Passando pelo Rincão dos Infernos em direção ao Passo das Enforcadas

-T
á brincando, né?

— Não. É isso o que diz o mapa — Cadico confirmou aproximando o papel da luz do teto da camionete.

— Cara, não é exatamente num lugar com esse nome que eu ia querer estar perdido no meio da noite.

— É só um nome, Betão. Vai te fresquear por causa do nome do lugar?

Betão bateu com as duas mãos no volante e ajeitou os óculos.

— Oh meu, vai dizer que não é uma puta duma má sorte estar perdido numa região em que não se acha uma desgraça de um posto de gasolina e, ainda por cima, o diabo do mapa diz que, para chegar na cidade mais próxima, tem que passar pelo Rincão dos Infernos e o Passo das Enforcadas?

— São só nomes — falou Cadico apagando a luz do teto.

— Nomes têm histórias.

— Ui, e a boneca tem medinho?

— Vai à merda, porra! Eu quero é chegar num lugar em que eu veja gente, Cadico. Que eu possa tomar um café quente e abastecer o carro. A gasolina tá quase no fim e nada de posto nessa estrada do caralho!

— Olha, a estrada não passa no meio desses lugares, ok? São só direções. — Cadico começou a mexer na mochila em busca de um cigarro. — Daqui há pouco a gente já vê a cidade mais próxima e… Que foi isso?

— Puta que pariu! A gasolina acabou!

— Merda! Não pode ser.

— Não pode ser o quê, Cadico? Eu tô avisando há um tempão que a gasolina ia acabar. O que é que não pode ser, porra?

— Tá — disse o outro sem vontade de provocar mais –, e agora o que a gente faz?

— Primeiro é descer e empurrar o carro para fora da estrada, não é, criatura? — Betão evitou olhar para o amigo, porque o nariz dele estava pedindo um soco.

— Ok, vamos fazer isso de uma vez. Antes que alguém bata na gente.

— Bata na gente? Vai sonhando, Cadico. Não vemos a droga dum carro há mais de hora. Ninguém passa nessa estrada. Antes aparecesse um carro para bater na gente e nos dar uma carona. Mas quem seria tão burro para estar nessa estrada a essa hora da noite?

Cadico grunhiu e saiu do carro empurrando a porta com força. Betão socou de novo o volante, sabia que estava certo. Os dois tinham tomado a maior quantidade de decisões erradas que se pode tomar em um único dia e haviam batido o recorde nas últimas horas. Tinham inventado uma viagem de carro para tirarem fotos de uns lugares ermos no interior. Haviam saído com o tanque pela metade com a intenção de abastecerem no caminho. Resolveram que não iam levar o GPS para ter mais aventura. Num dado momento, entraram numa estrada vicinal, em busca de fotos mais iradas.

Agora, claro, além de estarem perdidos, literalmente num mato sem cachorro, ainda estavam com raiva um do outro e de si mesmos. Péssima combinação, junto com o cansaço e a fome. A ideia da viagem fora do Cadico. Ele tinha entrado nessa “oficina de literatura” e havia resolvido que queria escrever sobre a solidão dos moradores do campo.

Uma droga de tema, repetia Betão, que saiu do carro logo atrás do amigo e juntos se colocaram a empurrar o veículo. Ele havia perguntado para o Cadico: quem ia querer ler uma bosta dessas? A maioria das pessoas sequer tinha tempo ou disposição para ler. O próprio Betão preferia assistir séries na TV ou até ler uma Graphic Novel legal, que desse para viajar nos desenhos.

Mas o Cadico estava numas de “artista” e, de início, Betão até se divertia com ele. O amigo ficava dizendo que ninguém o entendia, que ele queria fazer uma arqueologia sentimental do mundo invernal do interior, dos silêncios campesinos, da tristeza cinzenta dos campos, que era lá que a alma humana realmente tinha lugar, sem ser esmagada pela velocidade do caos urbano, sem ser aniquilada pela fala incessante das redes sociais e dos computadores. Uma baboseira sem tamanho.

Mas Betão era parceiro dos amigos. Achou que ia ser legal um programa diferente, gostava do lance da fotografia e, além disso, a Melissa estava cheia de provas na faculdade e já tinha dito que não ia poder encontrar com ele naquele feriado. Passou uma hora reclamando da orientadora no Face, dizendo que a mulher parecia achar que ela só tinha o trabalho final de graduação para escrever, que esquecia que ela estava cheia de matérias para terminar, que se não terminasse não ia se formar e que os pais já tinham pago um pedaço da colação.

Uma choradeira que ele ouvia desde que as aulas começaram, apesar de ter sugerido que ela atrasasse o trabalho final, que terminasse as matérias, ter dito que daquele jeito ela ia enlouquecer. Ou seja, a namorada tinha feito tudo ao contrário, agora reclamava, dava piti e, se ele descuidasse, ela ainda colocava a culpa nele. Melhor sair da zona de tiro.

Disse que ia dar uma mão, na parceria, para o Cadico, afinal, ele tinha carro e o amigo não. Era uma viagem só na sexta e no sábado, no domingo eles ficavam juntos o dia todo, prometia. Iam se falando pelo celular. Isso se aquela merda pegasse no meio daquele monte de serrania deserta. A tal da solidão que o Cadico buscava era tão grande que não tinha nem uma vaca por ali. Nenhumazinha.

— E agora, meu? — perguntou o Cadico. — O que a gente faz?

— Vamos fechar o carro e seguir pela estrada até achar um posto, uma casa, qualquer coisa.

— Desculpa, meu.

— É. Fazer o quê, né? Mas fica na boa, a culpa é minha também, fui eu que não abasteci a porra do carro, achando que tinha posto de gasolina no meio dessa mixórdia aqui. E nenhum dos dois “gênios” trouxe uma lanterna… Olha, prêmio Darwin pra gente, cara.

Os dois tiraram o que tinha de valor do carro: as mochilas e garrafas com restos de água, os celulares mais mortos do que vivos, as carteiras que tinham dinheiro, que era inútil por não ter onde gastar. Vestiram as jaquetas e se puseram a caminhar. A noite tinha um ar gelado. O céu estava aberto, com uma lua minguante e umas nuvens sem muita pretensão. Era possível ver toda a estrada, mas não dava para ver se havia cobra ou qualquer bicho estranho passando pelos pés.

— Pensa pelo lado bom, as estatísticas de gente que morre por mordida de cobra são ínfimas. — Cadico estava tentando ser positivo, mas o resultado era sempre ruim.

— É — concordou Betão. — Sabe por quê? Porque a maioria das pessoas está dentro de casa, no seu apartamento quentinho, assistindo um filminho ou jogando no PC e não no meio do mato!

— Ok, ok.

— Se eu morrer nessa porra, eu volto pra te buscar, Cadico.

— Ninguém vai morrer, Betão. Meu, você tá começando a alucinar.

Betão rosnou e os dois acharam melhor seguir quietos por um tempo.

— Olha naquele teu mapa para ter uma ideia de onde a gente tá — disse Betão.

— Acho que ainda estamos no Rincão dos Infernos.

— Isso nem precisa dizer — resmungou o outro. — E o que é o diabo do Passo das Enforcadas?

— Um lugar. — Betão o olhou como se fosse pular em cima dele aos socos. — Ah, um passo, pelo que eu sei, é um lugar num rio ou numa escarpa em que dá para passar.

— Beleza… ainda tem um rio ou uma escarpa pela frente. Já sei, Cadico: se a gente não morrer, vou te matar.

Cadico virou os olhos e apertou o passo. Estava começando a ficar de saco cheio do Betão. Daqui há pouco ia ter outro enforcado ali para se juntar às histórias do lugar. Deviam estar andando há uma meia hora quando avistaram ao longe a luz de uma casa. Trocaram um sorriso aliviado e rumaram para lá quase correndo. Nenhum deles estava com vontade de passar a noite caminhando no meio daquele mato. Àquela altura, os nomes já não incomodavam, era só terra e estrada, tudo comum, sem nenhum tipo de assombração. Sem ninguém. A luz da casa acenava com a possibilidade de outras pessoas. Isso era tudo o que os dois podiam desejar.

Só quando já tinham perdido a referência da estrada, caminhando pelo terreno acidentado e cheio de unhas-de-gato foi que Cadico se deu conta.

— Cara, o mapa diz que isso aqui é cheio de escarpa. É melhor a gente ir cuidando. Não estou a fim de um dos dois cair num troço desses e se quebrar.

— Show — ironizou Betão. — Qual é a próxima boa notícia?

— Que tal: não tá achando que a luz da casa fica mais longe à medida que a gente caminha? — debochou Cadico. Seu próximo movimento seria socar o amigo.

Betão, porém, olhou para a luz em dúvida.

— Tá achando isso?

— Sei não. Tô pensando que eu avaliei mal a distância da estrada. De início, me parecia que o troço era mais perto. Na minha ideia já ia dar para a gente ver os contornos da casa agora. O que acha?

— Não sei. Quer voltar?

— Não. É nossa melhor chance, né? A gente tá caminhando há um tempão e essa luz foi a única coisa que a gente viu. Vamos lá.

— Certo.

Voltaram a caminhar, só que agora com cuidado redobrado ao chão. Não mais temendo por cobras e outros bichos, mas que o terreno sumisse sob seus pés. Era uma região com muitas pedras, algumas acabavam abruptamente e eles precisavam contornar para poderem seguir. Em pouco tempo estavam exaustos, além de muito tensos. A luz da casa continuava distante. Por vezes, parecia mesmo se mover na distância.

— Sabe o porquê do nome desse lugar?

Cadico riu da pergunta.

— Ô meu, tem certeza de que vai querer ouvir história de terror nessa altura do campeonato?

— É de terror?

— Sei lá. Mais ou menos. Ou não. Sei que o Rincão dos Infernos é chamado assim por causa do terreno difícil, acidentado, perigoso. E porque tem uma entrada grande de caverna que chamam de portão do Inferno.

— E as Enforcadas? — perguntou Betão pulando sobre um touceira de unha-de-gato.

Cadico coçou a nuca.

— Uma lenda. Uma vez perguntei para minha irmã, mas ela disse que nunca acharam um processo-crime sobre o fato. Esses lugares já tinham esse nome na época da Guerra dos Farrapos, então, deve ser muito antigo.

— Tá falando da Giovana?

— E qual é das minhas irmãs que cursa História, Betão? — Cadico tropeçou e se ergueu rápido. Os dois colocaram ainda mais atenção no terreno irregular.

— Ué, vai saber, eu não sei que curso a Maria Cristina táfazendo.

— A Cris entrou para a pedagogia.

— Humm, e o que a Giovana sabe desse nome antes da farroupilha?

— Bom, se não tem documento, só tem a lenda, né? Parece que o pessoal da região fala que as tais mulheres eram acusadas de terem matado umas pessoas e envenenado o gado. Mas não há nem registro de assassinatos nessa época por aqui para justificar isso. Segundo a Gio, sempre teria de aparecer algum assassinato escabroso antes.

— Bruxas típicas, então.

— É. Ou algumas coitadas que eram curandeiras e parteiras. A Gio fala que é possível até que nunca tenha acontecido, que seja a memória que as pessoas trouxeram de outro lugar, aí passaram a recontar. Para deixá-la mais assustadora, dizem que foi ali, pertinho, em cima da coxilha.

— Humm, isso é tranquilizador.

Cadico riu alto.

— Não te acredito, Betão! Coisa mais ridícula um homem desse tamanho se borrando por causa do nome de um lugar. Vai te cagar!

Betão deu de ombros e fechou a cara. Como alguém podia achar normal andar de noite no meio de uma mataria com um nome daqueles e não ficar nem um pouquinho bolado? Demoraram mais um tempão caminhando até que conseguiram discernir os contornos da casa. Aí o caminho foi ficando fácil. Subiram a coxilha.

— Será que tem cachorro? — perguntou Betão.

— Se tiver, a gente corre.

— Maravilha, hein?

Estavam há alguns passos da casa e um cão começou a latir.

— Merda! Tem cachorro.

— Parece que tá preso — disse Cadico. — Se não já tinha vindo na direção da gente.

A casa era simples, de madeira, com tábuas verticais. Pelo que dava para distinguir pela luz junto ao telhado, tinha as paredes pintadas de azul e as janelas e a porta de vermelho. Umas florezinhas miúdas, meio mortas pela friagem, tapavam os pés da casa, cujo assoalho ficava a uns centímetros do chão. Um cinamomo fazia sombra ao lado direito e à esquerda, um pouco atrás, tinha uma casinha sanitária e um galpão pequeno. A lâmpada que iluminava a frente era a querosene e desprendia um cheiro forte. O cachorro continuava latindo.

— Melhor a gente bater antes que o cara apareça armado.

— Certo. Meu, que horas devem ser?

— Deixa eu ver — disse Cadico, puxando o celular. — Putz, acabou a bateria.

— E o relógio?

— Deixei de usar, vejo a hora no cel.

— Que tá sem bateria — Betão fez falsete na voz.

— E onde tá o teu relógio, queridão?

— Esqueci na casa da Melissa. Eu te disse.

Cadico rosnou.

— Certo. Olha, se a gente vai acordar o pessoal da casa, melhor agora do que depois.

Os dois, então, se puseram a bater palmas.

— Ô de casa! Ô de casa!

Demorou um pouco até ouvirem movimento por detrás das paredes. Um homem escabelado os olhou por uma fresta aberta da janela.

— Ô vizinho, desculpe incomodar essa hora — disse Cadico. — Terminou a gasolina do nosso carro lá na estrada e a gente quer saber se o senhor tem um litro ou dois para nos ajudar a rodar até um posto?

O homem olhou na distância.

— Não tenho carro — respondeu seco.

— Bah, vizinho, desculpa aí, mas a gente tá andando há um tempão, tem um canto em que possamos ficar até amanhecer? Somos gente de bem. Eu garanto. Estudamos na Universidade, em Pelotas. A gente pode até pagar a hospedagem.

— Não tem lugar, não.

A janela abriu um pouco mais e apareceu um rosto de mulher, igualmente marcado de cama e desgrenhado.

— Deixa eu olhar — ela os mediu. Tinha uns olhos pequenos, de fuinha ou de quem usava óculos há muitos anos. — São uns guris, homem. Que é que tem de mais dar um abrigo no galpão ali atrás?

A janela fechou e os dois ficaram discutindo lá dentro. O homem dizia não e a mulher dizia sim. Levaram uns dez minutos naquela, até que a mulher ganhou. Cadico e Betão tinham apostado nela. Nesses casos, as mulheres sempre ganham. Se fosse o contrário, se ela não os quisesse ali, já estariam sendo corridos àquela hora, com cachorro, tiro, o escambau.

Um pouco depois, o homem saiu. Era um sujeito magro, de altura mediana, barba por fazer. Carregava uma trouxa feita de toalha de mesa sob um dos braços e um lampião a querosene no outro. Na cintura um revólver de tamanho considerável. Os dois rapazes agradeceram efusivamente, tentando parecer simpáticos para diminuir a má vontade e a desconfiança do homem .

— Certo. Certo. Agora falem baixo para não acordar as minhas filhas.

Os dois fecharam a boca e seguiram o homem até o galpãozinho. Não era grande, só um lugar de guardar ferramentas.

— Vocês vão ter que se virar com os pelegos, guris. Não tem mais nada. E não vou colocar vocês dois lá dentro da casa. Tá fora de questão.

— Não, claro que não, a gente entende. O senhor tem filhas. São pequenas?

O homem resmungou e Betão se arrependeu da pergunta. Quis ser querido e acabou dando má impressão.

— Descansem e vão embora de manhã cedo. Ó, a mulher mandou um pão e tem café com leite na térmica — disse, entregando para os dois o fardo que trouxera sob o braço.

Os dois rapazes agradeceram em profusão novamente. O homem assentiu com a cabeça e foi embora. Sem muito o que fazer, Cadico e Betão organizaram como puderam os pelegos menos fedidos, e colocaram as mochilas para encostarem as cabeças. Estavam quase terminando o primeiro farnel quando uma moça colocou a cabeça para dentro do galpão. Depois, uma segunda moça. Eram parecidas, com talvez um ou dois anos de diferença.

— Oi — disse uma e os rapazes responderam.

— A mãe mandou mais comida. Vocês querem?

— Hã, sim, obrigado — respondeu Betão meio sem jeito. — Desculpem se as acordamos.

— Não foram as vozes, foi o cachorro.

— É, ele sempre nos acorda.

As duas entraram trazendo mais pão, um vidro de geleia e mais uma térmica, que disseram ter chá.

— Estudam na universidade? — Eles confirmaram. — Como é lá?

Elas eram novinhas. Deviam odiar morar naquele fim de mundo e nunca ver ninguém. Deviam estar sonhando com o dia em que iriam para a cidade, talvez, fazer faculdade. Ou será que nem sonhavam com isso? Tão bonitinhas as duas. Os dois começaram a falar, mas Cadico ficou mais à vontade e as gurias se chegaram nele para ouvi-lo contar dos cursos e de como era uma cidade grande como Pelotas, a qual elas não conheciam, só tinham ouvido falar.

A conversa rendeu, os dois aceitaram o chá e a conversa rendeu mais. Numa dada altura, cada um deles conversava só com uma das meninas, até que a mais ousadinha beijou Cadico. Ele ficou perturbado.

— O teu pai…

— Tá dormindo.

— Cara, eu não sei…

— Sou eu que estou beijando.

— Pois é, meu, mas olha, eu tô só de passagem, não sei se é legal.

— Não estou pedindo pra casar comigo. Pensei que estivesse a fim de uns beijos. Mas se não está, tudo bem.

Ela se levantou, mas Cadico acabou puxando ela de volta. Aí virou amasso mesmo. Betão ficou meio sem graça com a outra irmã. Será que ela estava querendo a mesma coisa? Não que ele tivesse alguma grande fidelidade com a Melissa. Sempre que saía sem ela, ficava com alguém. E, provavelmente, ela fazia o mesmo. Então, ninguém sabia de nada e tudo ficava na boa. Só que a menina ali era muito novinha. Se fosse menor, podia virar complicação.

— Quer um chá?

— Já tomei uma xícara. Não sou muito de chá — se desculpou.

— O chá da mãe é bom. Tira esse frio que fica no corpo de quando a gente anda na noite. Nenhuma doença vai te incomodar se tomar uma xícara de chá. Eu garanto.

Betão acabou concordando. Com as mãos ocupadas com a xícara, ele não ia agarrar a menina. Ela serviu o chá e ele tomou, mas já na metade estava querendo que fosse um balde de água fria na sua mão para atirar no Cadico e na outra garota porque estava ficando constrangedor assistir aos dois. Contudo, no fim do chá, ele mal conseguia manter os olhos abertos e acabou caindo sobre os pelegos, já dormindo.

Sonhou que o Cadico e a garota transavam bem ali, ao lado dele. Depois achou que não era sonho, pois ouviu gemidos e resfolegar e isso lhe pareceu bem real. Numa virada de corpo, teve a impressão de que o Cadico estava com as duas meninas. Ambas nuas se esfregando com ele, uma o chupava, enquanto ele chupava a outra. Betão de novo se perguntou se a garota mais nova não era menor de idade e quis levantar e falar para o amigo.

A imagem turvou e ele achou novamente que estava sonhando. Tentou virar o corpo, mas algo o prendia. Parecia que alguma coisa estava sentada em cima dele. Algo pesado, que lhe amarrava os braços e roubava o fôlego. A sensação foi ficando angustiante, pois ele não conseguia ver o que o prendia.

Então, Cadico gritou. Betão tentou se mover com mais empenho, mas não conseguiu. Era um grito estranho para um cara com duas mulheres e isso lhe deu um sentido de urgência, só que o mesmo peso que ele tinha nos braços e nas pernas, ele tinha agora nos olhos, não conseguia abri-los. O pânico aumentava com os gritos do Cadico, cada vez mais pavorosos. Aquilo não parecia um homem gozando, mas um porco sendo carneado.

Desesperado, começou a rezar todas as orações que aprendera com a mãe e mais algumas que lembrava pela metade das aulas de catecismo. Rezou como se fosse a única coisa capaz de libertá-lo. Quando finalmente abriu os olhos, já era dia do lado de fora. Conseguiu se mexer e procurou imediatamente o amigo. Cadico estava deitado, os olhos abertos fitando o teto.

— Cadico?

— Hein? — respondeu o outro.

Betão se jogou para trás.

— Cara, tive um sonho horrível.

— Eu também. Vamos cair fora daqui?

— Demorou, meu.

Os dois juntaram as mochilas e saíram do galpão. Procuraram pela família e só encontraram a esposa, na cozinha. O homem tinha saído, disse ela, foi com a carroça pedir para o pessoal do posto vir resgatar os dois na estrada. Bastava irem para o carro. Eles agradeceram e ela insistiu que tomassem café com ela e as meninas. Os dois olharam para dentro da cozinha e viram duas garotas de uns 9 e uns 5 anos.

— Essas são as suas filhas mais novas?

— A de cá é mais nova e aquela ali é a mais velha.

Os dois rapazes trocaram um olhar rápido e não quiseram outras explicações. Tinham sonhado, claro. A exaustão fora a causa dos delírios. Saíram dali tão rápido quanto as pernas permitiram.

Estavam subindo as escarpas já bem próximo de onde tinham deixado o carro, quando Cadico finalmente falou.

— Cara, eu sonhei que transava com as duas ontem.

— Eu sei. Eu sonhei que te vi transando com as duas.

— Teve mais coisas.

— Sim, sonhei isso também.

— Elas me contaram o que faziam as tais Enforcadas.

— Sério? O que era?

— Elas matavam pessoas para fazer delas guardiãs de enterros de dinheiro. Disseram que vinha estancieiro rico de longe para contratar os feitiços, porque os enterros de dinheiro delas ninguém encontrava. Fizeram isso por um tempão. Aí, o povo da região descobriu e começou a ficar com medo, por isso foram enforcadas.

— Enterro de dinheiro era aquela coisa que o pessoal fazia antigamente para proteger as fortunas das guerras?

— É.

Os dois andaram mais um tempo em silêncio.

— Elas me disseram que tem um enterro gordo, com moedas de ouro na escarpa sob a estrada em que deixamos o carro.

Betão riu e negou com a cabeça.

— Tá e as gurias do sonho sabiam onde a gente tinha deixado o carro?

— Quando se acha um tesouro desses, se liberta uma alma — continuou Cadico com a voz rouca. — Aquela que ficou presa cuidando dele.

— É, a minha mãe contava essa história. Por isso, sempre se passava o enterro de dinheiro para duas pessoas em sonho. Um ficava rico e o outro morria para pagar ao Inferno pela alma que tinha sido libertada.

— Pois é. Cava lá, cara. E, do que tu achar, dá um pouco para as minhas irmãs pagarem os estudos.

Betão se virou.

— Vai a merda, Cadico!

Mas só tinha uma sombra atrás dele, uma impressão esmaecida do Cadico com o peito rasgado, as roupas manchadas de sangue. Foi por apenas um segundo, o último em que pôde ver seu melhor amigo.

O corpo do Cadico foi encontrado alguns dias depois numa tapera em ruínas. Acharam o Betão junto ao carro, segurando trêmulo uma caixa antiga, lacrada, e com os dedos quebrados de cavar a terra duras das escarpas.

Author: Nikelen Witter

Nikelen Witter é escritora, historiadora e professora universitária. Agenciada desde 2016 pela Increasy Consultoria Literária; é autora de "Territórios Invisíveis" (Estronho, 2012/Avec, 2017), "Guanabara Real e a Alcova da Morte" (Avec, 2017), e de diversos contos publicados em antologias.

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