Não falhem agora, pediu o velho para suas pernas enquanto andava pela calçada. Os carros passavam na rua em velocidade impressionante, muito mais rápidos do que seria possível na sua época. Há anos não dirigia, tentando distanciar-se o máximo de seu passado, das intermináveis horas que passou no trânsito.
Ele andava depressa, e percebeu tarde demais a calçada acidentada ceder sobre seus pés, fazendo-o tropeçar. Precisou se equilibrar com os braços para não cair de boca no asfalto.
Que jeito idiota de morrer, pensou, vendo os carros passarem zunindo. Ficou parado por um tempo, tentando se recompor do susto. Seu antigo chefe bem lhe dizia que ele estava virando um velho debilitado e teimoso, sofrendo com qualquer coisinha fora de planejamento. Mas quem era o chefe para dizer qualquer coisa? Não tinha que justificar-se à mais ninguém, finalmente conquistara o direito de abandonar o emprego. Precisava dar um jeito naquelas pernas, sim, seus sentidos já não reagiam bem a situações inesperadas, um tropeço besta não deveria deixá-lo tão exaltado. Mas isso não era mais problema do seu chefe. Agora era ele próprio quem ditava o rumo da própria vida.
O fluxo de carros diminuiu na avenida e ele decidiu arriscar a travessia. Dois carros se aproximavam à distância, velozes. Calculou a distância com seu raciocínio lento e colocou-se a andar.
Assistiu aos carros encurtarem a distância com certo pavor, e, quando ainda estava no meio da rua, percebeu como sua noção de espaço e tempo estavam enferrujadas. Precisou dar um pique final desesperado para chegar à calçada inteiro, sem ser cruelmente atropelado pelos automóveis.
Pessoas, cada vez mais egoístas. Na sua época teriam diminuído a velocidade, dariam preferência ao pedestre. Agora todos agiam como se seus compromissos fossem mais importantes que os dele. Como se sua existência tivesse perdido relevância para a sociedade no dia em que se aposentou.
Mas estava vivo e bem, então passou a procurar o número correto de seu destino. Deveria ser naquela rua, ou numa travessa dela. Ou numa travessa da travessa. Verificou o endereço antes de sair, mas já não lembrava mais. Além de dar um jeito nessas pernas, preciso ver se arranjo alguma coisa pra memória. Estava realmente sentindo o peso da idade nos últimos dias.
Olhou para o prédio próximo, uma estrutura cinzenta de blocos estruturais, número cento e vinte. Precisava chegar no mil e quatrocentos. A caminhada seria longa e o cansaço inevitável. Era um dia quente, que não lhe fazia suar, mas esquentava todas as partes de seu corpo como se colocadas num forno. Podia medir a temperatura ao tocar a testa. O calor tornava ainda mais evidente o cheiro de podridão do rio canalizado que seguia abaixo da avenida.
Uma mulher passou por ele, uma das poucas pessoas a andar naquela avenida industrial, onde apenas carros transitavam em seu fluxo incessante. Os intermináveis muros pichados que margeavam a calçada estreita e suja não atraíam muitos pedestres. Ao passar, ela lhe reservou um olhar particularmente desgostoso, censurando sua presença. Talvez estivesse pensando que, pela idade, ele não deveria ficar andando por aí sozinho. Que não era seguro.
Que pensasse. Ele não se importava. Tinha noventa e sete anos, mas não era por isso que deixaria de aproveitar sua liberdade.
Quando ela chegar na minha idade vai entender porque prefiro andar com essas pernas velhas à me dar por vencido.
Mas não iria, não ela. No fundo, ele sabia. Uma mulher não lhe entenderia, seu mundo era muito diferente.
Nada se manteve igual ao passado. O mundo lhe parecia mais objetivo, muito mais mecânico que na sua época. Talvez por isso sua geração fosse menos individualista do que essa nova geração lhe parecia ser. Por isso dariam preferência ao pedestre no passado.
Inspeções automáticas, carros que dirigem sozinhos, turbinas de vôo individuais, trajes de controle de temperatura. Não estava acostumado com nada disso, e ninguém se preocupava mais em lhe explicar as novidades agora que ele não faria nada com a informação além de saciar a curiosidade. Não viam utilidade em dizer a um velho aposentado (para não dizer descontinuado, termo que algumas pessoas tanto gostavam de usar) como o mundo moderno funcionava. Tampouco ele se importava em manter-se informado, nem os outros velhos que moravam no seu prédio. Discutiam sobre o passado e especulavam sobre o futuro, mas nunca iam longe demais. Para eles, já passara o tempo de se importar.
Só quero melhorar essas minhas velhas pernas, pensou, caminhando lentamente. Ainda estava no número trezentos e quinze.
Engraçado a existência se tornar tão irritante quando chega a idade. Você para e olha em volta, e quando menos espera tudo mudou. Você ficou para trás. Sua função não existe mais, suas habilidades já não mais importam. O mundo está diferente e você continua o mesmo, não resta mais espaço para você. Agora o processamento de algoritimos euclidianos gerados pelo sistema de controle de temperatura nacional é feito por uma máquina que também alimenta estes dados na equação que determina a quantidade de débitos de carbono virtual necessários para o mês e equaliza a matriz de dependência de oxigênio importado, além de fazer café fresco a cada duas horas, e então você é chamado para se aposentar e dar espaço à “nova geração”.
A verdade é que o velho já estava de saco cheio de tudo. Algoritmos, dados complexos, correlações. Não via a hora de pegar suas coisas e mudar para uma cabana na floresta, ou qualquer lugar isolado do mundo. Um lugar onde, além de dar satisfações apenas à si mesmo, estivesse bem longe de tudo que lhe prendeu e limitou durante anos.
Queria pintar quadros como aqueles que enfeitavam seu antigo escritório. Quadros que o inspiraram a procurar uma paisagem mais inspiradora do que um cubículo cinza e sem graça para passar as horas. Precisou solicitar formalmente à diretoria para que o deixassem pendurar os quadros. Foi o primeiro na empresa a solicitar algo do tipo, e fez escola quando outros colegas acataram a moda. De acordo com o Código de Conduta, quadros não faziam parte do modelo ideal de escritório, desestabilizando o ambiente. Só a nova geração, preocupada com o tal plano de carreira, de fato concordavam com este código. Foram meses até conseguir permissão para deixá-los onde queria. Realmente, quadros não combinavam com o escritório. Nada criativo e libertador combinaria com aquele lugar. Mas, para o velho, funcionavam como um escape artificial à rotina. Agora ele mantinha os quadros em seu quarto, que também não era o lugar ideal. Outro motivo para abandonar a cidade.
O dia em que pediu a solicitação para pendurar os quadros deve ter sido na mesma época que lhe convidaram para conversar sobre a aposentadoria. Foi então que apresentaram o plano de auxílio ao financiamento do apartamento onde ele vivia agora, um prédio onde apenas ex-funcionários moravam. Só a velha guarda, os descontinuados. Por mais que gostasse do pessoal, eles também eram mais um motivo para deixar tudo para trás.
Imaginava-se ativo, agitado, construindo uma morada em algum lugar distante. Na sua idade era importante não ficar parado. Ficando parado, problemas surgem. Pernas fracas, mente lenta.
Podia escolher uma cidade litorânea pequena, viver numa casinha simples. O som do mar e as caminhadas na praia seriam uma mudança de cenário muito bem-vinda. Bastava dar um jeito no corpo e partir, nunca mais voltar. Era isso que estava indo fazer agora.
Um sorriso lhe veio ao rosto, sabendo que estava tão próximo de conseguir o que queria.
Ao chegar no número seiscentos e vinte, já não aguentava mais andar. Escutara histórias de velhos que eram deixados para morrer nas ruas, nos cantos das vielas, nas estradas afastadas. Aquela avenida lhe parecia um lugar propício para ser ignorado caso caísse e não conseguisse levantar. Pedaços de metal e vidro amontoavam-se entre os vincos do cimento rachado, premonições do que poderia ser seu destino.
Lembrou do olhar de desprezo que a mulher lhe reservara e soube que se caísse ali, realmente poderia dar-se por vencido. Ao menos que algum depravado aparecesse e lhe sequestrasse, fazendo sabe-se lá o que com ele. O mundo estava perigoso assim.
Reuniu o máximo de energia no mover de pernas, naquela única ação, e continuou. Vamos, pernas, não falhem agora, não parem.
Consultou seu relógio e viu que ainda restavam quarenta minutos até o horário que tinha agendado. Para ele não existiam filas preferênciais ou consultas sem agendamento. Precisava chegar na hora marcada.
Setecentos e oitenta e um. À sua esquerda viu o letreiro desgastado do lugar que estava procurando, indicando que estava próximo. À direita os carros ainda passavam, rápidos e indiferentes, sem lhe dar atenção alguma. Até mesmo o design daquelas máquinas de transporte, triangulares e pequenas em vez de redondas e grandes, como na sua época, transpareciam o egoísmo, a unicidade de cada um.
Ele sentia-se completamente deslocado caminhando ali. Sentir-se assim não era o que a sociedade esperava dele. Olhares tortos eram dedicados a velhos como ele, velhos rebeldes, desiludidos. Mas tinha amigos que passaram pelo mesmo e que arriscaram a mudança para pontos isolados do mundo, vivenciando experiências maravilhosas fora do trabalho, muito mais gratificantes que o trabalho em si. O velho queria algo assim para ele, uma experiência que o mudasse completamente.
Essa nova geração não seria capaz de mudar tanto quanto a dele, adaptar-se fora de suas funções. De desejar outras funções. Simplesmente não funcionavam da mesma forma.
Quando chegou ao número mil e vinte, sua vista apagou por alguns segundos e tudo ficou mudo. Ele continuou andando, zonzo, esperando o mundo voltar a ter cores e emitir sons. O barulho elétrico dos carros e a cor rubra do céu poluído voltaram aos poucos, mas turvos e distorcidos. O velho se apoiou num poste, procurando equilíbrio.
Tentou reunir mais energia. Subestimara os próprios problemas ao achar que andar por aí fosse tão fácil quanto antigamente.
Colocou as mãos nos joelhos e olhou a avenida. As cores passavam rápido, zunindo um zumbido eletrônico e cansativo. Deu dois tapas na cabeça, tentando voltar ao normal, colocar no lugar qualquer coisa que pudesse ter deslocado. Não funcionou. Tanto a calçada rachada quanto os carros e o poste continuaram dançando e multiplicando-se, as cores misturadas umas às outras feito uma pintura impressionista, como as que ele planejava pintar quando estivesse longe da cidade.
Estava cansado demais, quase desmaiando. Tentou se energizar mas não conseguiu, os sentidos ficando mais fracos a cada segundo.
Eu vou morrer aqui.
Tentou continuar a andar, se erguer. Conseguiu apenas dar alguns passos, sem colocar-se ereto. Pela segunda vez naquela tarde, quase caiu.
Estou travado. Não consigo endireitar a coluna.
Estava perto demais para desistir, entregar as botas. Continuou, andando como podia, naquela pose humilhante, fazendo um nítido esforço para sair do lugar.
Pensou ter visto alguém passar ao seu lado, mas a pessoa nada fez. Ele a xingou, sem olhar para trás.
Queria apenas chegar ao seu destino. Não queria morrer na sarjeta de uma rua suja.
Visualizou a areia fina e o sol de fim de tarde, iluminando o céu numa despedida rubra, mas em beleza e não em poluição. Imaginou o vento arejando cada uma de suas juntas, a salinidade gostosa do ar litorâneo. Adicionou um cavalete e uma tela em branco, e a certeza de que voltaria para casa em paz depois de um dia relaxante de pintura. Tentou se agarrar a esta imagem, encontrar força nela.
Só mais alguns números, algumas quadras, eu consigo, disse na voz mais alta e convincente que conseguiu projetar, resultando apenas num grunhido incompreensível. Mil e setenta e seis. Não ia conseguir, não naquele estado. Decidiu então fazer algo novo. Um procedimento que aprendera anos antes, mas que achou que nunca precisaria usar.
Abriu uma das placas de ferro da sua testa e jogou-a no chão, escutando o barulho de metal contra cimento apenas segundos depois, seus sensores auditivos completamente fora de sincronia com o mundo. Enfiou uma das mãos dentro da própria cabeça, procurando lembrar a sequência correta de fios que precisava puxar.
Terceiro, segundo, sétimo, quinto. Suas mãos tremiam enquanto tateava o bolo de fios, tentando presumir quais seriam os corretos sem conseguir vê-los. Sentia a adrenalina sintética atravessar todo o corpo.
Não estava conseguindo contar. Agitado demais, confuso demais. Até mesmo os pensamentos lhe chegavam com certo delay, reproduzidos em sua mente apenas algum tempo depois da Placa Mãe enviar os sinais.
O velho robô sentiu o desespero subir pelas tubulações de seu corpo de metal.
Decidiu então desligar o Simulador de Adrenalina. Agora já estava caído na calçada, e não se recordava do momento exato no qual caíra. Sentiu sinais na Placa Mãe. Precisou destacar a placa de metal em seu peito e procurar uma alavanca próxima ao lugar onde em um humano ficaria o coração. Puxe para a direita, chegou o pensamento. Tomou a alavanca nas velhas mãos de ferro, já lentas e enferrujadas, e puxou-a para a direita.
De imediato, sentiu os pensamentos voltarem ao normal dentro de si, a sensação de urgência partindo, restando apenas o calmo e calculado raciocínio lógico, ainda um pouco apimentado pelo Simulador de Emoções. Sua vista estava quase completamente apagada, mas conseguia pensar com mais clareza.
Agora restava apenas contar os fios e puxar um a um, na ordem correta.
O que estou prestes a fazer é loucura. Sabia que podia nunca mais voltar ao normal caso destacasse os fios do “Lado Humano do ‘Cérebro'”. Estes fios desligariam o Simulador de Emoções por completo. Por mais que suas memórias se mantivessem, ele terminaria completamente indiferente à elas, como se tivesse saído de fábrica em seu modelo mais básico e funcional, designado para realizar trabalhos mecânicos, como apertar parafusos no chão de fábrica ou organizar estoques.
Vou me perder, vou perder a vontade. Conseguiria reverter o processo? Certamente teria energia para isso, ainda mais depois de ir até a oficina oficial da fábrica na qual fora produzido, noventa e sete anos atrás, e fazer a revisão completa que tinha agendado para… Para dali a vinte minutos, de acordo com seu relógio interno. Mas energia não bastaria. Precisaria ter vontade.
Procurou qualquer outro mecanismo ou função em seu corpo que sobrecarregasse seu velho processador. Devia ter percebido antes, havia sido tolo. Seu próprio manual dizia que, quando começasse a sentir leviandade nos pensamentos, provavelmente estaria no momento de trocar a Placa Mãe, o “cérebro”. Mas isto deveria acontecer apenas após cento e dez anos de uso, quando aplicado na função para a qual fora designado desde o início, de “Consultor de Humanidades”.
Mas não quando se força demais a cabeça, velho tolo. Sabe-se lá quantas vezes fiquei acordado, sem nem mesmo ver a cara do carregador, contando apenas com a energia nativa das baterias. Isso exigiu muito do corpo, das peças.
Ou talvez tivesse saído com um problema de fábrica, algo que só se manifestou aos noventa e sete anos. Precisava ter se atentado às notícias, investigado se o seu fabricante era famoso por fazer muitos recalls ou não. Complicações físicas antes do tempo designado pelo manual não eram comuns, e o velho robô não tinha previsto que uma pane poderia acontecer tão de repente.
Droga, droga, droga! Já haviam passado cinco minutos desde que desligara o Simulador de Adrenalina, e foi necessário todo este tempo para concluir estes pensamentos. Não havia nenhum outro componente a desligar para salvar energia. Só se mantinha ligado por estar usando apenas os recursos de funcionamento básico. Simulador de adrenalina, desligado. Válvulas de circulação de óleo para as pernas, desligadas. Dispositivo de detalhamento auricular, desligado. Visores, desligados. Com tudo isso ativo, já teria apagado. Apagado completamente. A escuridão, o abismo, a Perda Total.
Já lera sobre isso em alguns ensaios filosóficos, um deles trabalho de um velho filósofo fabricado no mesmo lugar que ele. A ideia geral do ensaio era que não se devia temer a Perda Total, ela podia vir a qualquer um. Por mais improvável que fosse a ocorrência de uma falha no Sistema Internacional de Máquinas, fazendo todos os robôs apagarem de forma permanente, tal falha era possível. Mas nem por isso suas vidas deveriam ser negligenciadas. Não deviam temer a Perda Total, mas antecipá-la, suicidar-se, não era racionalmente aceitável. Novas peças que os colocassem em funcionamento adequado novamente estariam sempre disponíveis. Os melhores dias nunca tinham ficado para trás para eles. Bastava transferir as memórias, emoções e crenças para novos componentes que então continuariam a funcionar por mais longos anos.
Os melhores dias nunca tinham ficado para trás… Era verdadeira esta afirmação? O que o ensaio não abordava era o motivo de continuar a viver. O pressuposto de toda a argumentação era de que a vida por si só valia à pena. Imobilizado na calçada suja, o velho já não sabia se concordava com este pressuposto.
Imagens brotaram em sua mente. Sensações antigas, guardadas nos confins de seu disco rígido. Assim que foi fabricado, lhe colocaram numa máquina para simular as situações de uma vida humana. Experimentou o amor de uma mãe, o medo de uma criança, o prazer do sexo, a criatividade de um artista, tudo. E tudo voltava agora, borbulhando na superfície de seus circuitos. Seria aquilo o flashback da morte, a vida passando na frente de seus olhos? Por que sentia um peso melancólico acompanhar estas lembranças? Simulou tudo que o mundo humano tinha a oferecer antes mesmo de sair para vê-lo com os próprios sensores. Não tinha mais nada para ver, mais nada para sentir. Diante disso, sua rebeldia e vontade de ser livre para fazer o que quisesse lhe pareciam sem fundamento. O peso melancólico parecia não ter lógica.
Qualquer tipo de existência eterna, como a que eu poderia ter caso não tivesse sido tão descuidado, vale a pena ser procurada?, pensou, caído na calçada daquela avenida industrial e indiferente. Talvez já tivesse perdido o horário agendado. Qual o motivo… De continuar neste mundo de produtividade e eficiência? Produzir, produzir… Trocar a vida pelo capital… Comprar coisas que não importam… Se eu já vi tudo que tinha para ver, se já passei por tudo que este universo têm a me oferecer, de que serve minha existência? Tudo vai continuar, com ou sem o meu quadro impressionista do pôr do sol, com ou sem a minha cabana na praia… De que vale deixar algo para este mundo mecânico, pragmático? Onde mais além da minha própria casa os quadros não irão contra o Código de Conduta?
Se pudesse, choraria.
O peso que sentia agravou-se de forma quase insuportável. Somente em simulações sentira algo assim, nunca precisou de um ajuste sensorial para o que os técnicos chamavam de Falha Depressiva. Continuar a vida num lugar isolado já não lhe parecia atrativo, e afastar-se da sua rotina de robô trabalhador também não parecia tão importante. Estava apenas perdendo tempo num mundo que não compreendia e não gostava.
Ao menos que… Eu vá mais além. Um calafrio atrasado percorreria seu corpo segundos depois, fruto deste pensamento. A energia estava acabando. Restava apenas uma alternativa. Posso desligar o Senso de Individualismo e Consciência. Começar de novo. Do zero. Experimentar tudo outra vez, como se fosse a primeira.
Era arriscado.
Estes sensores não desligariam enquanto o Simulador de Emoções estivesse operando. Então terminaria preso numa existência meramente funcional, algo que muitos pensadores de sua geração criticavam, uma barbaridade cometida pelos humanos em suas indústrias e empresas. Sabia que, caso fizesse isso, nunca mais iria encontrar qualquer estímulo para ligar os componentes outra vez.
Meu Deus, clamou mentalmente.
Podia deixar um recado. Desligar seus sensores mais essenciais e deixar um recado para alguém, um amigo, alguém de confiança. Alguém para ligar seu lado humano novamente, livrando-lhe de continuar na Vida sem Vida, como denominavam os pensadores.
Mas de que valia sair da Vida sem Vida? Todos os anos que passou olhando para aqueles quadros, tentando refugiar-se neles… Apenas um velho debilitado e teimoso.
Ainda assim, mesmo questionando tudo que lhe trouxera até ali, o velho robô tinha medo. Desligar a Consciência, começar do zero, lhe parecia sombrio.
O peso dentro de si, a sensação de esmagamento emocional que apenas sugava sua bateria nativa até o ponto que um conserto seria impossível, aumentava.
Não quero perder a mim mesmo. Começar tudo de novo, esquecer quem eu sou. Não quero deixar de existir.
Os carros continuaram correndo, e uma garoa fina começou a cair.
E o velho robô continuou caído na indiferença da avenida, dividido entre duas ideias que pintaram a calçada de diversas cores conforme o líquido da bateria nativa vazava: a de que não valia a pena continuar a vida, e a de que não queria partir deste mundo.