid — Bahaal’zar continuou, a voz melodiosa e cheia de malícia. — Que tal eu lhe dar um presente?

Ele se abaixou e deixou Ibn Jahira a minha frente, deitada. Com um gesto de suas mãos, Bahaal’zar fez com que, de repente, ela ficasse inteiramente nua. O demônio riu e se levantou, batendo as mãos.

— Vamos, naleen — ele disse. — Quem haverá de saber? Você sabe que um Ahmar não pode ter filhos? Minha semente apenas eu posso espalhar.

Não acreditava naquilo. Não acreditava no que estava vendo e ouvindo. Ele me oferecia Ibn Jahira como se ela fosse um prato em uma mesa.

— Sei que nunca esteve com uma mulher — Bahaal’zar continuou — Olhe como ela é linda. Sinta seu perfume de jasmim, seus seios redondos. Por que não se sacia, Farid? Por que não a toma?

Eu realmente nunca estivera com uma mulher. Nem mesmo as prostitutas de Qasar gostavam de gente como eu. Era a primeira vez que via uma moça nua daquela forma. Comecei a sentir o perfume de jasmim de Jahira com mais intensidade. De repente, ela me pareceu ainda mais linda do que já era. Meus sentidos estavam sendo usados. Usados por Bahaal’zar.

E senti ódio. Pela primeira vez naquele momento, as palavras encontraram seu caminho.

— Que Safiah me amaldiçoe três vezes, cão do vento! — Eu gritei. — Que Safiah me amaldiçoe se eu tocar numa mulher assim! Violador! Maldito! Que meu corpo e minha alma queimem por toda a eternidade por ter nascido com sua marca, Bahaal’zar!

Eu avancei sobre ele, mesmo sem minha espada. Um ódio de vinte anos de idade me deu forças para levantar. Obviamente, Bahaal’zar apenas sorriu e deu um passo para trás, deslocando-se suave como um zéfiro. Ele ergueu a mão e então me ergueu, sem ao menos tocar em mim, me deixando suspenso no ar. Quis gritar novamente, mas não consegui.

— Você é meu filho, Farid’zar — sua voz se tornou grave e profunda como uma caverna. — E como meu filho, tem o vento na língua e o fogo no coração. Eu sou a alma de Sawad. Por isso, sei que você veio aqui querendo algo e estou disposto a lhe dar… naleen.

Eu não confiava naquelas palavras, mas minha língua estava presa e meu corpo não se mexia. Tudo que me restava era ouvir.

— Vamos fazer uma troca. Um pacto. Eu gosto de pactos. Portanto, você tem duas escolhas.

Ele ergueu sua outra mão e trouxe Ibn Jahira para perto de si. Ela flutuava no ar, ao lado de dele.

— Você veio buscar Jahira — apontou para ela. — E eu posso dá-la a você.

O demônio coçou a barba, parecendo entretido.

— Mas, preste atenção — Bahaal’zar sorria. — Você está fadado a encontrar a felicidade, naleen. Pode ser que não creia agora, mas está escrito em seu destino. Contudo, você sempre desejou se livrar da sombra de ser um Ahmar. Se você me deixar Ibn Jahira, eu prometo que será uma pessoa sem a minha marca ou meu sangue. Você encontrará a felicidade e viverá com ela para sempre. Esquecerá dessa jovem e de Ibn Amina Lafta, e ela se esquecerá de você. Jahira voltará e viverá seu destino. Você jamais se lembrará dela e jamais sentirá culpa. E o meu sangue que está em você agora viverá nela, em seu ventre. Esta é a única forma de deixar de ser um Ahmar, naleen.

Bahaal’zar piscou, como se tivesse me oferecido o melhor negócio do mundo. Seus olhos brilhavam.

— Você tem, como eu prometi, uma segunda opção. Pode levar Jahira, se quiser. Mas deve entender que ela é muito preciosa para mim, assim como sua ammah foi, e eu desisto das joias que escolho apenas por uma oferta muito alta. Passo anos a observá-las, naleen, até que elas tenham sido lapidadas para brilhar o máximo possível, em todo o seu esplendor. Só então as torno minhas escolhidas.

Desejei que ele pudesse morrer com meu ódio naquela hora. Bahaal’zar fazia parecer que arrancar aquelas jovens de sua casa, violá-las e amaldiçoá-las com um filho condenado era uma verdadeira honraria concedida por ele.

— Mas… — Ele continuou, sempre sorrindo. — Já que você é meu filho, te dou esta opção. Pode levá-la. Pode até mesmo viver sua vida. Pode buscar aquilo que quer e, como eu disse… Irá encontrar a sua felicidade, naleen, em algum momento. Mas, quando você a encontrar… Quando estiver no ápice de sua vida, Farid… Eu irei clamar a sua alma para todo o sempre. Será minha por toda a eternidade. Este é o preço.

Ele olhou nos meus olhos. Senti como se estivesse desnudando minha alma. Ele sabia tudo. Ele viu tudo. Eu nem mesmo lembro se senti dúvida ou não, mas ele compreendeu minha escolha, a verdadeira escolha, sem que eu precisasse pronunciar uma palavra.


Vento do oeste, não, não,
Não venha nesta noite
Vento do oeste, deixe que as estrelas brilhem
Na noite do deserto
Vento do oeste, não leve para longe
A minha alegria
Oh, vento do oeste,
Deixe que as estrelas brilhem

 

Ela cantava e ninava o bebê. Era um lindo menino, pele morena como a dela, cabelos negros e mãos pequeninas. Impossível deixar de amar uma criatura tão adorável.

— Pequenino, pequenino — ela sorria, acariciando o nariz diminuto do bebê. — Meu querido, meu pequeno anjo.

Jahira percebeu que Zayn estava começando a ficar agitado. Zayn. Ele recebera o nome de seu pai, que, graças a Safiah, havia se recuperado da febre vermelha que o acometera. Ela não gostava nem de lembrar daquilo, não gostava de se lembrar daquela época horrorosa. Jahira sacudiu a cabeça. Eram tempos diferentes e não era hora de pensar em coisas tão ruins. Agora, Zayn estava ali e tudo havia mudado.

O bebê acordou, por mais que ela tivesse se esforçado para niná—lo. Ele abriu os olhos, balançou os bracinhos gorduchos e começou a chorar. O som agudo chamou atenção de todos na casa, porque logo Suleima e Amina entraram em seu quarto. A mãe estava séria, mas a aia ria, com seu kaftan branco sempre magicamente impecável.

— Jahira! — Amina disse. — Você o tirou do quarto de novo. Já pedi para não fazer isso!

A menina deu de ombros, enquanto a mãe tirava o bebê de seu colo.

— Ora, ammah. Você não se importa quando Suleima o tira do quarto.

Amina franziu a testa e bufou carinhosamente para a filha.

— Isso porque Suleima só o tira de lá quando eu peço, e não quando ele está dormindo em paz — ela respondeu, tentando suplantar os gritos de Zayn. — Está vendo o que você fez? Não, não chore. Não chore, meu filho. Naleen.

Jahira suspirou. A chegada de seu irmão havia sido um dos maiores motivos de felicidade da casa Lafta. Depois de terem enfrentado tempos difíceis, incluindo o susto da febre vermelha de seu pai e seu súbito desaparecimento, parecia que agora as coisas estavam finalmente entrando nos eixos.

Demorara algum tempo para que Jahira voltasse a sorrir. A gente do povoado achou por bons meses que ela teria um bebê, mas não de Bahaal’zar. O fato de a menina ter retornado seis dias depois de seu desaparecimento, junto a um completo desconhecido, só fez com que todos supusessem que ela havia fugido com um homem e voltado com o rabo entre as pernas por alguma razão. O fato de o homem, um Ahmar, ter ficado na casa Lafta, sendo treinado no manejo da espada por Ibn Zayn depois que ele se recuperou, só aumentou ainda mais as suspeitas. Falava-se que a história do sequestro por Bahaal’zar havia sido apenas uma desculpa. Mas com o tempo o alvoroço se dissipou e as pessoas finalmente aceitaram que Ibn Nafsaji havia mesmo salvado Ibn Jahira Lafta, e que Ibn Zayn, chefe do vilarejo, treinava o rapaz como um agradecimento por ter resgatado sua filha. Ele o treinara por cinco anos e, ao final, Farid Nafsaji partira para Murad, onde tentaria entrar para as fileiras dos Ansat, os guardiões do deserto. Fazia também exatos cinco anos que ele fora embora, mas, há uma semana, uma carta chegara de Murad.

— Suleima, pode levá-lo para o quarto. — Amina disse, entregando à aia um Zayn novamente adormecido. — E depois, peço que comece a preparar o almoço, por favor. Eu já vou te ajudar com o carneiro. Hoje teremos um convidado especial, afinal. Ele deve chegar em breve se tudo correr bem.

A aia saiu, cantando e levando o bebê em seus braços. Amina fechou a porta do quarto e sorriu, olhando para a filha. Ela já estava com vinte e cinco anos e, para a indignação do pai, não se casara até agora.

— É ele que você espera, minha filha? — A mãe perguntou. — Nossa visita?

Jahira corou levemente, mas não baixou a cabeça. Não queria mentir sobre algo tão sério como seu coração.

— A senhora sabe que sim — ela respondeu.

Amina sorriu, e se sentou na cama. Acariciou os cabelos da filha e se lembrou de quando ela mesma cortara uma trança daqueles cabelos para fazer uma joia. Ela jamais pedira a trança de volta para Ibn Nafsaji, e ele nunca a devolvera. O coração de Amina sabia que Nafsaji ainda a guardava com ele. Ibn Lafta — ele jamais parara de chamá-la assim — sabia que havia um motivo para isso, assim como sabia que, por alguma razão, Farid jamais deixara seu coração à mostra depois de retornar do deserto com Jahira. Ele aprendera a fechar a janela de seus olhos e ela frequentemente se perguntava o que havia acontecido com ele naqueles seis dias. Mas ele jamais falara sobre aquilo.

Ibn Nafsaji trouxe você de volta a mim, sã e salva. — Amina disse — Não há uma parte do meu coração que não agradeça pela existência dele todos os dias. Eu desejo que ele seja feliz tanto quanto desejo que você também o seja, minha filha. Farid é um bom homem, Ahmar ou não.

Jahira segurou a mão da mãe, sorrindo.

— Preciso dizer a ele, mãe — ela murmurou. — Preciso dizer a ele e também saber o que ele pensa.

Amina sorriu. Algo apertou seu coração, mas ela disse, dando uma piscadela:

— Se ele for um homem inteligente, jamais deixará de lado a oportunidade de se casar com você.

Jahira arqueou as sobrancelhas, com a expressão zangada.

— Não quero saber se ele quer se casar comigo. Muitos querem se casar comigo porque meu pai é o chefe do vilarejo. Quero saber se ele também me ama, ammah. Quero saber o que se passa no coração de Ibn Nafsaji.

Amina riu.

— É isso que estou dizendo — ela respondeu. — Minha querida, qualquer homem com o mínimo de bom senso amaria você. Tenho certeza que se vocês se casassem, ele seria o homem mais feliz do mundo, minha doce Jahira. Ele se tornou um Ansat. Ele tem o amor da melhor mulher que conheço — Amina sorriu largamente. — Eu acho que finalmente Farid encontrou a felicidade, minha filha.

Jahira riu, pensando que ela mesma seria a mulher mais feliz do mundo se tudo corresse daquela maneira. Uma única frase de sua mãe ecoou em sua mente, sem que ela soubesse porquê e sem que ela percebesse que uma lufada de vento havia invadido seu quarto, abrindo a janela forçosamente.

Farid encontrou a felicidade.

Por um ínfimo momento, Jahira sentiu uma angústia vinda de algum lugar em seu âmago, uma antiga lembrança despertando brevemente e desvanecendo sem deixar vestígios.

Naquele momento, um breve momento, ela teve medo de que os ventos do oeste trouxessem tristeza, transformando sonhos em pesadelos.

Author: Liége Báccaro Toledo

Liége Báccaro Toledo é professora de ensino fundamental e tenta ser escritora nas horas vagas. Nasceu e cresceu em Londrina, mas vive em um mundo por dia. Graduada em Letras e mestre em Estudos da Linguagem, é autora da série O Enigma da Lua e publicou um conto na antologia “Excalibur”, da Editora Draco. Ama livros, cinema, comida, RPG, seu marido e cãezinhos.

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