Vida Chãoniana

Yara levou seu saco de pano para a nuvem mais escondida que encontrou. Olhou ao redor, sentou-se e abriu-o devagar, afastando o rosto para não ser ofuscada. Mas o objeto que tirou de dentro dele não parecia nem um pouco especial: era uma caixinha de metal com vários botões.

Balançou-a, mas ela não fez nada. Tentou falar com ela. Sem resposta. Apertou um a um os botões. No último, a caixa fez um barulho tão alto que Yara quase a derrubou na nuvem, perdendo-a para sempre.

Os padrões logo ficaram evidentes. Yara sabia que os habitantes do Chão tinham costumes estranhos, mas não sabia que poderiam fazer um som tão atraente, ou que tinham vozes tão bonitas. A canção falava de esperança, e sobre coragem para viver a vida. Passou horas ouvindo aquelas melodias, e algumas a induziram a movimentar o corpo seguindo seu ritmo.

— Yara?

O aparelho caiu, atravessando a nuvem em direção ao Chão.

— Não! — Os sons diminuíram até sumirem.

— O que está fazendo?

Por alguns segundos ficou ali, parada, digerindo o susto e a perda do objeto. Então virou-se e gritou para a pessoa atrás dela:

— Foi sua culpa! Por sua causa eu derrubei o meu…

— O seu o quê?

Yara voltou a si e percebeu com quem estava falando. Era Alto.

— Eh… Nada.

— Venha comigo, menina.

Apesar de jovem, sabia que desacatar Alto era algo impensável, e previa uma bronca no final daquele caminho. Saltaram pelas nuvens em direção ao Sol e chegaram a um local que nunca tinha visto.

Era uma construção simples como as outras, mas as nuvens que compunham as paredes e o chão eram tão escuras que ficou com receio que elas se desfizessem em chuva ao pisá-las. Mas foi para lá que Alto saltou, e sua única opção foi entrar atrás dele. Talvez fosse essa a sua punição, ser chovida e expulsa do país.

— Esse lugar é estável, Yara. Não se preocupe.

Entrou no recinto, insegura. No centro, havia uma estrutura cilíndrica nublar alta, e algo ali em cima brilhava.

— Não costumo trazer pessoas tão jovens aqui. Mas sua curiosidade em relação ao Chão tem se mostrado bastante precoce.

— Você já esteve lá?

— Já. Sei que tem perguntas, mas é melhor que veja por você mesma.

A garota se aproximou do que parecia um pilar, cilíndrico e com o triplo de seu tamanho. Saltou e tentou olhar por cima dele, agarrando-se à borda com os braços. A estrutura despencou com o peso da garota, derrubando-a na nuvem. Quando se levantou, viu que ela não havia se quebrado, mas dobrado como um canudo, e o seu topo agora apontava na direção de Yara. Ali, no centro da estrutura, havia imagens de algo verde, que balançava conforme o vento.

Sentou-se, maravilhada com o que via.

— Isso é o Chão?

— Sim. Essa construção reflete nuvens e partículas de água de todo o céu, é possível ver todo o planeta daqui.

Tocou na estrutura, levando-a um pouco para a direita. A imagem exibia agora outro lugar, um monte de pedras próximas a uma corrente de água, que brilhava em um milhão de pontos esparsos com o reflexo do Sol. Yara conhecia pássaros parecidos com os que voavam por ali, mas nunca vira a água do Chão, e imaginou se era para lá que a chuva ia depois de cair. Sentado nas pedras, um homem segurava um objeto, e após algum tempo ele o puxou, retirando de dentro da água um animal molhado, brilhante e bastante incomodado.

— O quê…?

— É um peixe. Eles vivem na água que fica junto ao Chão. Há muitos outros animais lá embaixo, até mesmo pássaros que não voam, e que por isso nunca passaram por nosso país.

— Por que não podemos conhecer o Chão?

— Porque é um lugar muito perigoso, Yara, ao menos enquanto os humanos estiverem por ali. Em breve isso não será mais uma preocupação…

Yara balançava o observatório para todos os lados e não ouviu mais nada do discurso. Ignorado pela menina, Alto deixou o recinto na esperança de que a visão do Chão aplacasse a curiosidade da garota.

Voltou só à noite para a cidade. Dirigiu-se ao dormitório-nuvem. Após dar a Tubio a má notícia sobre o aparelho que ele havia lhe emprestado, deitou-se em um canto, puxou um pedaço de nuvem para cima de seu corpo e dormiu.

Ouviu um som ritmado e constante. Abriu os olhos e se viu envolta por uma escuridão ainda maior que a do observatório. Não havia mais cidade, Sol, estrelas, ninguém em volta. Não sabia o que estava acontecendo e não era capaz de se mexer, mas se sentia confortável, sublime. Uma nuvem passou à sua frente, subindo. Outra ao seu lado. Logo percebeu que estava caindo, atravessando várias nuvens, elas não seguravam mais o seu corpo. Caiu até a escuridão se dissipar em uma luz forte e brilhante.

Acordou e sentou assustada.

— Está bem, jovem? — Perguntou a senhora deitada ao seu lado.

— Estou bem, Dona Lada. Me senti estranha enquanto dormia…

— Foi só um sonho, querida.

— O que é um sonho?

— São coisas que se vê quando está dormindo, às vezes uma história maluca, ou algo que você deseja. Os assustadores chamamos de pesadelos.

— Ninguém nunca me falou sobre sonhos e pesadelos.

— Poucas pessoas ainda sonham nesse país, querida. Eu mesma nem me lembro quando foi a última vez. Não se preocupe, não foi nada. Volte a dormir.

Deitou e cobriu-se, mas não conseguiu fechar os olhos. Pensou no sonho, e pensou no que Alto dissera sobre o povo do Chão. Logo eles não estariam mais por ali. Se isso fosse verdade, queria conhecê-los antes que se fossem.

Assim que amanheceu, Yara correu de volta para o observatório.


Néli suava. Tirou um lenço da bolsa, secou o rosto e abriu a porta do consultório. Seu coração batia mais rápido do que seu rosto determinado deixava transparecer.

— Analisamos os seus exames, Srta Néli…

A expressão do médico já dizia tudo. Néli pôs uma mão em sua enorme barriga. Manteve o rosto duro, mas não conseguiu disfarçar os olhos úmidos. O médico não conseguiu dar os detalhes que havia planejado.

— Sinto muito.

— Não, doutor. Eu é que sinto.

Saiu do consultório e bateu a porta com força.

Caminhou num sentido qualquer. Uma enfermeira se aproximou, mas ficou invisível antes de se aproximar de Néli. Alguém passou por ela, vindo de trás, e virou fumaça logo em seguida. As pessoas ao redor começaram a se desintegrar, e depois o hospital também se desfez. E tudo ficou preto.

Ao voltar a si, era erguida por duas enfermeiras, e havia uma terceira abanando seu rosto com uma toalha. Deram-lhe um copo d’água. Néli agradeceu e saiu rapidamente do hospital, evitando causar mais alarde.

Entrou no carro. No espelho, a cadeira infantil presa ao banco de trás. Virou-o em sua direção. Maquiagem escorrida pela face. Levantou a blusa e acariciou sua enorme barriga, enquanto se permitia chorar mais um pouco.


Na fronteira, as nuvens eram esparsas, e os saltos mais longos. Do observatório naquela manhã, Yara havia analisado todos os cantos do país. Aquela região estava bem próxima a nuvens mais baixas, pelas quais poderia descer. Antes de sair, avisara somente Tubio da jornada, prometendo-lhe um novo aparelho em breve.

Yara desceu, caindo de nuvem em nuvem, sem hesitar. Se fosse pega no meio da fuga, seria o fim de suas esperanças de poder ver o Chão um dia. No fim dessa escadaria irregular viu algumas montanhas ao longe, mas optou por saltar direto em direção a uma nuvem rolo que já estava bem perto do solo. Enquanto caía com velocidade, viu o Chão, e alguns pequenos pontos brancos se mexendo em uma área verde, o primeiro sinal de seres “chãoínos”. Ou seria “chãoenses”?

Mergulhou na nuvem rolo e emergiu em seguida, limpando os restos de nuvem que se prenderam em seu corpo. À sua frente, uma estrada de nuvem estava formada, um caminho que ia direto para as edificações feitas pelos nativos.

Correu. Agora era só escolher onde descer.


O mundo girava em câmera lenta, a vida não importava mais. As ruas do bairro ficavam vazias naquele horário, e cada quarteirão demorava uma eternidade para passar. Os semáforos só abriam depois de eras. Néli teria permanecido nesse estado o caminho inteiro até sua casa, não fosse um acidente de trânsito bem à sua frente. O carro que estava à sua frente desviou de algo no meio do cruzamento e bateu em um poste.

Neli viu então a causa, tinha alguém parado no meio da rua. O contorno era humano e tinha um rosto feminino, parecia uma pequena criança. Mas era translúcida, e algo em sua forma era incompreensível para Néli. Tapou a boca com a mão ao ver a criatura, que também parecia assustada.

Desceu do carro e se aproximou devagar. A menina alienígena agora a encarava enquanto se aproximava.

— Meu nome é Néli.

Sem resposta. Apenas dois olhos assustados a encarando.

— Você fala minha língua?

Nada.

— Não precisa ficar assustada, não vou te machucar…

— Não estou assustada!

— Ah… Então você sabe falar. Qual é o seu nome?

— Eh… Yara.

— Yara? — O sotaque da garota era complexo demais, e “Yara” era o mais próximo que Néli conseguia reproduzir.

— Não. Yara.

— Se não se importar, vou te chamar de Yara. Não consigo falar o seu nome. Me diga, o que está fazendo aqui? Você mora longe?

— Eu moro na Eterna Cumulus. Vim conhecer o Chão, antes que todos vocês nos deixem.

Néli sentiu um frio na espinha com esse comentário.

— Você sabe alguma coisa sobre isso?

— Foi Alto que me falou.

Néli olhou para sua barriga e se lembrou das últimas horas. Aparentemente até mesmo aliens com tecnologia superior já não acreditavam mais no ser humano.

Sentiu frio em seu pulso. Era Yara, segurando-a com sua pequenina mão translúcida. Néli gritou, e deu alguns passos para trás.

— Nã… Não encoste em mim.

Yara riu em voz alta, e Néli, ao mesmo tempo em que estava assustada, se emocionou ao ouvir a risada infantil da garota.

— Não vou te machucar, moça, eu não sou muito forte… — Yara mostrou seus bíceps infantis. — Só queria saber se você poderia me mostrar o Chão.


Tudo era sólido. As ruas, as paredes, os habitantes. Yara não conseguia se localizar, para todo lugar que olhava havia uma coisa sólida tapando sua visão. E não gostava de estar percorrendo o Chão de dentro de uma coisa sólida.

— Você queria conhecer meu mundo, não queria? Não sei como funciona na sua casa, mas aqui vamos para os lugares de carro, e você não vai conseguir me fazer andar muito tempo a pé com essa barriga. Isso sem contar a atenção que chamaria uma alienígena transparente andando pela rua como se não quisesse nada.

— O que é alienígena?

— São seres que moram em outros planetas.

— Mas eu sou desse planeta. Sempre morei aqui.

— Nunca vimos vocês.

— É porque a gente não entra em contato, ficamos só nas nuvens.

— Então vocês são o mesmo que alienígenas pra gente.

A “chãoniante” chamada Néri parecia bastante gentil. Ela parou em vários lugares para procurar umas coisas que ela chamava de “roupas de criança”, que, de acordo com ela, ajudariam-na a passar despercebida. De acordo com Néli, isso era importante pra ela conhecer o Chão sem que tentassem impedí-la. Enquanto esperava no carro, olhava ao redor procurando entender como as pessoas daquele lugar viviam. Mas eles eram complicados, todo mundo entrava e saía de lugares fechados o tempo inteiro. Todo o tempo ao ar livre parecia servir somente para chegar a outro lugar fechado.

Néli estava com dificuldade de encontrar as tais “roupas de criança”. Ela sempre saía brava dos lugares fechados, e então dirigia a caixa de metal para algum outro. Às vezes ela reclamava.

— Não é possível que esteja tão difícil assim achar roupas de criança hoje em dia! Acho que o capitalismo também perdeu a esperança na humanidade.

— Quê?

— Nada, Yara, não se preocupe.

Yara não gostava de quando ela se recusava a explicar algo.

Em uma das lojas, Néli demorou mais que o normal, e quando voltou, trazia algo nas mãos. Yara viu o sorriso no rosto de Néli e se animou, estava louca para se tornar despercebida e poder sair do carro. Néli entrou rápido no carro, e foi tirando as coisas da sacola. Eram vários tecidos de cores diferentes.

— Essa foi a única loja que encontrei alguma roupa de criança, e já rodamos a cidade inteira. Vai ter que ser essa mesma.

— Tem algum problema com ela?

— Bom… É masculina, mas não temos opção.

Yara pegou uma delas nas mãos, e não soube dizer porque ela era considerada masculina. Viu Néli admirando uma outra roupa, sem lhe dar atenção. Ela olhava para o pano como se fosse algo especial, e o esfregava em seu rosto. E então uma gota de água escorreu de seus olhos.

— Como você fez isso?

Se assustou com a pergunta, e limpou o rosto.

— Seu olho choveu.

— Se chama “chorar”. Fazemos isso quando estamos muito tristes, ou muito felizes.

— Você não parece muito feliz.

— Vista sua roupa, Yara.

Vestiu-se dentro do carro, com alguma ajuda. A calça jeans e o tênis de mola lhe serviram bem. A camiseta estava um pouco larga. Yara se sentiu pesada com todo aquele tecido. Néli lhe mostrou como usar o boné e os óculos de sol. Não era um disfarce incrível, mas daria pro gasto. O Sol, entretanto, já se punha, ao que ela sugeriu:

— Se você quiser, venha para minha casa, você dorme lá e amanhã a gente passeia a pé, o que você acha? O Chão não é muito seguro à noite.

— Quero ficar com você, Néli.

Assim, voltaram para a casa de Néli. Era um lugar fechado, pra variar. Ela lhe mostrou umas coisa chamadas comidas, mas Yara não sabia o que fazer com elas. Então ela lhe mostrou o quarto onde supostamente deveria passar a noite. Yara olhou pela janela e logo reclamou.

— O céu de vocês à noite é muito feio. É aqui que você dorme?

— Não. Eu tenho meu próprio quarto. Esse é pra você.

— Mas eu… Nunca dormi sozinha.

Néli se sentou na cama junto com Yara.

— Ok, que tal se você me contar um pouco sobre sua casa? Talvez se eu conhecer como você vive, posso facilitar as coisas pra você.

Yara olhou para ela, pensando se seria seguro revelar coisas sobre sua casa para um habitante do Chão.

— Você pode confiar em mim, Yara.

— Se diz “Yara”, não “Yara”.

Ela lhe contou então sobre o país nas nuvens, a Eterna Cumulus, sobre Alto, sobre seus amigos, sobre o aparelho que deixou cair.

— É um rádio.

— Rádio?

— Sim. Depois compro um pra você. Já sei o que vamos fazer pra você dormir. — Néli pegou um saco plástico cheio de formas geométricas. — Eu ia colocar no quarto do bebê, mas acho que não vai mais fazer diferença.

E naquela noite, Yara dormiu na cama de Néli, coberta por um edredom fofinho e debaixo de um teto cheio de estrelas de plástico verde-fluorescente.


No dia seguinte, Néli acordou assustada. Por um segundo, não sabia se o dia anterior havia sido real. Então virou-se para o lado e viu a garota translúcida dormindo. Evitara tocá-la no dia anterior, mas enquanto Yara dormia, pegou em seu cabelo, que parecia uma seda muito fina.

Teria feito a coisa certa, mantendo-a em sua casa? Se o governo ficasse sabendo? E se o tal do Alto viesse atrás dela? E se mesmo com as roupas alguém viesse questioná-la? Uma criança tão pequena não se via mais todo dia.

Levantou-se e preparou café da manhã. Com o barulho, Yara acordou e apareceu na cozinha.

— Bom dia! Fiz um pão na chapa pra você, Yara. Você não quis comer ontem, então deve estar com fome.

— Não sei o que é fome.

— Você não come?

— O que é “come”?

— “Comer” é quando você coloca alimentos na boca, e depois os mastiga, engole e eles te mantém viva. Não é possível que você não saiba o que é comida.

Tentou fazer Yara experimentar os ovos, mas ela não tinha interesse. Também não quis beber nada naquela manhã, e Néli não a viu ir ao banheiro. Como aquela menina estava em pé, se não entrava absolutamente nenhuma energia em seu corpo? Fotossíntese? Mesmo sendo uma raça desconhecida, nada daquilo fazia sentido.

Após o café da manhã frustrado, Néli saiu com Yara pelo bairro, segurando sua mão. Ela era uma garota curiosa e perguntava sobre tudo. Tentava responder com a maior sinceridade possível suas perguntas sobre o que os humanos faziam, por que gostavam tanto de lugares fechados, o queria dizer quando uma pessoa colocava a boca na boca de outra pessoa, por que precisam comer, o que eram aqueles bichos “chãozolinos”, etc.

Yara se empolgou com um desses bichos, soltou a mão de Neli e correu atrás dele. Era um gato, meio cinza, meio branco. Ele escalou a parede de uma casa e Yara deu um salto direto para o teto para persegui-lo. O queixo de Néli caiu. Ficou alguns minutos chamando por Yara, até que ela resolveu voltar. Sem gato.

— Yara, pelo amor de Deus! Você não pode fazer isso!

— Isso o quê?

— Saltar tão alto. A gente não consegue saltar assim, vão perceber que você não é daqui.

— Eu só queria dar uma olhada naquele bichinho.

— Escute aqui, se quer que eu continue te guiando, você tem que fazer as coisas do meu jeito, ok?

— Tudo bem… — Yara corou. Néli não achou que isso fosse possível, mas ali estava ela, envergonhada. Uma criança, antes de tudo.

Visitaram vários lugares, e Néli respondeu a muitas perguntas. Yara ouviu música tocando em um bar, e entrou em êxtase. Contra a vontade dela, Néli a afastou dos olhares curiosos, mas logo em seguida parou em uma banca de jornal para comprar um aparelho de rádio.

Voltaram para casa por volta da hora do almoço, e Néli estava exausta. O aparelho de rádio foi suficiente para entreter Yara o resto da tarde. Néli se lembrou do pulo que ela deu para cima da casa e pensou sobre o fato dela morar em uma nuvem. À noite, ao encher a banheira para tomar banho, decidiu fazer um teste.

Yara conseguia ficar em pé em cima da água.


Apesar dos “chãoístas” terem alguns costumes irritantes, como quererem coisas o tempo inteiro, falarem o tempo inteiro e quase nunca estarem felizes, depois de poucos dias Yara já havia aprendido a gostar daquele lugar. Ali havia animais, encontros, movimento, arte, especialmente a música. Yara escutava músicas de estilos diferentes o tempo todo e gostava de todas elas, apesar de entender muito pouco do que diziam. Quanto mais conhecia o Chão, mais queria conhecê-lo, e menos pensava em voltar pra casa.

À noite, Yara sonhava novamente que estava em um lugar escuro. O dia em que decidiu sair de Eterna Cumulus foi a primeira vez que tivera esse sonho, e desde então, sonhava a mesma coisa quase todos os dias. Às vezes tudo era escuro e silencioso, como se estivesse perdida em um universo sem estrelas. Outras vezes ouvia um som repetitivo, ou um som muito distante que parecia ser o de alguém tentando se comunicar.

De vez em quando Néli chorava. Yara não entendia direito o que aquilo queria dizer, mas sabia ser um sentimento ruim e que tinha alguma coisa a ver com a barriga dela. Nesses dias ela não queria sair de casa e ficava sozinha em um quarto colorido que tinha uma cama pequena, mas também não queria falar sobre o problema. Yara queria tirar aquela dor de Néli. Queria vê-la feliz.

Nunca havia sentido isso antes.


Uma semana após a chegada de Yara, Néli sentiu a placenta se romper. Sentou-se em uma cadeira próxima à porta, gritando, chorando e tentando segurar as contrações.

— Néli, está tudo bem?

— Não, Yara. Meu bebê está nascendo, e não vai nem ter a chance de ver o Chão como você viu. Pegue o telefone pra mim.

Discou o número da emergência e pediu por uma ambulância.

— Ele está morto?

— Ainda não. Mas ele não vai respirar quando nascer. É alguma doença, eles não sabem a causa. Faz anos que um bebê não nasce com vida.

— É por isso que vocês vão nos deixar?

— Sem bebês, a humanidade vai durar apenas mais algumas décadas. Se esconda no quarto quando a campainha tocar, eles não podem ver uma garota transparente comigo ao chegarem.

— E o que eu vou fazer aqui sozinha?

— Nunca falamos sobre você ir embora, Yara. Não sei quanto tempo você pretende ficar aqui, eu gosto de você e não quero que você vá. Mas vou entender, caso você não queira esperar.

Yara apertou os lábios e os olhos, fazendo uma cara próxima à de choro. Néli passou a mão em seu rosto.

— Olha só, a garota das nuvens já está aprendendo a chorar.

Os enfermeiros chegaram e Yara se escondeu.


Assim que Néli foi levada, Yara se enfiou no edredom e começou a chorar. Ficou ali por muito tempo, e não percebeu que não estava mais sozinha.

— Por que está chorando, Yara?

Tirou o edredom no susto.

— Alto? O que… Como chegou aqui? — Yara não precisou pensar muito. — Foi o Tubio, não foi?

— Você não deveria estar aqui. Você não sabe nada sobre os humanos, e muito pouco sobre você mesma.

— O Chão não é tão perigoso assim.

— Eles são egoístas. Até mesmo essa mulher que está te protegendo. Ela só o faz porque sente falta de ter sua própria criança. Todo ser humano tem potencial para fazer coisas muito ruins, e todos eles em algum momento o fazem.

— Você veio pra me levar embora?

— Você sabe que sim, Yara.

— Então antes eu vou me despedir de Néli.

— Não podemos, Yara, nós precisamos….

— EU VOU ME DESPEDIR DE NÉLI!

— Se é o único jeito… Que seja. Mas vai ser do meu jeito.

Alto segurou em uma mão de Yara e caminhou com ela em direção a uma parede. Antes que Yara percebesse, a tinham atravessado.

— Não sabia que podíamos fazer…

Foi interrompida por Alto dando um enorme salto, puxando-a junto. Demorou para se dar conta que na verdade estavam voando.


Após quase doze horas parto, tudo o que Néli queria saber era se o bebê estava vivo.

— Lamento. Fizemos tudo o que estava ao nosso alcance.

Lágrimas escorreram, mas estava conformada.

— Era menino ou menina?

— Menina. Você quer segurá-la? Fique com ela o tempo que precisar. — Néli pegou aquele corpinho frágil e o balançou como se estivesse vivo.

— Meu bebê. Por que a vida tem que ser assim com a gente? Olha pra você, tão lindinha. — Chorava ininterruptamente enquanto a segurava.

Foi assim que Alto e Yara a encontraram, ao passar pela parede do quarto. Néli percebeu a presença deles, mas não se assustou.

— Você deve ser o Alto. — Disse Néli, com um olhar estranhamente feliz.

— Não vamos tomar muito de seu tempo, humana. Yara insistiu em se despedir.

— Néli… Eu…

— Antes de você falar, Yara, tem uma pergunta que eu preciso te fazer: Você quer ser minha filha?

— O quê? — Respondeu Yara, soltando a mão de Alto e dando alguns passos pra trás.

— Que absurdo é esse? — Disse Alto.

Néli então se virou para o líder.

— Eu não teria percebido se Yara não tivesse me falado sobre seus sonhos à noite. É isso o que vocês são, não é verdade? Almas ainda não nascidas, esperando para encontrar corpos compatíveis aqui embaixo. É por isso que seu povo está crescendo e o nosso morrendo.

O silêncio que se seguiu foi quebrado por Yara.

— Alto, isso é verdade?

— Não vou mentir pra você, Yara. Sim, é verdade. Costumávamos ir ao observatório para escolher nossa futura vida no Chão. Mas nós não precisamos dos humanos para sobreviver. Eles é que precisam da gente. Se nunca descermos procurando vida, logo eles se extinguirão.

— Você quer que eles morram? É por isso que você esconde essas coisas de todo mundo, pra que os humanos morram?

— Você é inocente e não entenderia.

— Me explica!

Alto hesitou.

— Está bem, Yara. A verdade é essa: antes de ser líder, eu trabalhava em Eterna Cumulus como uma espécie de guia, eu ia com as pessoas ao observatório e as ajudava a escolher onde e com quem nasceriam. Naquela época, os humanos entraram em guerra uns com os outros. Passaram décadas lutando, e depois dessas grandes guerras o mundo nunca mais voltou a ter paz. Eu vi almas amigas que eu conhecia há séculos chegarem ao mundo para serem mortas ainda bebês por motivos ridículos, como dinheiro, aparência, ou o local do mundo em que nasceu. Percebi com tudo isso que não vale a pena descer para viver desse jeito. Quando o líder atual decidiu descer para o Chão e viver uma vida humana, ele me deixou em seu lugar.

— E depois disso — Néli completou — você passou a falar pra todas as almas que nasciam no seu país que aqui é um lugar horrível.

— O Chão é de fato um lugar detestável. Nosso país está crescendo, e somos seres eternos em nosso estado. Por que uma alma iria querer trocar isso por um tempo curto morando em um lugar cheio de ódio, sem saber para onde sua alma irá depois?

Néli respondeu.

— Podemos não ter a vista que vocês têm do céu, nem podemos saltar ou voar sem equipamentos, mas o que temos aqui vocês nunca vão ter lá em cima. E é isso o que Yara mais deseja.

— O que seria isso, Yara? — Perguntou Alto. — Outro aparelho de rádio?

— Não, Alto. Vida. Eu quero uma vida.

Alto olhou para Yara. Ele sabia disso, desde quando Yara se materializou nas nuvens mais distantes, toda curiosa e hiperativa. Sempre soube. Yara continuou:

— Olhe para ela, Alto. Você acha que ela vai me maltratar? Que ela é uma má pessoa, cheia de ódio?

O líder de Eterna Cumulus reagiu então de uma forma que nenhuma das duas esperava. Sentou-se no canto do quarto, e apoiou a cabeça nas duas mãos.

— Não, Yara, olho para ela agora e só vejo bondade. Mas o fato é que ela é humana, como todos os outros. Ela vai te magoar, e te maltratar, e você vai crescer como uma pessoa desajustada e cheia de problemas, como todos eles.

A garota se aproximou de Néli, com um enorme sorriso em seu rosto translúcido.

— Néli.

— Sim.

— Quero ser desajustada e cheia de problemas junto com você. Quero ser sua filha.

— Você está com aquela cara de choro de novo, Yara.

— Você também está chorando… Mamãe.

Yara tocou no bebê.


Yara sonhou novamente. Estava em um local escuro, com o corpo imóvel. Mas não acordou dessa vez. Ela permaneceu ali, caindo, passando entre nuvens, e então conseguiu mover uma mão, uma perna. Abriu os olhos, que foram ofuscados por uma grande luz, e depois foram se acostumando. Uma voz calma falava em seu ouvido, e sentia um cheiro reconfortante.

Não se lembraria mais de suas aventuras como alma habitante de Eterna Cumulus. Agora ela era Yara, cujo nome se pronunciava da única maneira possível ao ser humano. O primeiro bebê nascido com vida em mais de cinco anos.


Néli não viu mais Alto. Mas a partir daquele dia, os bebês voltaram a nascer com vida. Quem sabe, talvez o próprio Alto um dia decidiria se entregar à existência terrena. Ele poderia até mesmo virar um dos futuros amigos de Yara. Essa, desde pequena, já se mostrava um poço de curiosidade e agitação. E só aceitava dormir em um único lugar, no quarto de Néli, debaixo do céu de estrelas verde-fluorescentes.

Author: Wilson Faws

Wilson Faws é engenheiro de computação e escritor. Mora em Campinas/SP. Possui contos publicados em antologias nacionais, e também se aventura em diversos projetos nas áreas de cinema e quadrinhos. Algumas de suas produções podem ser encontradas em literafaws.blogspot.com.

2 thoughts on “Vida Chãoniana

  1. Gostei muito desse conto. É uma história simples e nos faz lembrar da nossa criança interior, já esquecida. É uma arte para poucos escrever sobre a beleza que há nas coisas mais simples da vida. Parabéns Wilson.

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