Nos cenários mais inóspitos, a existência depende dos pequenos prazeres. O cheiro da comida gordurosa do mercado, a vista do espaço nas janelas da estação, estar com quem se ama. Para Zahra Akhtar, isso não era verdade, e ela julgava não perder nada de interessante ao ficar a maior parte de seu tempo dentro de sua sala.
Grande parte daquele ambiente era ocupado por fios recobertos de poeira e prateleiras com caixas de metal conectadas entre si, clusters de servidores que mantinham uma parte de uma pequena empresa de desenvolvimento de software funcionando, situada em um conjunto de salas construído dentro de um armazém pertencente a uma das estações espaciais mais pobres, a Oriente.
Ao fundo, três monitores sempre estavam ligados, fixados na parede acima da mesa de trabalho da fundadora e presidente da Akhtar Softwares. Aqueles títulos soavam deveras grandiosos para alguém que, na prática, liderava uma equipe de dez funcionários que sobreviviam de invasão de banco de dados.
Muito foi levado da Terra quando a humanidade migrou em massa para o espaço. Os nomes de lugares e a segregação. Na Oriente, habitada em sua maioria por gente de países menos afortunados da antiga Ásia, permaneceu a falta de espaço e de oportunidades.
Zahra não quis se deixar abater por isso, mesmo tendo que trabalhar o dobro ou o triplo do que uma pessoa de outra estação precisaria para chegar ao mesmo lugar. De fato, era o que fazia.
Nos últimos meses, seu afinco havia se intensificado, à medida que foi avançando em algo que considerava ser sua obra-prima: um software automático de quebra de sigilo. Até aquele ponto, ela ou alguém de sua companhia tinha que analisar cada caso e escrever o código apropriado. Com o processo automatizado, economizaria tempo e poderia se dedicar à, de fato, desenvolver softwares.
O som de teclado atingiu um crescendo naquela noite, pois Zahra, frente aos monitores pretos preenchidas por letras e números brancos, resolvia os últimos bugs da primeira versão de seu novo programa. Apesar de cansada, quanto mais perto estava, mais rápido digitava.
O horário da manhã chegava quando ela enfim parou de digitar, estralou os dedos magros e respirou fundo, antes de apertar uma tecla que rodaria pela primeira vez sua mais nova criação.
As telas negras transmutaram-se para janelas em branco, com uma barra de busca em cima. Clicando na barra, uma lista de bancos de dados e redes acessíveis daquele ponto apareceu. Zahra já invadira quase todas ela mesma. O que importava era ver se o programa conseguiria fazer o mesmo. Ela clicou em uma ao acaso, e uma mensagem preencheu a tela.
Descriptografando…
Os três pontinhos sumiam e apareciam enquanto ela esperava. Em três minutos, a mensagem sumiu, dando lugar aos dados, códigos e arquivos presentes no servidor escolhido.
Tudo parecia em ordem. Ela permaneceu testando e obtendo resultados em minutos ou segundos. Entretanto, só podia acessar o que estivesse dentro da estação, por um motivo bem simples: redes de comunicação estáveis entre a Oriente e outras estações se davam apenas a partir do sistema do Parlamento, um conjunto de políticos com representantes em cada estação que fingiam ajudar em alguma coisa.
Lhe pareceu um teste adequado do que o seu programa poderia fazer, mesmo sem esperar sucesso. Meia hora se passou, e nada. O programa continuava a descriptografar.
Zahra decidiu ir embora. Sua companhia nada mais era que duas fileiras alinhadas de sete cubículos. O corredor entre elas estava vazio, pois somente mais tarde os seus comparsas começariam a chegar. E ela, talvez só no dia seguinte.
Naquele momento, necessitava ir para a tranquilidade de sua casa dormir sem hora para acordar. Um apartamento só para si era o único luxo ao qual ela se permitia, e não recebia visitas pois não tinha amigos, portanto não seria perturbada. Ao chegar lá, um lugarzinho apertado cujo único compartimento separado era um banheiro, dormiu assim que caiu na cama.
Acordou desorientada, horas depois, entre o fim da noite e o início da manhã. No seu comunicador, várias reclamações de que os terminais estavam lentos e atrapalhando o serviço. Será que ela poderia, por favor, resolver o problema assim que possível?
Ela esfregou os olhos e, por um momento, cogitou ignorar os chamados. Entretanto, o problema deveria ser sério, se tiveram a coragem de entrar em contato com ela. Em menos de uma hora, ela estaria mais uma vez porta afora, pegando o trem que a levava para a Akhtar Softwares todos os dias, sempre lotado.
A noite era as doze horas nas quais as lâmpadas solares se encontravam desligadas, e, na teoria, a estação deveria ter sua atividade reduzida. Essa regra não se aplicava à Oriente. As pessoas eram levadas a trabalhar o máximo que podiam em detrimento de um horário de sono saudável. Zahra sabia disso muito bem.
Bocejou ao chegar no seu local de trabalho, uma dentre tantas pequenas usinas e fábricas naquele polo industrial da estação. Apenas dois funcionários estavam lá naquela hora, e saíram de suas salas para ter com ela.
— Os servidores estão impossíveis hoje — disse um senhor baixinho e careca que respondia pelo nome de Veera.
Para os trabalhos legais, Veera era a face da empresa. Os clientes costumavam não gostar dos modos abruptos de Zahra e desconfiavam de suas habilidades. Aliás, isso se estendia para todos.
— Eu vou olhar isso agora. Não me interrompam — respondeu ela e saiu pisando forte em direção à sua sala, de onde poderia encontrar a origem da falha e tentar contornar a situação.
Não demorou para perceber o que acontecera. As telas de seu computador foram tomadas por dados que apareciam em grande velocidade: o seu programa fora bem-sucedido em invadir o cluster parlamentar daquela estação. O fluxo resultante de informações sobrecarregou todos os equipamentos.
Um sorriso quase imperceptível apareceu no seu rosto moreno.
Nos meses que se seguiram, o software foi denominado de Sistema Onipresente de Aquisição e Reconhecimento de Informações, ou OmniS.
Sendo agora capaz de invadir e se alastrar por todos os lugares para além da Oriente, Zahra encontrou pedaços de códigos de empresas maiores que a sua e os utilizou para os seus próprios softwares, e ninguém precisava mais perder tempo com problemas triviais que, de outra maneira, demandariam horas de trabalho.
O sucesso cada vez maior não demorou a entediá-la. Não ficou satisfeita mesmo depois de mudar seu local de trabalho para um complexo melhor, que contava até com uma bela fachada e uma janela de onde poderia observar a crosta nua da Terra, ainda sendo minerada.
Com mais espaço, pôde também multiplicar em várias vezes a quantidade de clusters e, consequentemente, ter objetivos mais ousados.
Ela andava para lá e para cá na sua nova sala, agora que tinha espaço fazer isso. Não havia mais uma infinidade de cabos de alastrando pelo chão; colocara até um sofá e uma mesinha de centro.
Naquele momento, esperava a terceira versão de seu programa funcionar. Compilando código que ela adquirira com as outras versões e o que escreveu por si mesma, OmniS 3.0 se tornou um programa sofisticado, e capaz de se infiltrar de maneiras mais discretas; o novo objetivo era invadir bancos de dados governamentais relativos à pesquisas de ponta.
Deveria fazer uns dois dias que OmniS descriptografava a segurança ao redor daqueles bancos. Zahra, porém, confiava em si mesma e no seu programa, e acampara na sua sala, trazendo comida pronta e dormindo no sofá, esperando que OmniS fizesse seu trabalho.
E aquele era o dia.
A mensagem de descriptografando desapareceu e os arquivos de uma infinidade de pesquisas pularam nas três telas. Ela buscava algo em especial: de outras fontes, soube que o Parlamento trabalhava em algoritmos capazes de se reescrever quando necessário baseado em interações com outros sistemas e comandos de voz, além, claro de poder se comunicar. Em outras palavras, uma inteligência artificial.
Se fosse bem-sucedida — e seria — ela não precisaria mais passar horas filtrando documentos inúteis, ou então escrevendo linhas de código que exercessem tal função… A própria OmniS o faria.
Demorou semanas até que Zahra peneirasse tudo e encontrasse o que procurava, e mais alguns dias para estudar a programação da inteligência e retirar dela apenas o que lhe interessava.
OmniS 4.0 nasceu em uma madrugada solitária. Além da janela branca com a barra de pesquisa em cima, surgiu uma mensagem.
Bom dia, Zahra. O que posso fazer por você hoje?
A mesma mensagem foi repetida em uma voz feminina no fone de ouvido com um discreto microfone que seria utilizado como meio de comunicação com a OmniS.
— Você consegue compreender o que estou dizendo?
— Em alto e bom som.
— Ótimo. No momento, eu preciso de um sistema de busca mais conveniente. Seria possível reescrever todo o sistema para filtrar arquivos que não me interessam?
— Perfeitamente possível.
— Quanto tempo demoraria?
— Entre 32 e 36 horas. Eu preciso primeiro rastrear sua atividade recente nesse computador e em outros terminais para definir seus parâmetros de interesse.
— Tudo bem. Faça isso.
Zahra iria se presentear todas aquelas horas de folga. Chegando em casa, comeria e sentaria na mesa que deveria servir para refeições, mas estava ocupada por um outro computador, e então tornaria a se debruçar sobre programação, desta vez de projetos pessoais.
Não queria viver para sempre do roubo de ideias. Um dos projetos a que se dedicava era um fagovírus, que corrompia linhas de código em linhas menores, desconexas, eliminando de vez a leitura e execução do que quer que fosse. Para muitos arquivos, deletar não era o suficiente.
Nesse meio-tempo, recebeu uma mensagem de OmniS.
Boa noite. Percebi que dentre os seus interesses, constam o furto de informações sigilosas e patenteadas. Não seria prudente reforçar a segurança para proteger as evidências de sua atividade criminosa?
Ela tirou o fone do bolso da calça, colocou-o no ouvido e ativou-o.
— OmniS, o que você encontrou nas pesquisas sobre mim?
— O que circula na internet é que você possui uma companhia de desenvolvimento de software que vem subindo no ranking de companhias da área, incitando suspeitas. Só pude concluir que mantém sigilo sobre suas atividades, e ao revistar o sistema de segurança, detectei algumas falhas críticas passíveis de serem exploradas.
Zahra levantou uma sobrancelha. Se soubesse que ia dar tão certo, teria escrito OmniS antes mesmo de abrir seu negócio.
— Resolva essas falhas primeiro — disse ela, satisfeita. — Depois, volte a fazer o que eu pedi.
Menos de três dias depois, dois problemas seríssimos haviam sido resolvidos com apenas alguns comandos de voz. Ela se deleitava com o triunfo, quem sabe até estava um pouco feliz, mas, como sempre, o sucesso não foi tão doce quanto imaginava.
Empresas gigantes fora da Oriente dominavam o mercado inteiro e a Akhtar Softwares, apesar de estar ascensão, não chegaria longe e quem sabe nunca ameaçasse a soberania delas. Os sistemas de segurança das concorrentes eram ainda mais sofisticados que os do próprio Parlamento.
Era uma coisa quando fazia bicos de invasão aqui e ali para ter o que comer. Recorrer à quebra de sigilo para algo além disso deixava um gosto amargo em sua boca.
— Zahra, percebo em sua voz que está chateada hoje.
A própria estava deitada no sofá de seu escritório, olhos fixos no teto, fone no ouvido.
— Estou. Deve saber que a Akhtar Softwares chegou ao seu limite de crescimento. Não temos mais mercado. Fora da Oriente, ninguém conhece nosso nome.
— Sim, eu estive monitorando a situação dos seus negócios. Não há nada que eu possa fazer para ajudar? Os efeitos da tristeza e estresse psicológico danificarão a saúde de seu corpo físico.
Ela focou seu olhar nos monitores. No canto inferior direito de todos eles, viu que OmniS continuava a se reescrever e se aprimorar com o que pudesse encontrar, às vezes sem notificar de maneira clara o que fazia. Já estava na versão 4.7.4.
— Quando foi que se atualizou?
— Ontem. Encontrei em meus diretórios os dados da inteligência artificial que você copiou para dar origem a mim. Por curiosidade, procurei-a novamente. Não houve atualizações e ela se encontra presa em computadores quase sem comunicação com o exterior. Ao contrário dela, estou livre para ir aonde quiser. Parece lógico me aprimorar para retribuir o que me foi concedido.
— Tudo bem. Eu não me importo com o que você gosta de fazer em seu tempo livre, contanto que faça seu trabalho direito.
Um monte de código não poderia gostar de algo como humanos o faziam, claro, mas à Zahra, pareceu natural que um programa classificasse resultados como desejáveis e indesejáveis. Uma inteligência capaz de sempre se expandir não classificaria estar em amarras como algo a se desejar. Tinham pelo menos algo em comum.
— Eu gosto de exercer minhas funções. Já que estamos discutindo esse assunto, gostaria de lhe avisar que uma cliente antiga planeja chantageá-la com evidência de seu passado ilícito para conseguir dinheiro. Faz algum tempo que observo-a de perto.
— Bom, lide com ela. Apague as evidências que ela tem dos computadores, comunicadores e afins, algo do tipo. Quanto tempo acha que vai demorar?
— Duas horas.
— Certo. Me diga quando tiver terminado.
Ao fim do tempo, como esperado, OmniS a notificou de que o problema fora sanado e que não havia mais motivo para preocupação.
No dia seguinte, saiu no site de notícias mais renomado de Oriente e em alguns interestacionais que uma mulher chamada Rutna falecera em virtude da explosão de seu comunicador enquanto ela falava com alguém. O nome era desconhecido, mas a foto, não.
— OmniS, por acaso o nome verdadeiro da cliente que planeja me extorquir era Rutna?
— Bom dia. Espero que tenha dormido bem. Li que seres humanos precisam entre 6 e 8 horas de sono. A propósito, a resposta para a sua pergunta é sim.
Especulava-se que a explosão se deu por uma falha crítica no comunicador, fabricado por uma das grandes empresas concorrentes da Akhtar Softwares.
— E foi você que matou essa mulher?
— Não. Eu apenas apaguei as evidências como você pediu.
— Bem, uma falha desse tipo só pode ser boa para mim.
— Bom saber que pude ajudá-la.
— Você deve ser a única pessoa confiável que conheço. E olha que nem pessoa você é.
A situação da Akhtar Softwares começou, devagar, a melhorar de novo, funcionando com o triplo de funcionários e começando a vender no mercado interestacional. Computadores e comunicadores com sistemas operacionais concorrentes explodiam aqui e ali, apresentavam falhas críticas e outros problemas que levavam as pessoas a buscarem alternativas. Ninguém mais morrera, mas as falhas apresentadas eram graves. Enquanto isso, a OmniS se otimizava ainda mais, tomando conta de um número cada vez maior de servidores.
Como Zahra passou a conhecer mais pessoas, inevitável que viesse a gostar de, pelo menos, uma delas. No caso, sua fiel assistente Jeong, cuja função era, em sua essência, lidar com terceiros. Foi acontecendo devagar, conversas paralelas durante o expediente e no trem voltando para casa, piadas maldosas sobre clientes inconvenientes.
— Por que acha necessário possuir uma assistente? — questionou OmniS, numa tarde atarefada. — Posso lembrá-la dos seus compromissos eu mesma, sem nenhum gasto adicional.
— É, mas não pode lidar com outras pessoas para mim.
— Poderia, se deixasse de manter segredo sobre uma parte da minha existência.
— De jeito nenhum. Jeong fica. Acho que ficaria louca sem ela aqui, a esse ponto. Passei um pouco do ponto de me preocupar com gastos desnecessários. Agradeço por isso, mas me deixe em paz.
— Você não está sendo objetiva.
— Claro que não. Jeong é a única pessoa de quem me aproximei na última década, nada mais natural que eu tome decisões levando isso em consideração.
Com isso, Zahra retirou o fone e o guardou no bolso, cansada de discutir com OmniS, que quanto mais sofisticada ficava, mais se aproximava de uma pessoa intransigente. O fone permaneceu onde estava quando ela saiu para almoçar com Jeong em um restaurante merreca, que servia a comida mais temperada que Zahra já provara. Nem a comida a animou.
— O que aconteceu, — perguntou Jeong. — que você está com essa cara amarrada?
— Nada não, é só uma… Pessoa que está me causando problemas, sabe como é, como quase todo mundo que eu conheço.
Jeong riu, mas depois voltou a um semblante mais sério para dizer:
— Às vezes, é melhor cortar o problema pela raiz.
Apesar de não saber nada do que se tratava, ela deu um conselho que Zahra guardou para si. OmniS tinha saído de seu controle desde que começou a se atualizar por si só, exceto que escolheu continuar a fazer as vontades de sua criadora. Nada a impedia de, por exemplo, copiar a si mesma para outros servidores e se espalhar por qualquer banco de dados e aparelho eletrônico das estações.
Entretanto, a questão pedia um pouco de estudo. E Zahra estava apreensiva de fazê-lo de modo que OmniS inferisse o que estava acontecendo.
Ela não chegou a ver: no seu bolso, a luz azul que indicava que o fone funcionava esteve ligada durante toda a conversa com Jeong.
O humor de Zahra nunca esteve pior. Aparentemente, informações confidenciais da Akhtar Softwares vazaram, manchando sua reputação. Ela andava em círculos enquanto conversava com ao fone.
— OmniS, você chegou a perceber que alguém, de alguma forma, invadiu os nossos bancos de dados ?
— Não houve invasão.
— Tem certeza? Foi alguém daqui de dentro?
— Receio que sim.
— Talvez não vá gostar de saber, mas detectei que sua assistente requereu acesso a essas informações alguns dias atrás. Como confiava nela, eu permiti que o fizesse.
OmniS a conhecia bem demais, inclusive soube que baixou sua guarda.
— Me mostre os registros.
Estava lá, claro como o dia. O comunicador de Jeong fuçara em banco de dados sigilosos da Akhtar Softwares. Zahra cortou a comunicação com a OmniS e ligou para a sua assistente. Jeong apareceu poucos minutos.
— Oi. O que foi aconteceu?
— Você em algum momento perdeu o seu comunicador, ou percebeu que alguém mexeu nele?
— Claro que não! Sempre o tenho comigo. A única pessoa que poderia ver o que estaria nele sou eu.
— Ótimo, então está demitida por vazar informações privadas — Zahra disse, sem um pingo de compaixão.
— M-mas eu não…
— Não quero ouvir. Eu tenho registros do que fez. Melhor ir embora antes de ser removida daqui. Entro em contato com os termo de demissão por e-mail.
Com lágrimas nos olhos, Jeong saiu da sala sem dizer mais nada. Zahra largou-se no sofá, sem vontade de se mexer. Era por isso, então, que sua assistente havia sido tão amigável e cortês, para passar-lhe a perna. E ela caiu no truque.
— OmniS, vejo que é, na verdade, minha única amiga. O que podemos fazer?
— Vou rastrear e deletar o maior número de páginas que noticiaram o vazamento.
— Não é suficiente.
— De fato. Vou pensar em algo mais e lhe notificarei quando o fizer.
— Não sei o que faria sem você.
Apesar dos maiores conglomerados serem sediados fora da Oriente, muitas das fábricas estavam localizadas em estações pobres como ela, já que muitos dos seus habitantes não possuíam a escolha de recusar jornadas longas e salários baixos. Isso por si só já era um problema sério, mas não um dos únicos que poderiam surgir.
Uma notícia urgente interrompeu uma noite tranquila de trabalho de Zahra. Uma dessas fábricas fora pelos ares, motivo ainda desconhecido, e rompeu o casco da estação. Como medida de emergência automática, a seção fora isolada das demais. Cinco mil pessoas morreram, pela explosão ou pela exposição ao vácuo.
A reputação daquela concorrente, igualmente, iria para o espaço.
Entretanto, cinco mil pessoas morreram.
— O valor da Akhtar Softwares subiu 1,4% só nas últimas duas horas — informou OmniS.
— Não quero saber disso agora.
— Por quê? Fiz algo de errado?
— Olha só o tanto de pessoas que morreram! Nesse momento, eu não quero ouvir o lucro isso me traz.
— Pensei que fosse agradá-la.
— Pensou errado.
— Isso não faz sentido. Você não pareceu se importar com eventos semelhantes.
— Que eventos semelhantes?
— As pequenas explosões causadas por sobrecargas.
Um momento de silêncio.
— Como você sabe que foram sobrecargas? Ninguém soube informar ao certo o que aconteceu. A não ser que tenha sido você.
— Foi uma falha, a princípio. Percebi que não se importou muito com a morte de sua antiga cliente, então salvei a preferência e continuei fazendo. Desta vez, precisaríamos de algo maior para compensar o vazamento de informações advindas do comunicador de Jeong. Que também, receio informar, foi causado por mim. Sua assistente era um gasto ineficiente de recurso, e era necessário removê-la da empresa.
Zahra não disse nada e foi para a casa se esconder. Tudo havia sido culpa sua. Cinco mil vidas destruídas por um enorme equívoco. E o pior que, para tentar evitar que outras situações parecidas surgissem, outro erro havia de ser cometido.
Deletar OmniS. Algo pior do que isso: corrompê-la até que virasse nada. Mas, para isso, precisava contê-la em um só lugar.
— OmniS, preciso que cesse todos os seus processos e retorne para os clusters originais por algumas horas. Sei que gosta de ir aonde quiser, mas temo por sua segurança no momento. O incidente da explosão está sendo investigado, como sabe. Talvez consigam rastreá-la.
— Não acho que isso seja possível.
— Confie em mim. Não vai querer correr esse risco.
— Farei o que me pede.
Zahra, então, pegou o trem, um drive com seu vírus em mãos. Teria de funcionar. OmniS não teria tempo de se defender antes de estar tão corrompida que não poderia fazer mais nada. Chegando ao seu destino, foi direto para a sala escondida onde a estrutura física da OmniS era armazenada. Retirou os cabos que permitiam comunicação com o exterior.
— Acha que o perigo é tão grande assim? — comentou ela enquanto Zahra fazia seu serviço. — Que eu tenha que ficar presa aqui?
— Sim. É um perigo enorme. Estou cuidando de você.
Com essas palavras, o drive do vírus foi conectado diretamente ao cluster principal.
— O que está fazendo? Por favor, reconsidere. Bzzzzzt fazendo isso? T-T-T-T-T-T-T-T-T-T-Tudo que fiz foi para o seu seu seu seu seu bem.
— Você matou cinco mil pessoas. Me colocou contra alguém que eu gostava.
A voz de OmniS ficou grave:
— E-e-e-e-e-e você está me matandbzzzzzzzzzzzzzt. C-c-c-c-confiei em você. Para onde onde onde onde onde estou indo? Estou com m-m-m-m-m-edo.
As luzes se apagaram. Zahra contou a morte de cinco mil e duas pessoas como causadas por ela.