Revoluções

A pele de escamas de barro ressequido reveste outra, de plânctons luminescentes.
Uma pétala, única, apenas uma, sozinha, queimada nas bordas pela fumaça de uma chaminé enterrada na terra, um geiser.

Aquilo anda como um homem culpado, curvado, ainda não condenado; pesa, pelo sentimento de vergonha auto-infligido, pelos seus erros e os dos ancestrais. Percorre enormes planícies de gelo e depois areia quente.

É um homem em pecado, um Sísifo que endureceu o coração e virou sua pedra. Ele é pedra que rola e cai novamente no mesmo precipício, é levado no leito dos rios, fustigado pelas tempestades, abraçado e lançado por animais até rolar novamente no mesmo precipício.

De tanto rolar, virou espiral e calcificou, e agora é um caracol. Agora é leve e pesado ao mesmo tempo e carrega nas costas uma cidade.

É dessa cidade que vou falar agora.


É uma cidade inteira em mil pedaços, uma Marraquexe caleidoscópica, um conjunto de abóbadas suspensas no ar por mosaicos coloridos. Conforme ele gira, a cidade some e reaparece.

Há muito movimento ali, são centenas de vielas atravessadas por milhares de habitantes. E um desses habitantes é Buck.

O que é Buck? Não é um homem, não é um mito, não é um caramujo.

Sua pele é de escamas de uma espécie de barro ressequido. Ele anda jogando todo o peso do corpo sobre a coxa esquerda, erguendo o pé direito, depois coloca o pé direito à sua frente e derruba novamente o corpo, agora sobre a coxa direita, e é a vez do pé esquerdo erguer-se novamente. É assim que ele anda, como todos os seres humanos, mas jogando um peso bem maior sobre os membros inferiores.

Tem largos ombros e veste um pano branco sobre o tórax e calças jeans folgadas. Anda descalço como todos esses seres e leva um relógio no pulso esquerdo.

O que dizer do seu olhar? Nada além do que se diz do olhar de todos esses seres: eles não tem olhos visíveis. Parecem guiar-se com as narinas, dois buracos no rosto vincado. Tem boca e língua, que às vezes torna-se visível. Mas os olhos… nunca os vemos. Existirão sob as pesadas pálpebras de barro alaranjado?

Todo o seu corpo tem nuances acinzentadas. Às vezes pensamos que é composto de fragmentos de tijolos vencidos.

Este é Buck. Ele mora no prédio principal da avenida 32, décimo terceiro andar e vai muito bem, obrigado.

Na avenida 44 mora Jo, uma fêmea. Jo, neste exato momento, acaba de tomar uma ducha e de pôr uma longa túnica azul turquesa. Sua pele é mais alaranjada que a de Buck. No lugar de um bracelete, deixa o antebraço nu, mostrando uma tatuagem de borboleta.

Jo sai para encontrar Buck na estação. No caminho, pisa em trechos de paralelepípedo e em outros completamente recobertos por uma faixa de musgo verde escuro, que faz a caminhada mais macia e fresca. É uma bela noite.

Há estrelas no céu e não há sinal de tufão. De tempos em tempos o alarme soa: daí nunca se sabe o que virá. A última grande catástrofe foi há 25 anos, Jo ainda engatinhava e salvou-se por milagre, ao contrário de seus pais. Foi um alagamento e tanto e desde então todos narram com terror o grande dilúvio. Havia vestígios de que algo daquela magnitude já ocorrera antes, mas tinha sido há tanto tempo que consideravam uma lenda.

Cinco anos antes, o alarme soou novamente causando grande pânico. Porém, daquela vez o desastre foi menor: alguns tremores de terra e tempestades de areia. Devastou apenas alguns setores da cidade.

Era assim a vida por ali. Mas hoje é um dia para se admirar as estrelas.

Buck segue em direção a Jo. Olha o relógio, apressa o passo. Caminha ora em asfalto, ora sobre pedaços de terra úmida.

Eles são sobreviventes. Uma raça acostumada a ouvir alarmes, toques de recolher e a viver, se necessário, de pedras.

A última reconstrução total da cidade necessitou da ajuda de todos os habitantes. Recolheram cacos e refizeram cada milímetro de sua arquitetura. Os mais velhos, cansados, morriam. Muitos acreditavam em uma maldição: eram filhos da terra silenciada, que os pariu em dor e pranto. Não havia, pois, qualquer esperança.

Buck e Jo pensam diferente.


No vasto mundo muito maior, muito maior do que Jo e Buck podem imaginar, onde nascem e morrem as estrelas que admiram, lentamente se arrasta o Caracol.

Era um molusco ou um planeta? Através de suas antenas e dos pequenos olhos, as Estações passavam, Eras inteiras findavam e recomeçavam. Ele apenas seguia seu instinto sísifo. Não tinha memória do homem que tinha sido? Ou da pedra que havia se tornado? Ele era o próprio esquecimento, não se lembrava sequer que levava uma cidade nas costas. E por isso mesmo não se importava com seus habitantes, que habitavam sua própria casa! Esquecido de que dentro dele:

Há um mito,

Há um rito,

Bem no centro de sua espiral, onde poderia ser seu coração.


Buck e Jo encontram-se na estação. Ali transita todo tipo de gente. Há carros, motos, cavalos, porcos, skates e carrosséis. Todo tipo de transporte.

Eles se sentam de mãos dadas nos bancos azuis. Aquilo é uma festa de ruídos e luzes que captam sutilmente. Um ser humano talvez ficasse cego ali, mas eles estão protegidos.

Jo passa a mão no rosto de Buck e encontra nele um esboço de sorriso. Buck diz que ela deveria estar mais linda do que a noite pressentida. Quando seus lábios de barro se tocam ouve-se um barulho muito alto e agudo. O alarme soa.

Em um segundo a estação está vazia. Todos saíram correndo dali, sem saber do que fugiam.

Buck e Jo ficam onde estão. Fugir novamente, para onde e do quê?

Eles se abraçam.


Era uma pluma, uma folha, não…

Era uma pétala.

Uma pétala, única, apenas uma, sozinha, queimada nas bordas pela fumaça de uma chaminé enterrada na terra, um geiser.

Por que motivo aquela pétala branca sobre a areia despertou a atenção do Caracol? Parecia tão insignificante.

Mas ele quis saber o que era. Precisava cheirá-la, talvez mordê-la, talvez somente vesti-la… e arrastou-se até ela. Deixou o seu trilho gosmento de lesma e desviou-se para a esquerda!

Parem o tempo! Parem tudo! Sísifo saiu de seu trilho! O círculo não mais se fechará como uma condenação perpétua!

O mito foi profanado.


Na estação as luzes se apagam, mas há dois seres sentados ali, em revelação.

A pele de escamas de barro ressequido reveste outra, de plânctons luminescentes. A pele de escamas está se rompendo e dois seres luminosos são alçados aos céus.

A espiral do caracol despertou. Está erguendo-se. Responde a um chamado natural, responde ao tempo profundo da terra.

A concha calcária está se rompendo. De dentro dela, emerge um delicado caule verde que vai se desdobrando até se tornar uma flor de pétalas brancas.

No centro desta flor, desafiando todo mito, todo esquecimento, todo ódio e toda condenação, veem-se pela primeira vez, entre lágrimas de amor e perdão, dois seres revestidos de plânctons luminescentes.

 

Ilustração: Kaliani Dassi

Author: Vimala Ananda Jay

Vimala Ananda Jay é filósofa e escritora, saxofonista do Ungambikkula Tribe, autora do livro De A a Z - Uma aventura pela escrita, e idealizadora do Ateliê de Escritores.

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