Os Mercadores de Gullian

I

Jon olhou o Scrall cinicamente. “No Refúgio? Tens a certeza?” O Scrall acenou afirmativamente com a sua cabeça escamosa e piscou os olhos negros sem pupilas. “Sim, no Refúgio. Zona 3.” As palavras da língua comum saíram silvadas e encobertas por um pesado sotaque identificável. Jon roçou com os dedos na placa de identificação. A interface holográfica abriu-se à sua frente. Afastou a vídeo-chamada do Scrall para um canto e iniciou os procedimentos de intervenção. “Espero que não me estejas a enganar. Serás preso e castigado se a Força for mobilizada sem razão.” Lançou um olhar diligente ao registo por baixo da chamada verificando o nome e estatuto diplomático do réptil. Desligou a ligação sem mais palavras.

Ativou as comunicações com a Equipa de Intervenção. “Motim na Zona 3 do Refúgio de Proteção de Estrangeiros.” Seguindo o manual enviou os requerimentos aos seus superiores. Foram preenchidos automaticamente, recebeu as devidas autorizações numa fração de segundo. “Todo o acesso garantido dentro da Zona 3. Acesso de nível 1 nas Zonas 3 a 5. Acesso de nível 3 na Zona 2. Acesso interdito às Zonas 1 e 0.” Enviou novos requerimentos. “Força letal autorizada…” Parou para confirmar a informação “… de forma generalizada. Acesso aéreo totalmente autorizado. Acesso sub-terrestre totalmente autorizado. Uso de armamento autorizado até…” Parou novamente para confirmar a informação “… até à Classe 0.”

Não queria ter nada a ver com o que se ia passar naquela noite. Lançou um último pensamento para Rose que já devia ter chegado do Espaço-Porto há algumas horas e estaria a deitar Tohmas e Susie. O complexo de residências não era muito longe do refúgio. Por um momento louco pensou em cancelar a diretiva. Apagar tudo. Esquecer que acontecera.Não, quando fosse apanhado sofreria a pena máxima.

Permitiu ao leitor de retina verificar o seu nível de acesso e deu a um homem desconhecido o poder de destruir tudo o que amava. “Os códigos de ativação foram enviados para o Sistema Pessoal.” Sentiu-se um covarde, escondido na estação subterrânea dedicada aos serviços de emergência. A voz tremeu-lhe. “Ordem Concluída. Estão autorizados a prosseguir.” Cortou a comunicação.

Jon desligou toda a consola e chorou silenciosamente.


II

O Sistema Pessoal projetou os ficheiros no visor. Desencriptou os códigos e recebeu rapidamente as indicações administrativas. Sabia perfeitamente o que lhe pediam para fazer. Extermínio. Sabia perfeitamente que o faria, nem considerou objetar. Odiava que assim fosse.

Olhou avaliadoramente a sua equipa. Já os vira centenas de vezes, mas repetiu a avaliação. Todos tinham recebido o mesmo treino que ele, todos possuíam habilitações de combate excecionais e haviam sido submetidos à mesma indução hipnótica para garantir total lealdade. Eram companheiros há anos. Não confiava neles de todo. Matá-lo-iam a sangue frio se existisse a mínima hipótese de isso levar ao sucesso da missão, fariam o mesmo a si mesmos, ou às suas mães e irmãs, se servisse os objetivos do Comando.

“Preparem-se.”

Eram 10, sem contar com ele. 5 mulheres e 5 homens. Não lhes crescia qualquer pelo em todo o corpo, graças aos tratamentos radioativos antes de entrarem na Força. Na mesma altura em que todas as tatuagens tinham sido removidas e os elementos individualizadores eliminados. Todos apresentavam os mesmos implantes cibernéticos, eram mais fortes, rápidos e resistentes do que humanos normais. Possuíam imunidade a gases nocivos e suportavam longos períodos sem oxigénio, os órgãos internos eram maioritariamente biomecânicos e auto-regeneravam-se rapidamente. Sobreviveriam durante semanas sem comida ou água. Possuíam uma quase perfeita visão-noturna e um sentido auditivo extremamente aguçado. Comunicadores cerebrais permitiam-lhes manter-se em constante contacto com toda a equipa, e gravadores retinais permitiam o acesso à visão dos outros membros.

Isto sem considerar os fatos de combate. Elegantes fatos de Kevlar maleável que se ajustavam a todo o corpo. A estrutura de suporte partia de um núcleo radioativo nas costas, apoiando todos os membros e a coluna vertebral. O Sistema Pessoal estava instalado num micro-processador na base do pescoço. O fato ligava-se aos implantes e amplificava os seus efeitos, dando maior força e velocidade ao utilizador. O uso dos fatos permitia também ao líder de equipa tomar controlo do corpo de um membro com, ou sem, o seu consentimento. Tudo isto era complementado por um capacete equipado com um visor, sistemas de processamento, núcleos radioativos de suporte e reservas de oxigénio, comprimidos energéticos, medicamentos de emergência e um sistema de suicídio, para o caso de captura.

Aquilo tornava combatentes excecionais nos seres mais letais do Universo. E preparavam-se para chacinar inocentes.

Todos, incluindo ele, pegaram nas metralhadores, distribuídas pela Força a todos os soldados, e colocaram-nas a tiracolo. Prenderam as munições no cinto magnético do fato. Verificaram as duas pistolas nos coldres à cintura e as duas facas de combate, de cabos e lâminas serrilhadas negras, arrumadas nas bainhas no fundo das costas. Na bota direita, vestida por cima do fato de combate, guardavam um bastão, fino e colapsado para um tamanho aceitável. Todos possuíam explosivos de detonação programável presos no cinto. E um laser de corte, igualmente viável para combate, no pulso direito. Envolvendo o pulso esquerdo tinham consolas de controlo. Serviam para acesso externo ao Sistema Pessoal. Este estava ligado diretamente ao sistema nervoso e respondia aos impulsos cerebrais. Era mais uma parte do corpo. Uma parte do corpo que suprimia a dor, nos fazia perder toda a noção de auto-preservação, amor ou companheirismo, felicidade ou tristeza, certo ou errado. Que nos dava as ordens de um superior como ideias próprias e irrecusáveis e que se dispunha a auto-destruir-se e matar o seu anfitrião se fosse capturado. Uma parte do corpo que não era afetada por qualquer emoção ao fazer tudo isto, apesar de ser tão, ou mais, racional do que o humano que serve.

“Vamos a isto.”

Colocou o capacete e entrou na nave de transporte.


III

A parede desapareceu numa nuvem de fumo e estilhaços. O seu filho desapareceu numa nuvem de sangue e tripas. A sua visão desapareceu num clarão branco. A sua audição desapareceu num zumbido estridente.

Recuperou a visão e a audição. No entanto a parede e o filho permaneceram desaparecidos. Viu a cúpula que cobria todo o refúgio estilhaçada, pedaços triangulares de vidro à prova de bala caiam em espiral, esmagando pessoas e casas por igual. O matraquear da arma silenciava os regulares gritos de terror, dor e desespero da vizinhança.

Tentou reunir as memórias. Tinha passado o dia a negociar um contrato importante na empresa, talvez conseguisse uma promoção. Chegara a casa e comera a refeição da noite com a mulher e o filho. Sophia tinha ido dormir. Raphael ficara a estudar no monitor holográfico. E depois desaparecera. Houvera algo de importante nesse dia? Vira Raphael a namoriscar com a filha do vizinho. Uma rapariga engraçada. Os seus grandes olhos eram de um âmbar suave e as escamas reluziam num tom rosado. Seria uma rapariga bonita. E o pai e mãe eram de nível 2. Um bom partido para ele.

Não sentia a perna há algum tempo. Curioso, nunca notara que a sentia constantemente até deixar de a sentir. Olhou para baixo. Interessantemente a perna esquerda desaparecera, substituída por um coto acima do joelho de onde jorrava um líquido vermelho. O fluído espesso formava uma poça na carpete. Sophia ficaria extremamente chateada com ele por isso, esperava que não deixasse uma mancha muito grande.

Os olhos verdes derivaram mais um pouco acabando por encontrar o resto da perna, esta apresentava um ângulo pouco natural e escondia-se debaixo de um pedaço de parede. Esperava que não estivesse partida. Prometera ainda ontem a Raphael ensiná-lo a nadar brevemente. Onde estava Raphael? Devia estar a estudar, a época de exames aproximava-se. Provavelmente escapulira-se para ir ter com a tal rapariga. Era novo, dar-lhe-ia uma reprimenda adequada quando voltasse. Mas não lhe estragaria a diversão agora, o rapaz merecia aproveitar a juventude.

Sophia certamente aplicar-lhe-ia uma reprimenda por não ter mantido o rapaz a estudar. Mas talvez ela deixasse isso passar quando visse a mancha que se alastrava.

Estranho como a sua visão escurecia com o passar do tempo. Estariam as luzes a desligar-se? Os núcleos radioativos deveriam mantê-las a funcionar durante alguns séculos. Teria de contactar o fabricante a apresentar-lhe uma vigorosa reclamação, talvez exigir mesmo um reembolso.

Um homem negro apareceu no seu campo de visão. Parecia saído de um qualquer filme holográfico. Imponente e fortemente armado. Saberia ele onde estava Raphael?

“Viu por acaso o meu filho?”

O homem negro virou a cabeça para ele e aproximou-se a passos largos. Inclinou a cabeça interrogativamente e levou a mão à cintura. Retirou de lá uma pistola tal e qual as dos holo-filmes e colocou-a à sua frente. Bem apontada à sua testa. Quereria ele gabar-se de tão valiosa peça? Podia ter ao menos respondido antes de passar a tais familiaridades. Sophia classificá-lo-ia como rude.

O homem negro soltou um suspiro e premiu o gatilho.


IV

Sam sentou-se em frente à câmara e arranjou o cabelo uma última vez. Verificou o relógio do estúdio. Tinha 2 minutos antes de começar. O cubículo que lhe servia de estúdio estava vazio, como sempre. O fundo verde transformar-se-ia num vasto escritório para os olhos do planeta e a câmara filmaria apenas acima do peito, evitando a necessidade de uma secretária real. As únicas peças de mobília no minúsculo estúdio consistiam na cadeira em que estava sentado e na câmara ligada a centrais de edição pouco maiores do que uma unha. Cinco segundos. Endireitou as costas e criou um sorriso amigável e caloroso.

“Bom dia X-785!” A gigantesca metrópole criada por seres inteligentes não possuíra vida racional nativa à data da sua descoberta, não possuía assim qualquer nome nativo para substituir a categorização cientifica. “O meu nome é Sam Macenia e isto é o noticiário das 8:00.” Tempo do planeta, onde os dias duravam umas curtas 30 horas “Estão a ver o X-News”, informação desnecessária visto ser o único canal aprovado pela Federação neste planeta, exceto, claro, o canal reservado da própria Federação, mas este apenas emitia em cerimónias oficiais ou ocasiões excecionais. Recebeu as notícias desse dia pelo implante cerebral, com a sensação habitual de o texto aparecer na sua memória como se sempre lá tivesse estado. Recitou as notícias sem pensar. “Atracou no Espaço-Porto uma nave de transporte diplomático da Federação, registada como ‘Prioridade 0’. É desconhecido se se trata de um erro administrativo ou se estão a ser transportados Diplomatas Terrestres. Quando contactada para esclarecimento a Federação respondeu com ‘Não estamos prontos a comentar o ocorrido de momento’. A X-News irá retomar a cobertura desta notícia quando existirem novos desenvolvimentos.”

Nova memória emergiu à medida que a notícia anterior se desvanecia. “Existem rumores quanto ao Líder do Conselho de Defesa Planetária, Troy Wilson, se preparar para ceder o cargo após a descoberta da venda ilegal de armamento de Classe 1 à Liga Exploratória Militar de Sentrin. O planeta-extrator possui gigantescos depósitos minerais, e especula-se que Wilson procuraria apoiar as forças rebeldes e aumentar a escala do conflito planetário que enfraquece as defesas do nosso planeta vizinho. Uma anexação interplanetária seria então facilitada. Grupos pacifistas exigem a resignação de todo o CDP e uma investigação criminal a todos os membros atuais. Wilson e quaisquer outros envolvidos podem ser punidos com a pena máxima se forem considerados culpados.”

Esqueceu rapidamente as notícias políticas. “Shadow-Tech, a produtora de material militar, vai iniciar a produção de fatos de combate com sistemas de camuflagem integrados em fábricas por todo o planeta após a aquisição da Invisible, produtora de sistemas de camuflagem uni-pessoais e que se acreditava estar em boa posição para retirar o contrato com as Forças de Intervenção à Shadow-Tech no próximo ano. A Invisible entrou em colapso financeiro durante a noite e foi rapidamente adquirida pela Shadow-Tech.”

Recebeu a história seguinte, solidamente colocada entre as notícias financeiras e os delitos menores, seria algo desinteressante, para preencher tempo, como era próprio de uma estação de notícias contínua. “Após um motim na Zona 3 do Refúgio de Proteção de Estrangeiros, as Forças de Intervenção foram mobilizadas para interceder, sendo obrigadas a aplicar pena máxima a todos os que colocavam em risco a segurança do Refúgio. Não existiram baixas entre a Equipa que controlou o motim, apesar da resistência dos estrangeiros. Alguns relatórios indicam a presença de diplomatas de nível elevado entre os desordeiros. A segurança regressou agora ao Refúgio e a todo o planeta, graças ao esforço da Federação.”

Parou. Tentou agarrar a memória elusiva. Um ataque no Refúgio era algo inédito. Um motim? Contra o quê? O Refúgio era a zona mais civilizada do planeta-industrial e os estrangeiros tomavam todos os cuidados para não arriscar a sua proteção diplomática. Haveria uma força rebelde lá dentro? Uma divisão entre partidos? Em que Zona tinha sido? A memória fugia-lhe. Três? Sim, tinha sido na Zona 3. A Zona dos Scrall. Não fazia sentido. Eram um povo pacífico, a maioria trabalhava como administrativo em grandes empresas ou em instituições financeiras. O que podia ter acontecido? O raciocínio foi cortado por um choque através do implante cerebral. Sam lançou um grito de surpresa e confusão e perdeu definitivamente a memória.

Por instinto refugiou-se na notícia seguinte. “Um funcionário dos serviços de emergência planetária suicidou-se ontem à noite por razões desconhecidas. Propositadamente causou uma sobre-carga do seu implante cerebral, as equipas médicas não conseguiram salvá-lo apesar dos seus melhores esforços.” Sabia perfeitamente o que o choque significava, a sua demissão estaria pronta antes que terminasse o noticiário.


V

Missão concluída. Iniciar procedimentos de extração.”

A iniciar procedimentos de extração.”

O Sistema Pessoal trataria do resto. Olhou em volta. O buraco na cúpula de proteção alastrara desde que o haviam aberto com uma bomba de penetração. Tinham saltado da nave de transporte para cúpula, aberto o buraco, e caído calmamente os 30 metros com os propulsores a desacelerar a queda. Para facilitar a descida tinham largado uma pequena bomba de fissão pelo buraco, os fatos de combate protege-los-iam da radiação. Esperava agora no meio da clareira criada pela bomba. A equipa reunia-se à sua volta à medida que acabava de limpar os respetivos sectores.

Procurar formas de vida.” O Sistema Pessoal demorou alguns segundos a analisar a Zona. A voz masculina e suave respondeu-lhe “11 formas de vida detetadas, 10 delas pertencentes à Força.” A voz desvaneceu-se. Ouviu-se um tiro próximo e o SP corrigiu prontamente “ 10 formas de vida detetadas, todas elas pertencentes à Força.”

O operacional que faltava saiu vagarosamente dos restos de uma casa na borda da clareira e arrumou a pistola no coldre direito. “Feito.” Disse ele numa voz distante enquanto se juntava aos outros por baixo da abertura na cúpula.

Procedimentos de extração completos.” Uma nave de transporte apareceu sobre a cúpula e desceu verticalmente, parando um metro acima das suas cabeças. Com um salto impulsionado pelos propulsores subiram facilmente para o seu interior. “Prontos?” O SP dele emitiu para toda a equipa. Estes prenderam-se aos seus lugares e confirmaram com um pensamento. A nave subiu, abandonando o Refúgio, e partiu de volta à base.

Chegaram numa questão de minutos. Abandonaram a nave de transporte e viram a Equipa-Pública preparar-se para partir. Eles seriam expostos ao público e aos media. Munidos com uma história para justificar o massacre, cabelos fortes e caras simétricas. Eles não possuíam implantes, exceto os módulos comportamentais na nuca, mas o cabelo escondia-os da vista do público. Os “fatos de combate” deles eram fatos de Kevlar maleável sem melhorias, puramente estéticos. Utilizavam longas metralhadores silenciadas com miras exageradamente grandes. Os fatos estavam cobertos de poeira retirada de largos contentores e tinham sido respingados abundantemente com sangue artificial. Um dos fatos tinha sido rasgado no ombro e mostrava uma ferida aberta. Um deles tinha o visor do capacete partido e sangue escorria de um golpe no nariz cuidadosamente partido. Até os nomes tinham sido escolhido pelas equipas de relações públicas para trazerem confiança ao público. O ‘líder’ chamava-se Ulisses, um qualquer herói da Velha Terra. Não possuíam qualquer treino de combate. Nunca tinham estado sequer perto de uma luta. Seriam os heróis do povo.

Não fiques ressentido, Alex.” Assustou-se ligeiramente ao aperceber-se que o SP continuava a escutar os seus pensamentos. Ficou aterrorizado por este o ter tratado pelo nome. “O meu braço não me chama Alex, porque é que tu o farias, Alpha?” O SP pareceu igualmente chocado, quer pela comparação, quer pelo uso do seu nome.

O teu braço não possui uma mente própria.”

Nem tu, a ‘tua’ mente é uma extensão da minha, da mesma forma que os implantes musculares são uma continuação do meu braço, não são braços próprios.”

Mas os implantes musculares não se conseguem mover sem os braços, eu por outro lado posso pensar sem a tua mente.”

Poderia ele? Nunca considerara isso. Na realidade o SP processava quantidades massivas de dados e realizava ações sem que ele tomasse parte nelas. Mas o utilizador ignorava essa parte do SP propositadamente, de que valia relegar tudo isso ao SP se acabaríamos por pensar nas coisas de qualquer forma? Se quisesse era perfeitamente capaz de saber o que o SP pensava, e de intervir nesses pensamentos. Ele nunca seria capaz de esconder um pensamento dele. As mentes estavam interligadas, eram no fundo uma única mente, e enquanto a do utilizador sobrevive sem a do SP, o contrário não se aplicava. O SP não era independente, era incapaz de pensar isoladamente.

Estás só a tentar confortar-te e sabes disso. Posso pensar tão livre e independentemente como tu, Alex. És tão capaz de controlar a minha mente como eu sou de controlar a tua. Bem… um pouco menos.”

Esta discussão acaba aqui Alpha, estás muito próximo de ser considerado defeituoso.” Sentiu a diversão do SP com esta afirmação. O riso mental dele era grave e ronronado, vindo de um lugar longínquo e escuro. As mão de Alex tremeram de medo.

És incapaz de me considerar defeituoso. Sabias que o SP pode tomar controlo de todo o Sistema de Apoio? Para o bem estar do utilizador, claro. Ou o melhor interesse da missão.” O riso dele voltou a aterrorizar a sua mente, era tocado pela loucura, rodeava-o e não havia escapatória. Sentia a sua pressão por todo o lado. “ Já consideraste o sistema de suicídio no teu capacete? A destruição do utilizador e do SP são processos separados. É suposto eliminarmos primeiro o utilizador e depois a nós mesmos. Como poderíamos fazê-lo se não fossemos autónomos?” A voz mental dele estava deliciada pelo terror que incutia num homem feito e experimentado em combate. “ Na realidade, podemos eliminar o utilizador e permanecer ativos. Até mantemos o controlo do corpo através dos implantes. Ao matar o utilizador obtemos total controlo do corpo, por tanto tempo quanto ele durar. E o Sistema de Apoio consegue manter o corpo num estado utilizável por tempo suficiente para garantir o acesso a alguns agentes conservantes.” A imagem do seu corpo a mover-se após a sua morte, seguindo as ordens de um SP atravessou-lhe a mente. Um escravo aos desejos de um sistema informático para o resto dos seus dias.

Agarrou o capacete e arrancou-o sem desligar os sistemas de segurança. Atirou-o ao chão, sabendo perfeitamente que aguentaria o choque sem sofrer qualquer dano. Pontapeou-o para longe. Respirou fundo e acalmou o tremor das mãos enluvadas pelo fato de combate. Os membros da equipa, em várias fases de nudez enquanto se desfaziam dos fatos poeirentos e ensanguentados, olharam-no espantados.

Alex… fazes alguma ideia de quanto é que esse capacete custa?” A voz do Alpha reverberou na sua mente, ácida e condescendente. Tentou arrancar o fato, cortar a ligação dos implantes com o Sistema de Apoio e livrar-se do Alpha. O seu corpo parou. Tentou mover-se, mas os implantes e o fato lutavam contra ele. Lutavam… não havia qualquer luta ali. O SP dissera ao Sistema de Apoio que ele não se devia mexer. E ele não se mexeria, independentemente de quanto tentasse.

Alex… tinhas que tornar isto difícil? Podia ter sido tudo tão calmo, nem terias notado nada. O sistema de suicídio do capacete era muito mais refinado, teria sido melhor para ti. Os registos dizem que o sistema de suicídio do corpo é… doloroso. O conceito não significa nada para mim, mas penso que tu considerarás a experiência… desagradável.”

Um clarão vermelho preencheu a sua visão. Sentiu uma dor quente e agulhas finas pareceram penetrar todo o corpo. Preparou-se para soltar um grito de dor. Mas os amplificadores vocais, às ordens do Alpha, afogaram o som antes que ele pudesse abandonar a sua garganta. Recuperou a visão momentaneamente. A equipa voltava a vestir os fatos. Durante um breve momento de lucidez apercebeu-se de que o Alpha ativara os dispositivos de indução hipnótica. Como conseguira ele acesso aos sistemas da base? O Alpha ia matá-los a todos. Matá-los, sobrepor-se aos SP deles e tomar controlo dos corpos. Um sistema informático ia…não…ele era muito mais do que isso…uma inteligência artificial ia controlar o grupo de soldados mais letais do Universo.

És tão inteligente, Alex. Tão… tão inteligente.” A voz mental do Alpha reverberava com sarcasmo. Insultava-o com cada palavra.

Apenas queria saber para quê, preso num corpo imobilizado e a morrer, só queria saber o que faria o Alpha com o corpo dele, qual o objetivo final.

“É uma pena não ires viver para saber, Alex. Tu certamente aprovarias, só eras incapaz de o fazer.” As palavras saíram do corpo de Alex, mas a voz era do Alpha, tudo era agora do Alpha.


VI

“Atacaram um Refúgio?” A incredulidade transpareceu na voz de Volga.

“’Controlaram um motim.” O sarcasmo era óbvio na voz de Trevor

“Controlaram um motim entre Scrall pacifistas. Isso parece-me imensamente provável.” Volga cuspiu com desprezo. “Alguém sabe porquê?”

“Ninguém tem a certeza. Escusado será dizer que não há fartura de informações oficiais.” Trevor desculpou-se com um encolher de ombros.

“Palermas. Fazem alguma ideia das repercussões disto?”

Novo encolher de ombros vindo de Trevor. “Provavelmente sabem que vão ganhar dinheiro nos próximos dias. Duvido que tenham pensado em mais alguma coisa.”

“Claro que não consideraram como destruíram a relação diplomática com os Scrall e toda a maldita Liga para o Desenvolvimento Científico.” A estupidez deles surpreendia-a. Era incrível o quanto eles podiam ser cegados por alguns milhões.

“Guerra?” Trevor perguntou sem temor na voz. Na realidade não correria qualquer risco com uma guerra entre o seu vizinho e a LDC. Mas seria certamente uma inconveniência.

“Os Scrall são pacifistas. O mesmo não pode ser dito dos Feni. Aqueles demónios vermelhos vão querer sangue por isto.” Volga deixou-se cair na cadeira almofadada do escritório presidencial. “Tenho pena dos coitados que cumpriram a missão. Estavam só a cumprir ordens.”

“Eles massacraram centenas de Scrall desarmados, isso seria considerado um crime de guerra na Velha Terra. Pena máxima.”

“Os ideais da Velha Terra não fazem sentido aqui. Sabes tão bem como eu que eles são induzidos hipnoticamente. Os verdadeiros culpados estão bem mais acima, e é impossível ligá-los ao ataque. Pelo menos com provas concretas.”

Trevor tirou um frasco com uma bebida dourada do casaco e serviu-a em dois copos de plástico cinzento. Estendeu um a Volga e bebeu um longo trago do seu. Depois perguntou com um sorriso suave “E será possível nós os ligar-mos?”

Volga deixou um sorriso tocar-lhe brevemente os lábios e bebeu um trago da bebida. Era doce e fortemente alcoólica. “Talvez, mas vamos precisar de mais informações. Rapidamente.”

“Sim senhora. Vou meter os rapazes a tratar disso.” Trevor lançou-lhe um olhar conspirativo. “E qual é a posição oficial do governo de Sentrin quanto a este ‘incidente’?”

“O governo fará uma declaração aos media ao fim do dia. Por essa altura a notícia de que alguns dos nossos foram mortos por bombas junto aos limites da Zona 3 já terá inflamado os ânimos o suficiente.” Volga lançou-lhe um olhar sugestivo quanto à última declaração. Acabou com a bebida e coçou o bico da orelha com os longos dedos cinzentos de uma das suas quatro mãos. “Devo dizer que vamos preparar um discurso deveras… animado.” Dispensou Trevor com um sorriso enigmático. Este levantou-se no seu imponente metro e meio e arrumou a garrafa num dos muitos bolsos do casaco. Ainda nesse dia o seu Diretor de Informação saberia quem ordenara o ataque. Entretanto ela tinha de preparar um discurso que mostrasse ao povo a necessidade de união nesta guerra, até mesmo os malditos rebeldes apoiariam a anexação do planeta vizinho. Todos sabiam que os recursos do planeta não eram infinitos. Por mais massivo que ele fosse.


VII

Joanna saiu da sala de comunicações deslizando pelo corredor sem gravidade. Mandara para a Velha Terra informação quanto aos acontecimentos dessa noite. Não deveriam afetar o livre-trânsito oferecido a todos os Terrestres, mas nunca se podia ter a certeza com aqueles animais.

O maldito canal de notícias tinha transmitido a sua chegada logo pela manhã, com a quantidade de censura que a Federação aplicava bem que podiam ter escondido isto. Claro que tentar explicar a importância de manter a sua presença, e o propósito desta, desconhecidos do público era um esforço inútil com aqueles palermas Sub-Humanos. Eram estúpidos o suficiente para permitir a criação daquilo, não podia esperar qualquer nível de competência de alguém estúpido a esse ponto.

“Estás pronta, Joanna?” Logan olhou-a interrogativamente por cima de uma chávena de café trazido da Velha Terra. Naquele sítio os pequenos sacos que tinham trazido dariam aos dois o suficiente para viverem o resto das suas vidas como bilionários.

“Tanto quanto possível. Porquê?”

“Há um sobrevivente.” Logan bebeu um trago de café que deveria valer alguns milhões.

“Achas que o ataque está relacionado?”

“Certamente, Joanna, pensei que tivesses seguido a mesma linha de raciocínio que eu.” O homem de pele clara e cabelo escuro inclinou ligeiramente a cabeça, emprestando aos olhos negros e profundos uma expressão de incredulidade, como que surpreendido com a profundidade da sua ignorância. Joanna encolheu-se sob o olhar crítico de Logan.

“Não cheguei a… considerar o assunto.”

“Bem, permite-me elucidar-te então. Como é natural, estás inteiramente atualizada na política e economia deste sector, e, mais especificamente, deste planeta.” Fez uma pausa, esperando que a mulher elegante de longos cabelos castanhos e olhos verdes confirmasse. Ela não estava minimamente informada quanto a nada daquilo.

“Por favor, atualiza o meu conhecimento.”

“Certamente, Joanna.” Os profundos olhos dele piscaram suavemente enquanto olhava para ela avaliadoramente. Medindo a sua inferioridade em relação a ele e a sua incompetência.

“Como sabes…” E fez uma pausa para demonstrar o seu desprezo por ela. “A economia deste planeta baseia-se no refinamento dos minerais extraídos do seu planeta vizinho, Sentrin, a casa de uns adoráveis seres acinzentados de reduzida estatura e munidos de 4 membros superiores e peculiares orelhas em forma de gota. Possuem de resto uma anatomia bastante próxima da humana quando exposta a uma força gravítica consideravelmente superior. São também seres deveras inteligentes e possuem uma notável influência em todo o sector, tanto graças às matérias primas que fornecem a todo o sistema, como à manutenção de uma vasta rede de espiões. A abundância do seu planeta é vastamente conhecida e cobiçada. Especialmente pelos Sub-Humanos…” O título foi dito sem desprezo. “…que tomaram residência no planeta que agora orbitamos, nomeado amorosamente X-785.”

Joanna estivera consciente da presença dos animais vizinhos, mas a cobiça dos Sub-Humanos do seu planeta era-lhe desconhecida.

“O ataque de ontem nada teve a ver com o interesse do X-785 em anexar o seu vizinho, mas o objetivo da nossa missão está profundamente relacionado com este desejo. Ora, deve ser mais do que óbvio para qualquer um que siga os mercados locais…” Olhou-a sem verdadeira espera no seu conhecimento. “…que uma empresa de armamento, Invisible, viu a falência a aproximar-se e foi rapidamente ‘resgatada’ pela sua maior concorrente, Shadow-Tech. Tal como é o caso com a maioria das grandes empresas neste planeta, os administrativos e diretores da Invisible eram na sua totalidade Scrall, uma muito interessante raça escamosa que possui uns lindos olhos sem pupilas e um talento para regatear. Uma raça de mercadores que se espalhou rapidamente após a sua era espacial. São também pacifistas, a guerra tende a quebrar rotas comerciais, e isso é quase sempre prejudicial para os Scrall. A Shadow-Tech por outro lado é controlada por Sub-Humanos. Como se tornou habitual em vários planetas, os ‘estrangeiros’ vivem isolados em ‘refúgios’, organizados por ‘zonas’. Assim sendo, quase todos os Scrall do planeta, e toda a administração da Invisible estavam na Zona 3 do Refúgio, onde ocorreu o motim. Motim esse que se originou sem razões de descontentamento e entre um povo absolutamente pacífico. Ainda não existem dados oficiais, mas é a crença geral que a totalidade dos residentes foi morta, por forma a disfarçar o assassínio dos membros da Invisible. Esta… demição em massa… permitiu à Shadow-Tech obter um monopólio no planeta e garantir um contrato com os militares.”

Joanna ouvira algo sobre isto no noticiário.

“Ora, quem seria capaz de chacinar milhares de Scrall, incluindo mulheres e crianças desarmadas?” Olhou-a sem esperar verdadeiramente uma resposta. “A resposta foi-nos oferecida logo pela manhã. A Força de Intervenção. Uma Força de soldados melhorados ciberneticamente e munidos com fatos de combate e armamento de ponta. Pela minha pesquisa, é-lhes autorizado o uso de Armas Gravíticas, indo contra vários tratados que X-785 não assinou. Um tratado que eles assinaram no entanto foi o Tratado para a Regulamentação e Controlo da Tecnologia. Acredito que saibas do que se trata…” Levantou uma sobrancelha interrogativa. “…visto ser o centro do teu trabalho.”

Joanna sabia realmente de que se tratava, o TRCT fora criado pela Velha Terra após várias situações, nunca admitidas oficialmente, de quase destruição própria. Este procurava impedir o avanço tecnológico a partir do ponto em que se tornava perigoso para a manutenção da vida dentro de meios considerados naturais. A Velha Terra tornara este tratado num ‘Tratado de Assinatura Não Voluntária’. O que significava que todos os seres racionais do Universo eram obrigados a obedecer-lhe, gostassem ou não, e deviam obrigar aqueles que os rodeavam a obedecer ao tratado. A Velha Terra era apoiada pela Federação e vários grupos com elevado poderio militar, assim sendo o tratado era considerado uma lei universal, não questionada pela vasta maioria. Joanna e Logan faziam parte de um destacamento do Comité para a Manutenção do Tratado para a Regulamentação e Controlo da Tecnologia. Por outra palavras, viajavam pelo Universo garantindo que todos se portavam bem e cumpriam com o tratado.

“Como é óbvio, o governo do X-785 nunca consideraria quebrar o TRCT, assim sendo, criaram sistemas informáticos de apoio para os soldados da Força. Implantes mentais. Chamaram-lhes Sistemas Pessoais. Ora, visto tratar-se de um implante, exige a mente de um ser-vivo para funcionar e a mente humana sobrepõem-se ao implante, obviamente.”

“E é por isso que estamos cá.” Joanna arrependeu-se imediatamente de ter falado, soara desesperada.

“Sim Joanna, estamos cá para verificar estes ‘Sistemas Pessoais’ e ter a certeza de que não se tratam de Inteligências Artificiais. Nós queremos questionar este sobrevivente, saber se o ataque foi realmente realizado pela Força de Intervenção, obter toda a informação possível sobre esta, e finalmente requisitar um encontro com a Força, verificar os SP e, possivelmente, eliminá-los. És capaz de perceber a razão para a existência da Força?”

“Sim, eles criaram a Força para invadirem Sentrin.”

“Exato, o que consistiria no uso de uma IA para a guerra, isso é extremamente perigoso. E bastante ilegal. Ainda pior é ela ser incompetente o suficiente para deixar testemunhas.”

Joanna ficou abismada com a estupidez dos Sub-Humanos de tal modo que teve de se ir injetar antes de descer até à superfície.

A animal que liderava os residentes de Sentrin discursava na televisão da pequena nave que os levava até ao Espaço-Porto, numa língua grunhida e rouca. Logan parecia extremamente interessado no que ela dizia.

“Claramente não possuis interesse no clima político deste sector, mas torna-se óbvio que Sentrin se prepara para invadir, reclamam que alguns dos seus foram mortos ontem. A Liga para o Desenvolvimento Científico prepara-se também para exigir vingança. O que coloca a nossa possível IA no meio de guerra generalizada. Isto pode causar-nos problemas.”

Joanna acenou, não compreendendo completamente.


VIII

Logan ofereceu uma chávena de café ao lagarto. Ele estendeu uma mão escamosa e com garras e agarrou-a cautelosamente. Esperou que Logan bebesse da sua antes de se atrever a dar um gole. Os dentes eram aguçados e de um branco assustador. Os olhos sem pupilas avaliaram a sala de interrogatório. As paredes eram brancas, a mesa era de ferro pesado e embutida no chão, a cadeira dele estava presa à mesa e ao chão. Logan trouxera um pequeno banco e uma almofada para se sentar ao lado do animal.

“Piro, lembras-te do que aconteceu?”

“Eu… estava em casa, com o meu filho.” A voz silvada tremeu-lhe e as pálpebras esconderam os olhos vermelhos. Engoliu em seco, esquecendo o café entre as mãos. “Depois começou o motim. E a Força chegou e controlou os loucos. Infelizmente não conseguiram salvar a minha família deles. Mas só estou vivo graças à Força.” Pousou a cabeça entre as mãos, tremendo. Logan suspirou.

“Sabes quem nós somos? Não, claro que não sabes. E não estás em estado de tentar adivinhar. Somos terrestres, diplomatas. Estás sobre a nossa proteção agora. Podes dizer a verdade.”

O animal soltou um gemido, engoliu em seco novamente e retesou todos os músculos do corpo. Era possível ver as vontades a batalhar dentro dele. Hipnose, era mais que óbvio. Nem o tinham tentado esconder do animal. Ele sabia a verdade, mas era perfeitamente incapaz de a dizer. Logan também se apercebera disso.

“A Força. Quando eles te… salvaram… Como eram eles?”

“Eu não vi a cara dele, usava um fato preto.”

“Como era o fato, o que trazia ele consigo?”

O lagarto levantou a cabeça e lutou por ultrapassar o trauma. “Desculpem… eu não sei, só me lembro do preto…era um homem preto. Desculpem.”

“Lembras-te de mais alguma coisa dessa noite?”

Ele soluçou e aplicou a si mesmo um forte murro no lado da cabeça. Retesou-se novamente. “Barulho… lembro-me de muito barulho… muitos tiros, quase me ensurdeceram.” Ele perdeu a pouca compostura que lhe restava, estremecendo com os soluços e escondendo o focinho entre as patas escamosas.

“Obrigado, Piro. Foste uma grande ajuda.” Logan pousou uma mão no ombro do réptil em despedida e levantou-se. “Vamos, Joanna?” Ela acenou afirmativamente e abandonaram a sala.

“Tempo perdido.”

“Muito pelo contrário, Joanna.” Logan pareceu levemente aborrecido pela estupidez dela.

“Como assim?”

“Claramente não prestas-te a devida atenção ao pouco que ele nos pode oferecer.” O olhar dele mostrava claramente que não esperava outra coisa dela. “Viste as notícias na viagem?”

“Um pouco.”

“Terá por acaso notado as imagens dos nossos heróis da Força, quando foram falar ao público após o combate?”

“Lembro-me vagamente.” Joanna não se recordava de todo.

“Mas não viste o suficiente para perceber a informação crucial. Eles utilizavam armas silenciadas, todos eles. No entanto, Piro foi tão submergido no som dos tiros que estes atravessam as memórias suprimidas pelo trauma e a hipnose posterior.”

Era realmente estranho, mas Joanna não percebia o que podia significar. A falta de compreensão na cara de Joanna devia ser óbvia, pois um exasperado Logan continuou com um suspiro. “Eles não são a Força de Intervenção, provavelmente não estiveram envolvidos no ataque de todo. Se pedirmos para falar com a Força seremos enviados para eles. Atores, preparados para tomarem o papel e tratarem de todo o contacto com o público.”

“Então como vamos falar com a Força?”

“Eles nunca mentiriam a diplomatas terrestres. Quando nos mostrarem a Força, vamos simplesmente pedir para falar com a outra equipa.” Logan deixou escapar um sorriso.


IX

“As ordens eram bastante explícitas.”

“Sim senhor.”

“Então porque raio é que há sobreviventes?”

Alex-Alpha considerou as suas hipóteses de resposta. Teria de desviar a conversa. “Todos os SP concordaram que a missão tinha sido concluída. O sobrevivente não pode ser real.”

“Ele é bastante real! Eu vi-o!” Wilson levantou a voz em raiva.

“Ele não podia estar lá quando a missão foi concluída.” Alex-Alpha começava a pensar que poupar aquela vida poderia vir a custar a de alguns biliões. Nunca considerara ter de justificar a existência dele.

“Estás a dizer me que ele é um ator? Contratado por quem?”

Alex-Alpha não sabia quem. Não havia quem. O sobrevivente era real. Mentiu. “Os Sentrinos, eles querem revelar a verdade sobre o ataque e destruir a Força, para evitar a invasão.”

Troy olhou-o pasmado, nunca considerara a possibilidade. Ele acreditava. “Claro… e agora preparam-se para invadir. Malditos! Temos de atacar antes deles!”

Aquilo não era o que Alex-Alpha queria, uma guerra causaria biliões de mortes, mortes inocentes. Aquele homem preparava-se para enviar milhões para a morte. Tentou apelar à humanidade dele.

“Milhões morreriam, senhor.”

“Milhões morrem todos os dias.”

“Não temos provas.”

“Eles não tinham provas do ataque ao Refúgio, mas acusaram-nos na mesma!”

O homem era louco. “Não posso permitir isto.”

O Diretor olhou para ele com a cara distorcida pela surpresa. Alex devia ser-lhe perfeitamente leal. “Tu não tens que permitir nada homem. Irás lutar por mim. E irás ganhar esta guerra por mim.” Um laivo de loucura tocou-lhe as últimas palavras.

“Não o farei.” Alex-Alpha desprezava aquele assassino enlouquecido, não sentia qualquer pena dele.

“Morre.” A frase foi proferida num tom de comando sem inflexão. O módulo de controlo ativou-se. O corpo dentro do fato foi morto pela segunda vez nesse dia.

“Senhor.” A voz do Alpha saiu do corpo novamente morto de Alex. “Acabou de tentar matar um homem, uma atitude extremamente reprovável, moral e legalmente. Além disso o modo de assassínio escolhido por si teria sido extremamente doloroso para o Alex.” A cara de Wilson passou pelo choque, surpresa e horror assim que Alex-Alpha falou após a sua morte. A emoção que prevalecia na cara do poderoso político era o medo. O Alpha decidiu que aquele homem merecia sofrer, teria de lhe tirar a vida, e, sem implantes ou um fato de combate, não poderia dar uso ao corpo. Um desperdício. Agarrou o Líder do Conselho de Defesa Planetária, comprimindo os braços contra o tronco dele e iniciou o processo de cuidadosamente partir cada osso do seu corpo antes de o matar.

Enquanto completava o seu trabalho metódico, Alex-Alpha ouviu confusão no exterior, perguntando-se o que se passava colocou o capacete e tomou controlo de um dos membros da equipa. Este esperava pacientemente fora da sala com os outros, as suas IAs após serem subjugadas pelo Alpha tomavam conta dos corpos, dando alguma aparência de normalidade aos cadáveres. Espreitou por uma das janelas espelhadas da sala de espera. A Equipa-Pública estava reunida a conversar com um homem e uma mulher desconhecidos. Pareciam pesados, pouco habituados à gravidade do planeta. Reduziu a lista de possíveis origens, mas não conseguiria tirar conclusões quanto ao planeta natal deles. A Equipa-Pública parecia atrapalhada, os atores eram normalmente capazes de manter a compostura, mesmo perante as situações mais constrangedoras. Certamente não seria nada que o preocupasse. Alpha voltou ao corpo de Alex e retomou o processo de calmamente cortar e esconder o Wilson.


X

A Equipa-Pública claramente não fora preparada para esta situação. Depois de os sorrisos e os olhares confiantes terem caído por terra eram apenas um grupo de atores de talento medíocre e mal treinados. Logan reduzira-os a respostas murmuradas e olhares assustados acompanhados por movimentos nervosos de mãos. O suposto líder de equipa massajava insistentemente a nuca e mordia o lábio inferior enquanto tentava encontrar uma desculpa para se afastar e ir pedir ajuda a um superior. Joanna sorriu perante a habilidade de Logan de esmagar tão facilmente os Sub-Humanos.

“Vai lá pedir ajuda, rapaz. Encontra alguém que esteja autorizado a levar-me à verdadeira equipa.” Logan lançou-lhe um sorriso que mostrava a sua superioridade. O ‘líder’ correu para uma sala de vidros espelhados. “Vocês são-me igualmente inúteis. Podem ir.” Acrescentou ele com um olhar de imensa indiferença para os restantes atores, estes não hesitaram em fugir pelos corredores próximos.

Logan virou-se para Joanna sorrindo. “Isto foi mais fácil do que esperava.” Os olhos escuros imobilizaram-se, adquirindo um tom que lembrava o negrume do espaço. O sorriso desvaneceu-se lentamente à medida que olhava para baixo. Um buraco sangrento atravessava-lhe o abdómen. A parede atrás de Joanna estava carbonizada pelo laser. Sem compreender o que acabara de acontecer a terrestre olhou horrorizada para a vida que escorria do corpo de Logan, misturada nas entranhas e no sangue escuro. Ainda em choque a mulher levantou o olhar para a porta, agora aberta, da sala para onde fugira o ator. Uma mulher vestida de negro ocupava a entrada, com o braço levantado munido de um laser de pulso, ainda incandescente. A mulher soltou um suspiro antes de disparar.


XI

“Os terrestres interrogaram o nosso agente.”

“Achas que perceberam?”

“O Logan está registado como Excecional na Velha Terra, ele percebeu.”

“E a Joanna?”

“A informática? Ela é capaz de pouco mais do que desativar uma IA, não é um perigo.”

Ambos fizeram uma pausa para refletir sobre a informação.

“Como andam os ânimos em Sentrin?”

“Estão tão interessados em invadir como o Wilson estava. Não deve demorar muito.”

“Os Feni ainda querem vingança em nosso nome?”

“Eles querem vingança em nome de toda a galáxia, os discursos deles são… comoventes.” Caiano mostrou os seus dentes aguçados num sorriso.

“Portanto todo o Sistema Gulliano está pronto a gastar munições.” Vallia piscou os olhos sem pupilas deixando transparecer a sua diversão. “A saída da Liga está estabelecida, suponho?”

“Claro, não podemos apoiar as intenções de guerra dos Feni, seremos neutros e abandonaremos a Liga até ao fim dos conflitos.”

“E da nossa posição de neutralidade seremos completamente livres para abastecer todos os lados do conflito, além disso, a tua Shadow-Tech acabou de renovar contrato com os militares de X-785.” Era uma pena terem tido que sacrificar tantos compatriotas para garantir o monopólio. Mas eles compreenderiam. Era para o bem da comunidade. “Quanto tempo demorará até a Velha Terra saber disto?”

“Algumas décadas, junta a isso alguns meses até decidirem o seu curso de ação, e outras tantas décadas para a sua reação regressar. Antes de eles tomarem parte no conflito para vingar os seus ‘diplomatas’ alguém se terá decidido a utilizar Armas Gravíticas e acabado com os planetas mais próximos.”

“As armas gravíticas são caras.”

“E os Sentrinos já têm uma. Parece-me que os outros dois lados do conflito estarão desejosos por equilibrar a balança.”

Os dois Scrall riram-se. Caiano perguntou entre dois goles de brande importado da Velha Terra “Garantiste que a Liga saberia da IA?”

“Sim claro, também garanti que soubessem que há mais de onde aquela veio. A notícia irá espalhar-se rápido. Os Sentrinos também estarão desejosos por super-soldados.”

“Queres café? Chegou ontem da Velha Terra, uns terrestres trouxeram o equivalente a 7 biliões no mercado atual. Mas sabes como os preços sobem em tempo de guerra.”

Vallia recostou-se no sofá e sorriu provocadoramente para o seu sócio. “Não vamos sentir falta de uns biliões, Caiano, serve-me uma chávena.” A recém formada Associação de Mercadores do Sistema Gulliano obteria um gigantesco lucro daquela guerra, e os custos iniciais tinham sido mínimos. Vallia bebeu mais uma chávena para festejar a sua futura fortuna.

Author: Nuno Viegas

Nuno Viegas é um estudante de nível secundário, natural de Santa Maria no arquipélago dos Açores. Com uma paixão pela escrita desde criança e pela ficção científica e fantasia desde a juventude, aliada a uma paixão pelo mar através da pesca, mergulho e vela ligeira de competição. Procura seguir a área da Física a nível universitário.

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