Quem conta uma história oferece uma dádiva.
Quem a ouve, transforma esta dádiva em eternidade compartilhada.
Provérbio atribuído a Vaina, arquivista da corte Rao
Ainda no começo, quando os passos dos primeiros d’O Povo ainda eram hesitantes, os dragões já eram velhos como as pedras. Meditadores soturnos sobre os fins últimos, da vida, das estrelas e dos tempos, tiveram tempo de fazer de tudo e se provarem em tudo.
Tornaram-se pensadores amargos, acumulando tristezas sobre tristezas em seus corações.
É. Dragões. Nenhum traço, nenhum leve beijo, nenhuma obra deles sobrou (nenhum deles é mais visto, seria mais exato), mas já existiram, trabalharam o planeta e fizeram coisas. Você também encontrará os dragões sob os nomes Cobra-Grande, M´boi, Teyú. Escolha. Também Quetzacoatl, Tiamat. E, claro, não esqueça também da serpente no paraíso.
Mas este é um conto de dragões. E de homens e de amor e de vida e de sabedoria, mas principalmente um conto sobre as virtudes de ser um tolo.
Dragões.
Kiibriderabrusaikali, também Kibriarko, também Nebru, era um dragão.
Era dos mais jovens, seu coração de chamas ainda sentindo o arrepio de desconhecer.
Entretanto, mesmo um jovem, Nebru ponderou em sua cela feita de morna escuridão sobre seus companheiros de raça e descobriu ou antecipou ou previu os dragões caminhando para um fim inglório, para a escuridão, sem outra saída senão a extinção.
— Vocês andam em círculos ao redor de suas caudas — dissera em sessão do Conselho Vermelho — e não consigo imaginar nada mais triste do que alguém que filosofe sobre o próprio excremento! — Completou em voz soturna.
Evidentemente, tal comportamento lhe custou o ostracismo.
Banido para os Gelos, lá habitou a caverna mais retirada, onde escavou com suas próprias garras um buraco gigantesco e dele fez seu ninho. Feito isto, deitou-se no fundo de seu novo covil, descansou a cabeça tranquilamente sobre sua cauda e esperou e esperou e esperou.
Os céus tomaram outra feição, com as estrelas assumindo novas configurações, e Nebru mudava vagarosamente uma coisa aqui e ali em sua caverna; ora vitrificando com chamas o interior do covil, ora acumulando tesouros e pergaminhos que o Povo, e mais tarde os Pequenos, traziam a seu convite e pedido (existem milhares de lendas sobre aqueles que negociavam com o dragão, com milhares de variantes diferentes quanto às formas de pagamento).
Cultivando dolorosamente seu abandono, permitia com demorado cálculo que uma parede ganhasse uma camada extra de pedra ou uma tapeçaria reluzisse ao toque delicado de sua magia de dragão e até se permitindo ser seduzido pela beleza de contemplar, fora de seu covil, a uns tantos invernos e primaveras para deles extrair sensações e conhecimentos, reforçando a estrutura de seu espírito com aquelas joias que brilhavam iridescentes, ainda em sua primeira inocência, pois que aqueles eram tempos de experiência.
Por outro lado, indiretamente mercadejava com antigos companheiros de raça e deles obtinha o livro mais improvável, o artefato mais desnecessário e subestimado.
No fim das contas, sem preconceitos, aceitava qualquer coisa que lhe trouxessem: objetos, paixões, filosofias, canções, profecias. A tudo impunha um preço e um ardiloso mercador ele era.
E assim procedendo, seu lar crescia e se abarrotava de coisas novas todos os dias e, como sua mente, era um palácio amplíssimo e receptivo ao que quer que fosse.
Por exemplo: em certa época fora apresentado pelo mensageiro de um poderoso suserano-dragão às formas recém-nascidas e excitantes do Bem e do Mal, sobre as quais ponderou em deliciosa expectativa, escrevendo ensaios que seriam devorados ávida e preocupadamente por seus irmãos.
Crescendo então em sabedoria e força, lá fora as geleiras indo e vindo em sua lenta existência, Nebru permaneceu deitado por eras inteiras no fundo de sua cova de cristal, recebendo a qualquer um que pagasse o preço de sangue por uma audiência sua.
Ditava a etiqueta que um presente qualquer deveria ser ofertado pelo visitante (o dragão decidindo sobre seu valor). Grandes recompensas poderia, em troca, ganhar o visitante de Nebru.
Ou insignificantes, dependendo de seu humor.
Quando não aceitava a dádiva do visitante, uma morte rápida lhe concedia, pois que era honrado o dragão.
— E assim você me vê agora, Gavião-na-Pedra — curvou-se em discreta mesura para o jovem homem de tribo ante seus pés e riu, um discreto e cortês rosnado abaritonado saindo-lhe da garganta.
“Com o que então, o dragão é um cavalheiro educado…”, pensou divertido Gavião-na-Pedra, esquecendo por momentos que estava tratando também com um leitor de mentes.
— Uma fera de princípios, quem sabe? — Novamente a voz e o sorriso de Nebru cascatearam caverna adentro, após o que abaixou a face reptiliana até alguns poucos metros acima de Gavião-na-Pedra. Uma face, até onde dava para perceber, risonha e irônica.
— De qualquer modo eu insisto em uma barganha. Sua vida e uma dádiva, por uma oferenda também sua! — Completou, e suas narinas se estreitaram e delas um bafio fedendo a enxofre começou a sair em abundância. Gavião-na-Pedra tossiu, a seguir afastando-se para distância mais prudente.
— Uma barganha? Desculpe-me Mestre Dragão, mas… barganhar com o quê? — Tornou Gavião-na-Pedra, um sorriso também em sua face jovem de dezenove anos.
E o braço envenenado escondido em sua túnica.
— Você veio a mim; — tornou o dragão — e quem vem a mim sempre deseja algo.
Gavião-na-Pedra brincou com a grande trança que lhe descia pela espádua.
— Uma história? Posso lhe contar uma história? Serviria como barganha?
E Nebru levantou-se, seu corpanzil sobressaindo um bom terço da cova onde estava, dois de seus dedos aproximando-se do jovem mago abaixo de si até que duas garras como cimitarras encostaram em sua garganta.
— É melhor que seja uma boa história, então… — e seu rosto e modos estavam sérios e solenes agora, acomodando-se e amoldando-se à cova, na postura do mais atento ouvinte.
Gavião-na-Pedra esperou que os sons da rocha contra a duríssima pele de dragão terminassem e então, e só então, consciente do quanto estava em jogo, começou a narrar.
I
Chamava-se Rada e era um ferreiro, o que entre as tribos equivalia a dizer que era um xamã, um pajé, um mago.
Era também coxo e quando andava balouçava como um navio na arrebentação. No entanto, quando lutava não coxeava, antes flutuava em pés ligeiros, volteando e golpeando com impressionante velocidade e precisão.
Era o que fazia neste momento.
A espada de Gavião-na-Pedra retiniu e vibrou, seus braços doendo até os ombros a cada vez que tentava aparar a um de seus golpes.
O mago ria, volteando com aparente despreocupação. Habilidade contra habilidade, o choque mútuo quase partindo as espadas d’O Povo meticulosamente trabalhadas que portavam.
Rada saltou por cima de sua cabeça e golpeou-lhe a nuca com o punho da arma.
A pintura negra em um dos olhos do jovem escorria junto com seu suor, as longas tranças sujas de lama e restos amassados de plantas.
“E a manhã mal começou…”, pensou.
Atento ao menor movimento de Rada, limpou o suor das mãos nas calças e na túnica de pele.
Uma longa cicatriz lhe descia da têmpora até ao lado da orelha esquerda, os cabelos terminando nas três tranças grossas, típicas de um aprendiz-de-sonho.
— Esta não é uma aula de esgrima, rapaz — o mago falou, — você está apreendendo a arte de um ferreiro! Um ferreiro mexe com brasas e se queima e é um idiota. Assim, você aprende a ser um idiota.
Nova surtida e novo golpe do punho da espada, desta vez na têmpora do guerreiro, e de repente Gavião-na-Pedra se viu dentro de uma poça de lama, Rada, com o sol acima de si, à sua frente.
— É de magia que falamos, pois não? Não aquela coisa antiga e venerável, cheia de murmúrios místicos d’o Povo. Nem falamos de arte de Povo Pequeno aqui — Rada apoiou-se no punho da espada e aproximou-se mancando de Gavião-na-Pedra —, do que falamos então?
Com a respiração entrecortada lançando vapores na manhã, Gavião-na-Pedra encarou cansado a seu mestre.
— Falamos de magia de homem, Rada-da-Sombra.
— Ah é? E qual a essência da magia humana, Gavião-na-Pedra-das-três-tranças?
Gavião-na-Pedra investiu contra o mago, golpeando em finta de baixo para cima e emendou o movimento em uma complexa sequência de defesa-ataque-contra-ataque que foi acompanhada pelo mago, movimento por movimento, como se a ponta de suas espadas estivessem grudadas
O pupilo afastou-se, postando-se na difícil defesa do gato. — A essência da magia humana é a mudança, senhor mago! — Disse, respirando fundo.
“E no que me toca, podem ir todos, você, a magia, meu pai… todos para o mesmo monte de merda!”, completou em pensamento.
— Tudo a seu tempo — riu Rada, entre cansado e orgulhoso. E então, galhofeiro:
— Já se perguntou por que Três-Facas-na-Pedra, seu pai e rei, me escolheu como seu mestre? Sabe por que um ferreiro coxo, um xamã? — E Rada arremeteu, desfazendo a postura de defesa de Gavião-na-Pedra com uma série de ataques, golpeando-lhe os terminais nervosos conforme a guarda era aberta.
Gavião-na-Pedra nem mesmo tentou se defender. Muito mais eficaz era chegar próximo às árvores ao largo da clareira, e correu para o meio da mata, um espaço apertado demais para que Rada saltasse ou lutasse daquela forma sobrenatural, em que o próprio Gavião-na-Pedra sem o perceber estava se tornando um perito.
Rada o seguiu e as espadas se encontraram novamente, desta vez na série de golpes curtos da esgrima-de-cavernas.
— Seu pai era um homem sábio, mas moderadamente sábio, nunca sábio demais.
O mago afastou-se por um momento e pareceu ouvir algo distante, cheirando o ar como um porco do mato. Riu e voltou novamente a face para Gavião-na-Pedra.
Gavião-na-Pedra também riu e quase carinhosamente deixou-se perder em lembranças.
Já se completavam cinco anos de exílio naquela terra, dormindo em qualquer buraco, saindo durante o dia para treinamentos de esgrima ou para executar qualquer tarefa absurda que o mago lhe transmitisse: escalar uma montanha pelo lado mais perigoso, por exemplo. Ou permanecer durante horas debaixo de uma cachoeira gelada, os dentes doendo de tanto baterem, a pele e as juntas insensíveis pelo frio. De outras vezes, Rada se ausentava por dias seguidos, voltando inesperadamente como se apenas minutos se tivessem passado, trazendo um punhado de ervas misteriosas nas mãos.
Então, eram noites e noites em transe, quando os seus medos vinham atormentá-lo, até que compreendesse que não entendia nada sobre o medo. Havia mais, muito mais que apenas a solidão. Ali o medo se esfacelava em miríades de pontos sem luz, deixando o grande vazio. E foi ali que conheceu seu nome-de-sonho, seu Nome de Poder.
Depois, era uma paz que não sabia que poderia existir. Uno com o universo, cada pedra lhe segredava maravilhas em suas rugosidades trabalhadas pela eternidade.
E todo o tempo, o perpétuo jogo de esconde-esconde com as patrulhas d’o Povo. Sua casa e sua terra cada vez mais distantes, estranhas e irrelevantes. Gavião-na-Pedra sempre aprendendo, até que Rada revelou-lhe que era inútil procurar reter tudo em sua memória, pois que tencionava ensinar-lhe a mais difícil de todas as artes: aprender a aprender.
E Aprendera. Aprendera que para aprender a aprender se fazia necessário desaprender, desligar-se da ambição de saber. Ser um tolo.
— Já acordou? Posso continuar? — Novamente enterrou a espada no chão e apoiou-se em seu punho. — De seu pai, de Três-Facas-na-Pedra eu falava, não? Pois então este pai, este rei, era tão moderadamente sábio que decidiu que seu filho mais novo deveria aprender esgrima com um ferreiro, e junto a isto a arte de ser um tolo. Você sabe, Gavião-Andarilho-do-Sonho — disse, pela primeira vez utilizando-se de seu Nome de Poder, aquele que, em tese, somente Gavião-na-Pedra deveria conhecer — que é preciso muita sabedoria e coragem para que alguém se torne um tolo. Um guerreiro não o conseguiria… nobreza demais, valentia demais.
Em seguida, atacou pela última vez, seus movimentos um borrão indistinto que Gavião-na-Pedra respondeu de forma também fluida, agora sem nenhuma consciência de que o fazia, meramente acompanhando o ritmo, cada defesa emendando-se em ataque e contra-ataque e defesa, de tal forma que até os últimos pensamento fugidios lhe saíram da mente e sua espada tornou-se a não-espada, sua defesa provida pelo mana projetado por suas mãos, mente contra mente e, em meio ao bailado, a magia que Gavião-na-Pedra nem sabia que existia em si veio à tona em um jorro rumoroso e denso e expandiu-se pela clareira e dali para a floresta, cada pedra e animal e árvore contribuindo para luta que, os dois sabiam, poderia durar toda uma eternidade sem que nenhum deles suasse uma gota.
Até que por fim o universo ponderou cada fato, pesando-os na balança que pendeu então para Gavião-na-Pedra numa chuva de faíscas metálicas através da guarda de Rada, arremessado contra um arbusto, espada e luta perdidas.
Foi aí é claro, que muitos d’o Povo chegaram, com os problemas de verdade chegando junto também.
II
Foi vagarosamente retornando, e mesmo assim consciente de cada aspecto da realidade a seu redor, que Gavião-na-Pedra-na-Pedra tomou conhecimento dos cavaleiros à sua volta, adentrando a floresta vindos da clareira, homens e mulheres de orelhas pontiagudas, trajados com cotas de malhas metálicas, por baixo sobressaindo o tecido verde-terra macio de túnicas e botas leves.Todos com espadas à cinta, todos com arcos e aljavas às costas, homens e mulheres. E todos eles d’o Povo.
O mais velho, a face severa, adiantou-se e examinou com desdém aos lutadores.
“O Povo-do-Verde, encrenca verde,” pensou Gavião-na-Pedra, não sem o sentimento de galhofa que sempre acompanhava cada homem de tribo ao se ver em uma situação de perigo.
— Encrenca verde, sem dúvida — sussurrou Rada, sorrindo a seu lado.
O membro mais velho d’o Povo aproximou-se, seu cavalo ricamente ajaezado pateando nervosamente.
— O que temos aqui? — o líder perguntou. — Homens de tribo, ladrões? O que querem estes homens? Pensam talvez em pilhar uma aldeia d’o Povo? Talvez mais destas espadas que têm em mãos?
— Corra! — Disse repentinamente Rada, que correu floresta adentro com um Gavião-na-Pedra apressado em seu encalço, os d’o Povo surpresos e, depois, galopantes mais atrás.
E assim foram, desviando de árvores e rochas e arbustos e saltando riachos, até saírem novamente a campo aberto em uma área de vegetação baixa, onde os d’o povo barraram-lhes o caminho. Rada e Gavião-na-Pedra cercados, com uma bela moça de cabelos negros e vivos olhos azuis-esverdeados chegando em surtida e derrubando Gavião-na-Pedra com um chute no rosto.
Rada nem mesmo tentou correr de novo, antes achegou-se a Gavião-na-Pedra e o levantou, o perene e largo sorriso na face.
Gavião-na-Pedra se recompôs.
— Você planejou tudo isto, não? Durante a luta, você os ouviu chegando. — E Gavião-na-Pedra ria.
“E também escolheu o lugar para a luta desta manhã, chamando o máximo de atenção para uma das patrulhas d’o Povo,” pensou, aprumando a espada, considerando-o adequado e apropriado para o fim de seu treinamento.
Pois agora era o fim e ele sabia, sentindo uma vaga dor chegar-lhe ao coração. Nesta manhã, que lhe parecera antes tão comum, fora ungido. Era agora… o quê? Um guerreiro, talvez. Gavião-na-Pedra, talvez um mago, senhor da parte do mundo que continha as enormes reservas do mana que somente um ferreiro, um mago por excelência, podia invocar para provocar o universo.
Não havia palavras ali. Somente e impropriamente, magia.
Rada riu.
— Hoje me parece um bom dia para tolices…
E, de costas para Gavião-na-Pedra, aguardou gargalhante o ataque simultâneo de três cavaleiros.
O primeiro foi derrubado de sua montaria, a parte chata da espada do mago coxo contundindo e lascando sua cota de malha num gesto relampejante, e, já saltando de modo impossível, chutou o rosto de outro que também se esboroou ao solo. O terceiro, porém, refreou seu cavalo à frente de um Rada zombeteiro.
Uma flecha foi ajustada em seu arco e antes que o líder d’ Povo pudesse detê-lo com um comando, voou em direção ao mago e Rada nem mesmo piscou, antes caiu para o lado e num movimento indistinto a seta estava em sua mão livre. Após o que meramente soltou-a e levou a mão para o alto.
— Huum… — Foi só o que disse. E mais uma vez, sorriu.
Seus dedos da mão direita então incandesceram, uma palavra foi sussurrada em sua boca e uma bola de fogo azul saltou-lhe dos dedos atingindo o homem d’o Povo e seu cavalo, os dois caindo em confusão na terra esponjosa.
A mulher d’o Povo que derrubara Gavião-na-Pedra arremeteu contra o jovem, a espada segura em ambas as mãos, acima da cabeça.
Mas já então não se tratava mais de Gavião-na-Pedra, este morrera minutos antes durante a luta com Rada, como um casulo deixado por uma borboleta.
Era já Gavião-da-sombra, Gavião-andarilho-do-sonho. Aquele que simplesmente esqueceu da luta, do mundo a seu redor e sentiu o outro tomar conta de si, o mana escorrendo entre seus dedos.
Alheio a tudo, em transe, meramente sopesou o universo e sua extensão em torno da mulher e lá, onde ela estava desequilibrada, lá, onde apesar de toda a sua habilidade da gente d’o Povo, ela tendia a pender, ele assestou sua espada e esperou.
Para os olhos dos que o circundavam, pareceu que a espada de Gavião-na-Pedra brilhou e quase carinhosamente encaixou-se à perfeição com a espada da mulher, fendendo-a em chamas azuis e partindo-a, projetando-a do cavalo e caindo como um peso morto ao chão.
— Minha Filha! Vejam se Mirto está bem! — Comandou o líder e acercou-se de Rada e Gavião-na-Pedra.
Alguns cavaleiros, homens e mulheres, desmontaram e examinaram a desfalecida, após o que um deles dirigiu-se ao líder.
— Sua Filha está bem, Branco, apenas atordoada.
Calmamente, Rada se virou para Gavião-na-Pedra, a face séria na qual um leve sorriso de orgulho teimava em aparecer.
— Esta me parece uma boa hora para um gesto grandioso e idiota, Gavião-andarilho-do-sonho — disse, chamando-o pela segunda vez por um dos muitos nomes pelo qual seria conhecido daí por diante. — Deixo você com muitos problemas. Saiba aumentá-los ainda mais!
Isto dito, correu como raio em direção a um dos cavaleiros ainda montados e arrojou-o de sua montaria sem dificuldade, a dominando e segredando-lhe algo nas orelhas: seu novo nome.
Foi aí que o animal, atendendo ao chamado, encetou um galope faiscante, irreal, embrenhando-se na floresta antes que os surpresos membros d’o Povo pudessem detê-lo, com um Rada gargalhando loucamente em cima de seu dorso — A mudança… — Gritava — A magia humana é feita de mudança… um sonho dentro de um sonho.
Os d’o Povo novamente montados, inclusive a moça ainda segurando sua espada quebrada, aproximaram-se de Gavião-na-Pedra. Todos, exceto ela e seu pai, com flechas encaixadas nos arcos.
Agora que estava cercado, Gavião-na-Pedra relaxou, dedicando sua atenção à jovem, “Mirto, não é?” Sobrancelhas arqueadas e finas, esbelta, orelhas levemente pontiagudas. Cabelos negros de azeviche apanhados em um adereço de prata.
À frente, Branco encarou ofegante ao jovem desgrenhado.
— Posso supor que se eximirá de atitudes tolas?
— Quer me parecer que a tolice não é propriedade exclusiva de homens, senhor d’o Povo. Mas tem razão, eu sou mesmo um tolo, mas ainda não um grande tolo. Posso esperar aprender com vocês a me tornar melhor? — Gavião-na-Pedra fez uma mesura, risonho.
— Espere para ver se conseguirá aprender com o Povo Verde das árvores, senhor homem de tribo! Espere para ver se conseguirá mesmo sorrir. — A garota d’o Povo encarou Gavião-na-Pedra, rancorosa.
—Vamos todos esperar — e Branco olhou pensativamente para Gavião-na-Pedra — e vamos ser cautelosos, também. Amarrem este homem! Ele virá conosco como prisioneiro. Você — e apontou para Mirto — será a responsável por ele, amarre-o a sua cela.
Voltou-se novamente para Gavião-na-Pedra:
— A propósito… — Disse. — Seu nome?
— Gavião-na-Pedra-das-Três-Tranças, o-tolo-que-anda, à sua escolha, ó pai d’o Povo Verde — e o jovem riu cansado, enquanto um homem e uma mulher amarravam-lhe os punhos.
Branco limitou-se a dar a volta em seu cavalo, seguido pelos outros em fila, com Mirto ao fim arrastando o jovem com as mãos atadas esforçando-se para acompanhar-lhes a marcha.
E então foi-se o dia de hoje, meu coração. Deixado para trás, a tolice e a pequena loucura em meu coração para que frutifiquem. Sentiu uma estranha saudade de sua terra natal, pois alguma coisa lhe dizia que longos anos se passariam antes que a visse novamente.
Sentiu um tranco, quando Mirto acelerou o passo do cavalo, rindo maliciosa.
— Apenas ande, senhor homem de tribo, apenas ande, não devaneie. Ande!
Senhor Pai-do-mundo, e Gavião-na-Pedra sentiu-se feliz sem saber por quê, uma emoção estranha se apossando de seu coração. Ela tem os mais lindos cabelos negros que eu já vi.
E a caravana prosseguiu.
III
Anos se passaram e Gavião-na-Pedra ainda pensava na temporada na Cidade das Árvores como uma das épocas mais estranhas e fecundas de sua vida, como um sonho contínuo, destes nos quais nos lamentamos ao despertar e saímos felizes para um novo dia.
Fora inicialmente trancafiado em uma cela, de pedra por fora mas decorada, como toda construção d’o Povo, com placas de madeira. A diferença ali era que a madeira fora sobreposta por uma rede metálica com signos que, Gavião-na-Pedra suspeitava, existiam para impedir a fuga de qualquer ocupante do lugar.
Tentara diversas vezes evadir, sempre malogrando. Estranhamente, não conseguia também partir para nenhuma daquelas viagens interiores que o faziam retornar tão descansado e equilibrado ao mundo da vigília.
Tais viagens, Rada lhe ensinara sem ensinar, permitiam chamar a si o mana, a energia que mantinha a vida, e com ela influenciar o universo.
Entretanto, durante sua prisão o Universo lhe permanecia mudo e nenhuma saída lhe fora apresentada.
Vigiado perpetuamente por uma guarda que nunca dormia, ali ficara por semanas, sendo-lhe fornecida sempre boa refeição, livros e ocasionalmente a visita de um d’o Povo, Carqueja, que lhe fazia diversas perguntas, parecendo pouco se importar com as respostas que dava. Essa rotina continuava e continuava até que por fim lhe colocaram um estranho colar, com uma gema de cor azul no fecho e lhe permitiram que saísse para o meio exterior.
E nunca, malgrado o desejasse, vira a jovem d’o Povo de olhos verde-azulados que o capturara. Mirto.
Começou então um período cansativo em que fora tratado como nada mais que um serviçal, realizando toda uma série de tarefas tediosas, sob a supervisão de crianças ou moças ou rapazes, que consistiam em varrer e lavar pátios imensos, consertar rebocos desmoronados e substituir o forro de aposentos diversos que eram decorados por artistas locais à medida que os colocava.
Quando recusava-se a trabalhar, sentia tonturas e náuseas terríveis, produzidas, ele acreditava, pela coleira que levava ao pescoço. Os d’O Povo então esperavam pacientemente, um riso de desdém na face, que se levantasse tropegamente e partisse para executar a tarefa que lhe fora determinada, quando então o terrível mal-estar começava lentamente, muito lentamente, a deixar o seu corpo.
Foi também a época em que pôde se maravilhar com a beleza celestial da cidade, um sonho dentro de um sonho, com palácios esmeralda que pareciam nascer das árvores, confundindo-se com elas.
Como em seu período na prisão, não conseguia fugir. Cada vez que enganava seus jovens supervisores e tentava se afastar dos domínios dos D’O Povo, aquela náusea retornava, aumentando à medida que se afastava. Entretanto, jamais deixou de fazê-lo, e a cada dois dias partia para uma nova e frustrada tentativa.
Seus captores sempre o esperavam próximo à entrada da floresta, quando deixavam que descansasse, dispensando-o de trabalhar até que se recuperasse. De outras vezes, tinham que se embrenhar na mata e trazê-lo inconsciente até a cidade.
Carqueja entre eles.
— Me pergunto se já considerou que suas atitudes infantis poderão lhe custar a sua vida, — dissera Carqueja, indicado como seu guardião — se é que a vida importa a vocês, homens.
— Uma vida, duas vidas, três vidas… — respondeu zombeteiro, citando uma das frases preferidas de Rada.
Numa das ocasiões em que quase morrera, Branco, o Líder, visitou-o em seu quarto iluminado pelo sol da tarde, onde convalescia. Manteve-se em pé à sua frente, fitando-o.
— Suponho que já tenha percebido que o colar que carrega em torno do pescoço o impede que se afaste de nossos domínios… ou que desobedeça nossas ordens — dissera-lhe. Depois de curta consideração, emendara — isso não significa, espero que perceba, que seja meu desejo vê-lo morrer, ou pelo menos, não desta maneira. — E se retirou sem mais uma palavra.
E passou-se um dia e outro dia e depois outro.
E Gavião-na-Pedra ponderou.
Ele não era um tolo qualquer. Gostava mesmo de se de acreditar um tolo especial. As fugas e negaças que executava serviram para que estudasse o colar, seu poder, efeitos, e finalmente, seu alcance.
E se era louco era só o suficiente para ser um mago. Cada vez que fugia aprendia mais e mais sobre o colar, o que provou-se depois depois ser interessante, mas inútil.
Até que caiu em si e começou metodicamente a desaprender, esquecendo o colar, a fuga, os d’O Povo e sua cidade, vagarosamente retornando com cuidado ao comportamento despreocupado e acintoso de um idiota, e foi recompensado, é claro, sem se dar conta, com o retorno às habilidades que julgara perdidas desde que fora feito prisioneiro.
Na noite após a tarde em que Branco fora a seu quarto, teve sua primeira caminhada-de-sonho em meses e acordou já quase de manhã junto à orla da floresta perto do lago oriental. Para sua surpresa, descobriu que não sentia mais os efeitos do colar, sentindo-se muito bem à luz das últimas estrelas. Serenamente, dirigiu-se à cidade.
Caminhava já há meia hora, ainda no semitranse do sonho, quando divisou um vulto junto à fonte que alimentava o lago oriental. Impreciso no começo, o vulto foi solidificando-se conforme se aproximava e finalmente tomou a forma de Mirto, a filha de Branco, sonhando, sentada na relva com a face voltada para o sol que iria nascer dali a pouco.
Tomado de uma felicidade sem propósito, sentou-se a sua frente e esperou, embebendo-se em sua figura, esperando pacientemente que ela acordasse. Observou-lhe o talhe esguio com prazer, as roupas leves sobressaindo de seu capote escuro, o cabelo preso por uma tiara de prata, um bracelete do mesmo metal em seu pulso, até que sentiu o calor do sol em suas costas e ela acordou.
— E então, o que ocorreu? — Nebru sustentava pensativo uma garra contra as narinas.
— Nada de muito especial, eu acho… — disse, olhando pensativo para a claridade que emanava de cristais de fósforo nas paredes.
“Na verdade, nada mesmo.” Pensou. “Eu somente a olhei, o sol resplandecendo em seu rosto enquanto ela acordava de seu transe, naquele momento nada mais importando senão estar ali, maravilhando-me pela coisa única que era sua existência.”
— Entendo… —, disse o dragão, e pareceu ponderar, soltando-se sobre a parede de rocha de seu covil.
“Então ela abriu seus olhos e seu rosto era uma mistura de raiva, estupefação e algo indefinível que fez seus olhos ficarem nublados.”
— Espero que não vá gastar toda a manhã me olhando com esta expressão patética, homem-de-tribo.
— Gavião-na-Pedra.
— Perdão?
— Eu, o dono da expressão patética. Gavião-na-Pedra. Não homem-de-tribo, Gavião-na-Pedra.
— Está me pedindo a graça de o reconhecer por um nome? — E seu riso encheu a manhã.”
— Gostaria de conhecer à jovem. — Nebru batia ritmicamente duas garras contra seus lábios, devaneante. — Eu sempre acreditei que os d´O Povo fossem um tanto pedantes. Talvez tenha me enganado?
Mirou novamente a Gavião-na-Pedra.
— E depois?
— Bem, depois ouvi, distante, o som de homens em marcha, no qual pensei adivinhar Carqueja à frente de uma patrulha.
— Eu estava enganado, é claro .
IV
Cavaleiros entraram floresta adentro, mal dando tempo a Gavião-na-Pedra para que se levantasse. Uma borduna assestada por um dos ginetes acertou-lhe o ombro, e todo o lugar tornou-se uma confusão de montarias. Sua cabeça, pernas e barriga foram golpeadas em sucessão e, enquanto desmaiava, pôde ouvir os gritos aflitos de Mirto.
Um homem calvo e sardento usando um colar de ossos foi a primeira coisa que viu ao despertar. Ao seu lado, uma infantaria de criaturas de pele vermelhiça, com garras e presas negras, confundiam-se em meio a outros tantos homens de cabelos longos besuntados de gordura animal, todos portando espadas curtas e armaduras tauxiadas com pontas de metal. Na área central da formação, uma das criaturas, a cavalo, vestindo uma capa rota e desmesurada, segurava uma lanterna, toda ela feita de cornos de animais diversos.
Papões e vassalos de Papões
O mago em Gavião-na-Pedra prontamente percebeu que a lanterna era um sortilégio para esconder a tropa de Papões e homens-de-papões aos olhos vigilantes das patrulhas dO Povo. Sua atenção voltou-se então para o homem à sua frente.
Este olhou-o demoradamente, esbofeteando-o com uma gargalhada. E outra gargalhada, desta vez a poucos metros dali.
— É uma d’o Povo, é sim senhor, do Povo Verde, Capez — outro homem, calvo, falava para um Papão atarracado.
O Papão parecia ponderar, fitando Mirto, jogada entre terra e ervas amassadas.
— Ela fica em paz, eu digo. Temos ordens severas, encontrar e trazer um d’O Povo! Mas um, ou uma d’O Povo inteira… — completou com uma gargalhada. — Algum de vocês ousa desafiar os poderes? — E olhou com desdém para uma plateia silenciosa e amedrontada. — Você aí… — disse ao vassalo humano que falara, — leve-a para junto daquele ali — e apontou para Gavião-na-Pedra.
— E este aí é o que, Capez? D’o Povo ou homem? — perguntou o homem calvo, sombrio.
Gavião-na-Pedra segurou Mirto contra si, ao mesmo tempo conjurando o mana do local, consciente que a patrulha comandada por Carqueja, a uma centena de passos dali não os veria enquanto a lanterna de chifres lançasse seu véu de ocultamento sobre a tropa que o circundava. Sentiu Mirto apertar-se contra seu peito, quando Capez se aproximou curioso, a milímetros de sua face.
— Pois é, homem de tranças, você é o quê? — E Capez apontou uma adaga para os olhos de Gavião-na-Pedra. Este viu e não viu o gesto, estava ocupado demais deixando o mana dos arredores se organizar em um complexo desenho de poder em torno de si. As palavras de poder foram sussurradas na sequência correta, até que lhe chegou aquela certeza sólida que todo ferreiro-mago precisava para alterar a realidade.
Papões e vassalos passaram a se mover com infinito vagar, enquanto Gavião-na-Pedra os observava, os sons ao redor tornados cavos e monocórdios. Tomou facilmente a espada d’O Povo da cintura de Capez e com ela o golpeou em lentíssima e sangrenta explosão de artérias em sua garganta.
A seguir arrastou Mirto consigo, sua face começando um trejeito de espanto que só se completaria dali a muitas batidas de coração. Capez ainda estava ainda em pé, sua garganta inchando em uma pasta rubra e viscosa, e Gavião-na-Pedra continuava, sua mão esquerda livre voando ao redor, partindo um pescoço aqui, esmagando uma laringe mais adiante. Mirto pesava como pedra em seus braços, presa quase no mesmo tempo da tropa de Capez, para a qual Gavião-na-Pedra devia assemelhar-se a uma mancha em movimento, matando e mutilando conforme aproximava-se do Papão com a lanterna.
Este pressentiu mais do que viu sua chegada, chegando mesmo a completar um quarto de giro no pescoço que terminou num ângulo não natural depois de quebrado pela mão em gancho de Gavião-na-Pedra.
Os dedos esticados, murmurou uma sequência de monossílabos, o mana projetando-se de suas mãos, e a lanterna de chifres explodiu em chamas vagarosas . A seguir, esgotado, deixou que o tempo o alcançasse.
Nesse momento ouviu o baque surdo do corpo de Capez contra o solo.
O mundo retornou como uma avalanche de som e fúria, com um Papão saltando e ferrando os dentes em seu braço direito, a incandescência da dor fazendo com que largasse a espada na outra mão e impedindo mesmo que gritasse. Enquanto tentava assestar um golpe, uma trilha de prata decepou a cabeça do Papão e um par de mãos fortes e macias o levantou e empurrou em direção da montaria do Papão da lanterna.
— Você está bem? — perguntou Mirto, já montada e puxando-o para a garupa, cavalgando com estrépito em meio à tropa negra, ainda segurando a espada suja do sangue do Papão que o mordera.
A cavalgada pareceria depois a Gavião-na-Pedra uma jornada confusa de sons, cheiros e toques por entre a floresta. Ao final, saiu da inconsciência em uma clareira, vendo-se nos braços de uma preocupada Mirto, seu corpo febril e seu braço latejando, azulado e coriáceo até o cotovelo, a dor indescritível.
Carqueja o examinava do alto de um cavalo.
— Tome da espada e corte-lhe o braço, antes que o veneno tome conta do resto, se é que já não o fez. — Disse a Mirto. A seguir afastou-se em disparada, seguido pelos homens e mulheres da patrulha que comandava.
— Carqueja… onde ele vai? — Perguntou, levantando-se com dificuldade.
— Você destruiu a lanterna e ele nos encontrou. — E Mirto abraçou-o, amparando até onde podia o gigantismo de seu porte. — Pode me dizer como fez aquilo? Você parecia um raio em movimento…
— O quê?…
— Carqueja tem razão, o veneno se espalha… — Mirto apalpou o antebraço já negro e malcheiroso.
— Eu gosto deste braço…
— Você foi mordido por um Papão. Não existe como deter o avanço do veneno de Papão! — e seus olhos azuis-esverdeados brilharam, a face congestionada. — Por favor… — Ela sacou a espada da bainha. — Eu prefiro parte de um homem-de-tribo, a um homem-de-tribo morto.
Gavião-na-Pedra riu e olhou para o braço contaminado, determinando com a vontade férrea que lhe fora ensinada por Rada que o veneno não ultrapassasse o cotovelo e se mantivesse inerte. E então, de pé, com a mão sadia na posição da faca-e-pedra atrás da cabeça, os olhos fechados, observou a realidade se contorcer, modificando-se e gemendo para assumir novas formas. E a dor cessou em seu braço.
— Eu gosto deste braço! — Repetiu com ênfase a Mirto, — e vou mantê-lo assim! Em algum lugar haverá uma cura.
— Você é o tolo mais tolo que eu já pude ver! E eu já vi muitos tolos! — Irritada, Mirto esmurrou-lhe o peito. Gavião-na-Pedra afastou-se e cambaleou.
Sorrindo, deu meia-volta e montou no cavalo em que haviam escapado. Com a mão sadia arrancou o colar com a gema que carregava no pescoço e o entregou a Mirto.
Tomado de estranho pudor, escondeu o braço ferido entre as dobras de seu manto e começou a se afastar, ao que Mirto tomou a frente e entregou-lhe a espada que trazia consigo, olhando-o com uma intensidade que lembrava a Gavião-na-Pedra os piores momentos de Rada.
— Existe um lugar em que talvez haja uma cura… — Disse, ofegante. — Se conseguir chegar, se sair vivo de lá. Procure Nebru, o dragão.
— E então você veio a mim. — O dragão terminou solícito, o riso cortês em sua garganta.
— Assim foi. — Respondeu Gavião-na-Pedra, tirando a mão enferma das dobras de seu manto. — Acredita que esta história vale a cura para este braço?
— Em nenhum momento eu disse que teria objeto a altura para a barganha. — O dragão contrapôs. — Admito que apreciei sua história… e gostaria mesmo de ter agora, em mãos, uma tisana que o curasse de pronto, mas não tenho. É veneno negro de Papão o que tem aí em suas veias.
Gavião-na-Pedra recolheu mais uma vez o braço enfermo.
— Entretanto… — E o dragão aproximou uma garra junto à face de Gavião-na-Pedra — Pela grande dádiva que me fez, posso lhe pagar contando-lhe o que já sabe. Este conhecimento de tolo, a um preço, pode trazer seu braço de volta.
A garra do indicador direito de Nebru encostou-se na testa de Gavião-na-Pedra, envolvendo sua mente em chamas e escuridão. Uma voz cheia e redonda sussurrou-lhe, como se a um amante se dirigisse.
— Sabe, nunca tive chance de experimentar em ninguém. Não nego que estou curioso, ansioso mesmo pela experiência, mas… sem garantias, entende?
— Nunca esperei que houvesse uma. — E Gavião-na-Pedra tirou novamente mão e antebraço coriáceos de dentro da túnica. — Nunca há garantias quando se fala em magia, há?
O dragão levantou a mão esquerda, armando as asas rubras até o teto da caverna, enchendo-a com sílabas arcanas.
— Já teve um filho, Gavião-na-Pedra, filho dos homens? Digo, um filho que você mesmo parisse? Não? Então aproveite esta oportunidade e não me julgue mal. — E uma garra tocou no crânio do jovem, sua passagem sentida como faca incandescente.
Gavião-na-Pedra caiu ao chão com a dor mais terrível que já conhecera crescendo a partir de seu estômago e subindo para o peito em chamas. O dragão, solene, continuava a soprar com sua voz precisa estranhos mantras em língua secreta, tão antiga que precedera à Terra, as palavras penetrando em seu espírito, sendo e não sendo entendidas, pois havia magia ancestral ali, inacessível a qualquer um que nascesse de mulher.
E era uma coisa única esta magia, na verdade a joia mais rara da coleção do dragão. E a dor no peito, num crescendo de agonia que qualquer um julgaria impossível, foi-se transformando numa bola de bílis negro-azulada que afinal tomou todo o espaço de sua boca, destroçando-lhe as articulações da mandíbula. E Gavião-na-Pedra soube que iria morrer.
Mal pensara nisto quando vomitou um globo placentário gelatinoso no chão rugoso da caverna, a dor novamente em crescendo, com a pasta orgânica se acumulando febril no solo.
Vomitou ainda por diversas vezes. E seguiu de dor para dor, de uma gradação para outra que nunca pareciam alcançar um platô de estabilidade, sempre aumentando em sinfonia atroz e delirante.
Percebeu então que sua mente acompanhava a gosma que se avolumava a seus pés, esquecendo-se de tudo à medida que exsudava mais e mais de si, sua vida toda em retrocesso.
Até que por fim se tornou um pedaço de homem, um cadáver ainda vivo com a mente de um bebê e, sentindo o pânico peculiar ao nascimento, despejou uma última golfada e morreu.
V
— Gavião-na-Pedra, Gavião-Andarilho-do-Sonho, filho de homem, comparsa de magia… — O dragão observava irônico ao pequeno mago humano que vestia as roupas que lhe ofertara. Ao lado, um monte de matéria orgânica que sobrara do que antes fora um homem, se decompunha em cinzas silentes e melancólicas.
Gavião-na-Pedra afivelou um cinto, olhando pensativo para os restos do que fora, intrigado se renascera ou se era um outro que se vestia aos raios do poente que penetravam caverna adentro. A magia de Nebru, uma coisa tão terrível que doía somente de pensar nela, era, em parte, sua agora. O… parto… trouxera como consequência a lembrança perpétua do que se passara. Olhou com espanto, talvez pela décima vez naquela hora, para seu corpo renovado, os menores sinais e cicatrizes haviam sumido. O braço envenenado estava são.
“Mas a que preço?”, pensou, ainda em choque.
— O mesmo preço que se paga para viver, Gavião-na-Pedra-aprendiz-de-tolo. — Nebru olhou para os últimos raios de sol que deixavam a caverna, a garra novamente tocando a narina, pensativo.
— Uma magia, duas magias, três magias… também não era assim que seu mestre Rada falava? — Disse olhando quase com carinho para o jovem e a seguir pôs-se de pé, tanto quanto podia fazê-lo um dragão, e rugiu, chamas saindo copiosas contra a rocha.
Abaixou-se novamente, para chegar ao nível de Gavião-na-Pedra.
— Adeus, ó mais jovem dos magos, saiba que realmente apreciei a dádiva de seu relato. — E aproximando-se ainda mais, o enxofre de seu bafo cuidadosamente contido.
— Agora, um aviso, se quiser considerá-lo assim: cuidado com as perguntas que se fizer, jovem irmão. Você é você? É uma réplica? Está se desfazendo no chão ao lado ou guardando uma espada na bainha em pé a minha frente? Cuidado…as perguntas podem ser tão traiçoeiras quanto as palavras que as formam. Agora vá.
E Gavião-na-Pedra, Andarilho-do-Sonho, deixou a caverna de Nebru, caminhando soturno para a noite.
Brilhante! Adorei seu texto, inspirador e divertidíssimo. Haviam trechos em que eu imaginava muito a estoria em formato de hq haha. Em fim, achei o nome dos personagens cativante e as reflexões e filosofias do universo intrigantes, bom, eu poderia elogiar outros aspectos do texto, mas, não quero me prolongar. Parabéns e abraços!!!
Você escreveu em julho do ano passado e já lá se vão…sete meses? Por aí. Só agora acessei e vi. Obrigado pela gentileza e pelo trabalho de ler. Obrigado.