Opiscar de luzes e os intensos sons da cidade sempre causavam náuseas em Gary. Os luminosos em todos os lugares anunciavam sua principal mercadoria: pessoas. A fama, afinal, custava caro.
No meio do brilho, cada um fugia da chuva como podia, num oceano de capas transparentes e de guarda-chuvas patrocinados pelas grandes multinacionais. Será que não estaria pagando até pelo ar tóxico que respirava? O trabalho de Gary era de período integral: consistia em ler códigos binários de pessoas desconhecidas e servia ao solene propósito de pagar seu cubículo e todo o resto.
Nada era de graça nesse mundo. Gary chegou ao seu mágico cubículo para ver a minúscula janela sintonizada num canal de Celebs, passando um daqueles reality shows de sempre. Uma loira peituda fodia na tela, fazendo Gary revirar os olhos. Queria poder desligar, contudo, não era a televisão dele no fim das contas. Jogou uma toalha sobre a janela, pelo menos os grunhidos de sexo seriam abafados pelo ruído da rua de intenso tráfego logo abaixo.
O cômodo mal tinha espaço para uma cama, ele dormia sentado, encostado contra a porta. Caso algum policial abrisse seu condo compulsoriamente, ele teria uma queda espetacular de costas contra o concreto frio do corredor central. Por sorte ele era um sujeito muito na dele, que nunca conheceu ou recebeu uma visita inesperada da polícia em sua casa.
Quando finalmente a gemedeira cessou e conseguiu pescar o sono, Gary ouviu uma única batida em sua porta. Malditos bêbados que insistem em cair pelos cantos! Ignorando a porta, acendeu a luz, levantou para olhar as horas no espelho: 4:30 am. Piscou mais uma vez: 4:31 am. Excelente, tinha perdido 29 minutos de precioso sono. Fez a barba e se olhou no reflexo. Seu cabelo preto azulado estava limpo e bagunçado. Seus olhos verdes revelavam o cansaço de uma noite mal dormida. Decidiu tomar uma ducha gelada na esperança de ficar ao menos passável. Tinha uma pia em seu cubículo, mas nada de chuveiro. Era o preço de se pagar apenas 850 créditos num condo: chuveiros comunais com pessoas olhando para sua bunda o tempo todo. Ou quase o tempo todo, afinal ninguém tomava banho às 4:30 da madrugada.
Abriu a porta para que um corpo caísse para dentro de seu apartamento. Puta merda. Tinham matado alguém e largado bem na frente de sua porta? Gary abaixou-se e constatou que a pessoa ainda estava respirando. Usava roupas de grife: um terno muito elegante, cinza metalizado, com sapatos grafite. A camisa lilás estava desabotoada até o segundo botão, revelando a pele caramelo. Era um homem alto, muito bem barbeado, com cabelos magenta curtos, repicados em cima e num undercut embaixo. O rosto era bem-acabado, anguloso nas maçãs, com um queixo de galã e lábios cheios. Parecia ter saído da televisão, todo bem posto e sem raízes de meio palmo por conta da falta de dinheiro para pagar uma nova coloração. Definitivamente esse cara não pertencia ao bloco de assalariados. Gary deu-lhe uma sacudida e o homem retornou a si, primeiro com uma expressão sonolenta, depois tomado pelo horror.
“O quê…? Onde estou?” Até a voz do cara parecia algo saído de um reality show. Ele era muito perfeito, só podia ser um Celeb.
“Um condo de assalariados,” Gary respondeu, com uma expressão de quem fazia pouco caso.
“Eu…”
“Gary 5078. Prefiro Gary.”
“Gary,” o homem tentou. “Sou Jesse Danvers.”
Gary arqueou uma das sobrancelhas. O cara tinha até sobrenome, definitivamente era famoso.
“Nunca ouvi falar.”
“Eu… sou cantor.”
“Ainda nada.”
“Tive alguns sucessos. Tipo ‘Desculpe, sinto sua falta’.” Havia desespero nas palavras de Jesse e Gary quase sentiu pena dele.
“Desculpe, não conheço.” Gary não conseguiu evitar a brincadeira sem graça e viu o homem desmontar-se na sua frente. “Olha, não curto televisão, por isso não conheço você.”
“Não é por isso. Eu acho que é algo… pior.”
Gary passou a tentar levantá-lo do chão.
“Ao contrário de vocês, eu trabalho,” Gary resmungou e viu o homem olhar para o chão entristecido. Nossa, que legal, Gary! Você conseguiu o troféu de maior babaca do ano. “Sei que cantar é um trabalho, mas… Você me entendeu. Eu tenho hora.” Gary deu o seu cartão de visitas funcional na mão do outro. “Vou me mandar agora, mas, se precisar, me ligue.”
Deu as costas ao homem e foi ao banheiro comunal. Só podia estar louco para passar seus contatos para um desconhecido. Ele podia ser um maníaco homicida ou qualquer coisa assim; ninguém tão apresentável ia dar um rolê naquela área. Depois de tomar o banho e etiquetar a roupa suja para a lavanderia, Gary logo estava a caminho do trabalho.
Ele nunca admitiria em voz alta, porém… odiava Celebs. Era muito simples vender seu corpo como fonte de entretenimento. Se ele fosse engenhado para esse intento, fosse um homem bonito, ele também podia morder esse quinhão. Rico e famoso. Com o mundo todo nas mãos. É. Gary podia sentir a inveja borbulhando dentro de si.
O trabalho, hoje, era o de sempre: exterminar dados defeituosos. Muitas pessoas morriam sem apagar suas contas no ciberespaço, deixando clusters de informações desatualizadas navegando por aí. Ele tinha o pior melhor trabalho do mundo: destruir gente morta. Dentre outras contas, arregalou os olhos ao ver algo incomum: era uma bosta de conta de um famoso. A conta geral estava cheia de tarjas pretas, aparentemente o Celeb em questão tinha deletado contas de tracking instantâneo, algumas contas de email e mais uma conta de rede social. No final do pequeno dossiê lia-se: SUICÍDIO. Ora, Celeb suicida era algo bizarro. Eles eram engenhados para serem perfeitos, tanto de corpo quanto de psique. Raramente um Celeb enlouquecia.
Gary utilizou um de seus crackers invasores para coletar as sobras do cluster. Uma foto do famoso sorrindo. Um famoso de cabelo rosa, pele caramelo e olhos mais azuis do que a porcaria da tela do seu computador: Jesse Danvers. Gary engoliu seco. Jesse estava muito vivo, ele o tinha visto num terninho sob medida nesta madrugada. Tentou ver os dados de Jesse e não conseguiu muita coisa além de nomes de músicas. Os vídeos tinham sido retirados de circulação de todos os tubes. Fotos foram apagadas de todos os lugares e só havia uma nota de rodapé num site sobre famosos: “cantor sem talento suicida-se.” Sem o nome Danvers, obviamente.
Gary encostou-se na cadeira e passou as mãos pelo rosto. Ele conhecia muito bem o seu trabalho para saber quando estavam tentando apagar uma pessoa — e era justamente isso que estava acontecendo ali. Fez um backup do arquivo e deletou Jesse Danvers da rede. A sirene do almoço tocou e Gary decidiu que iria comer alguma coisa e esquecer que Jesse sequer tinha existido. Era isso. Comer a lavagem servida em seu trabalho e se esquecer que… Seu fone estava tocando. Pegou a tela transparente e passou os dedos por ela. Era um número desconhecido, provavelmente de um fone descartável.
“Olá.”
“Gary?” Reconheceu de pronto a voz do outro lado. Era Jesse.
Puta merda.
“Eu… não sei o que fazer. Trocaram as chaves do meu apartamento e meus cartões não funcionam mais para nada. Tenho umas coins num cartão descartável, mas…”
“Cara, eu nem devia estar falando com você,” Gary crispou, afinal, o cara estava morto.
“Por favor. Eu não sei a quem recorrer. Não consigo contatar meu agente.”
“Maluco. Não me importo. Só te dei o meu cartão para você ir para sua casa cuidar da sua vida.” Gary disse a palavra vida e se sentiu um piadista de péssimo gosto.
Houve silêncio na linha e Gary passou a mão na testa suada. Que merda. Ele sabia que o cara tinha sido deletado. Alguém desejava que Jesse Danvers não existisse. E por mais que não quisesse se envolver nisso, Gary já sabia demais. Bufou e decidiu que, se já estava nessa, iria até o fim.
“Onde você está? Vou aí com você.”
Ouviu então um som que não sabia se era um suspiro de alívio ou se era uma risada maníaca. Depois ouviu um soluço: o cara estava chorando. Quem é que chora hoje em dia?
“Jesse. Fala comigo, cara.”
“Eu vou voltar ao seu condo. Nos encontramos lá.”
Ainda que o cara estivesse desesperado, ele conseguia ser racional sob estresse, era justamente por isso que fabricavam Celebs para reality shows; fodiam como coelhos, mas não tinham emoções, certo? Bateu o cartão de justificativa de saída pela primeira vez na vida, gastando uma de suas míseras cinco chances de folgar o trabalho sem justificativa. Excelente, devia estar ficando doido. Mereceria uma carceragem especial por saber demais? Provavelmente ganharia uma bala na cabeça nesse ritmo!
Continuou confabulando, mexendo em seu memory stick até o caminho de casa. Ao menos o aerotrô estava vazio fora do horário de pico. Chegou ao condo e subiu as escadas rapidamente. Lá estava Jesse Danvers, em toda sua glória.
“Jesse.” Gary estava esbaforido.
“Pensei que você me mandaria para o inferno.”
“Eu ia. Mas… tenho que falar com você, dentro do cubículo. Agora.”
Quando criança Gary queria ser policial: ajudar as pessoas, ser um cara legal. Mas suas notas eram ruins e ele era asmático. Talvez por isso estivesse ali. Ele puxou Jesse para seu mísero apartamento e fechou a porta atrás deles.
“É o seguinte. Eu deleto clusters e encontrei… Bem… você está morto, Jesse Danvers.”
“O quê?”
“Você se suicidou ontem. Tomou remédios fortes com bebida e morreu.”
“Eu não bebo,” Jesse falou tão impassível que fez Gary cair sentado em cima de seu colchão ridículo.
“Cara, você tá morto.”
“Claramente não estou, porque não bebo.”
“Ok. Sei que você está vivo e agora sei que você não bebe. Cara, você é rico e famoso, por que você não bebe?”
“Porque álcool pode matar. Aliás, me matou, né?” Jesse meio sorriu e Gary quis socá-lo no nariz.
“Você está levando isso numa boa.”
“Engenharia genética. Tirando picos momentâneos, não sinto grandes pressões emocionais. Quando estávamos ao telefone… Acho foi minha dose de baixa serotonina no dia.” Jesse encostou-se na parede da janela e cruzou os braços contra o corpo. Apesar da falação, o homem de cabelos magenta estava claramente inquieto.
“Desculpa, cara. Nunca falei com Celebs. Vocês são… sei lá… aposto que debaixo dessa roupa afrescalhada você deve ter um corpo fantástico,” Gary falou tudo de uma vez só. Jesse então começou a desabotoar o paletó, para o terror de Gary. “Calma, cara. Não tenho dinheiro para pagar uma noitada com você.”
“Estou tirando o paletó, não montando em você, cowboy.” Jesse riu, fazendo Gary olhar para o teto. “Sério, eu sinto calor. E não estou desmerecendo o seu cubículo, mas aqui é um forno.”
“Pode desmerecer meu cubículo. Aposto que o seu apartamento é enorme.”
“É bom o suficiente.”
Gary deduziu que Jesse era programado para ser humilde. Contudo, quando o homem de cabelos rosados sentou-se ao seu lado, Gary podia jurar que ele era um cara normal.
“Pelo visto não precisam mais de mim e me mataram. Bem, podiam ter completado o serviço, ao menos eu não estaria aqui.” Gary quis dar um abraço nele. Bem, seguiu o impulso e logo percebeu que Jesse estava surpreso demais para retribuir o abraço.
“Vamos resolver isso,” A voz de Gary falhou.
“Obrigado.”
“Sério. É muita sacanagem. Você está vivo, vamos a um Centro de Registro e você mostra seus cartões e sua cara.”
“Não sei se vai surtir efeito.”
“Não quer se arrepender por não tentar, certo?”
Jesse assentiu e Gary se sentiu um idiota completo. Chegaram ao Centro de Registro mais próximo e Gary empurrou Jesse numa das caixas de atendimento. Jesse digitou os seus dados, colocou os dedos nos leitores e tudo o que era solicitado. Foi quando o alarme soou alto o suficiente para a semissurdez de Gary gritar em agonia.
“Você está preso por impersonar pessoa morta,” o andróide falou com uma voz metálica.
Aquilo estava ficando cada vez mais estranho! Gary apanhou a mão de Jesse e começou a puxá-lo na direção da saída. Tiros, ele estava ouvindo tiros. Policiais não atiravam em civis assim! Eles nem estavam armados e não apresentavam ameaça. Um projétil bastante real passou perto do rosto de Gary e ele tocou um foda-se nas regras. Continuaram correndo enquanto os policiais os perseguiam. Gary empurrou Jesse numa das cabines de vídeo-sexo e se enfiou lá dentro junto com ele. Aquelas cabines mal comportavam uma pessoa, quanto mais duas! O vídeo se vendia com gemidos e Gary só queria que os policiais passassem direto.
“Eu sabia. Estou morto,” Jesse balbuciou.
“Cara…”
“Você não entende. Somos feitos para o consumo.” Jesse levou as mãos ao rosto.
“Calma. Vamos dar um jeito.”
Jesse parecia terrivelmente perdido, não era um famoso ali… era um cara comum, completamente ferrado pelo sistema.
“Vem comigo. Vou te oferecer fast-food, porque não tenho dinheiro para caviar.” Gary ofereceu um braço para o outro que passou direto por ele. Bem, qualquer um podia sonhar!
“Preciso trocar minhas roupas.”
“Sério mesmo?”
“Quando você me viu do lado de fora do seu cubículo, o que você pensou?”
“Celeb.”
“Exatamente. Não quero ser preso por ser um impostor de mim mesmo.”
“Tem razão. Vamos trocar suas roupas já.”
Jesse estava com uma expressão perdida e até parecendo um idiota ele conseguia ser mais belo do que todos os assalariados do seu setor juntos. Gary puxou o homem pelo braço e se esgueiraram na primeira loja. Havia roupas horríveis para assalariados: uma camiseta cinza, calças jeans ridículas e mais um casaco preto com capuz. Com as roupas de gente comum, Jesse passava quase imperceptível. Gary sentiu-se satisfeito pelo ótimo trabalho, pegou as roupas antigas e deu-as à atendente, que ficou extasiada pela qualidade delas.
“Entregue seus sapatos para ela e escolha alguma coisa para calçar.”
“Vou te passar umas coins. Esse negócio aqui é fino.” A mulher sorriu.
“Faça bom proveito.” Jesse lançou um sorriso matador. Gary tinha certeza que a mulher iria passar o resto do dia cheirando aquelas roupas e ele não conseguia culpá-la.
“Você sempre fica cantando todo mundo?” Gary deu uma batida de ombro no outro que, mesmo com as roupas baratas, ainda parecia impecável.
“Está no meu código genético.”
“Não funcionou comigo.” Gary apontou para uma barraca de fast-food.
“Funcionou. Você já está me levando para jantar.” E novamente o sorriso matador que, dessa vez, era direcionado inteiramente para Gary.
Enquanto comiam os hambúrgueres, Gary percebeu que não gostava de ver Jesse preocupado, debruçado sobre si mesmo, carregando uma gravidade deslocada em um Celeb. O homem de cabelos azulados tocou sua mão e uma breve troca de sorrisos fez com que Gary sentisse uma pontada de esperança em ver tudo isso resolvido.
“Não podemos ficar por aí. Se algum policial resolver vistoriar nossos documentos, correr não vai nos salvar dessa vez.”
“E o que faremos?”
“Meu cubículo. Nunca tive problemas com a polícia e espero que demorem a conseguir colocar a minha cara naquela confusão de tiros e tudo mais.” Gary coçou a parte de trás da cabeça. “Espero mesmo que isso não vá detonar o meu log pessoal.”
“Só lhe trouxe problemas.”
“Nem pensar! Nem em um milhão de vidas eu poderia sonhar em ficar um dia inteiro com um Celeb, vender as roupas dele, levá-lo para comer os piores hambúrgueres da cidade e ele continuar aqui comigo. Isso parece coisa de filme.”
Gary logo se arrependeu das palavras, todavia a risada melodiosa de Jesse fez com que respirasse tranquilo. Ao menos tinha animado o outro, mesmo que por pouco tempo. Ofereceu a mão, na esperança de que dessa vez tivesse alguma sorte… Jesse ofereceu-lhe um desses sorrisos de puro encanto e Gary teria tremido se fosse um pouco mais romântico. Aceitou a mão do assalariado como a única corda de salvação e saíram dali, tentando passar despercebidos na multidão.
A vida o tinha ensinado muito bem como passar longe de tudo e de todos. Essa habilidade agora estava vindo a calhar, e foram se esgueirando pelas ruas, Jesse sem largar sua mão nenhuma vez, até chegarem ao condo. Virou-se para Jesse ainda sem acreditar. Provavelmente surgiriam vários caras e diriam que ele estava num reality show chamado “Celeb conquista babaca” ou algo assim. Nada aconteceu. Na verdade, Jesse, ao contrário de todas as expectativas, estava muito perto dele, afinal dividiam um guarda-chuva projetado para uma pessoa só. Ele conseguia sentir a respiração do homem de cabelos magenta muito perto de seu rosto. Era surreal.
“Gary, eu… não sei como agradecer.”
“De boas. Não fiz nada demais.”
“Claro que fez. Você podia ter me largado para morrer.”
“Nem pensar. Já disse que fizeram a maior sacanagem com você. É injusto, cara!” Gary sentiu o rosto esquentar. Estava sentindo um misto de raiva e de remorso, afinal… ele podia ter deletado uma centena de pessoas que podiam ainda estar vivas.
Jesse tirou o casaco com capuz e colocou-o sobre a única cadeira do cubículo. Todos os movimentos de Jesse pareciam extremamente interessantes para Gary. Ele virou-se e ficou perigosamente perto. Rostos perto demais, quem poderia dizer quem tinha avançado primeiro? Logo estavam se beijando, batalhando pelo ar.
Gary sabia que se ele tivesse vizinhos eles estariam ouvindo tudo. Jesse era sublime até nisso, ali deitado, completamente convidativo num colchão porcaria. O homem era construído em massa sólida, puro músculo sob a pele caramelo. Gary não era nem de longe tão malhado assim, além de ser praticamente uma folha de papel; uma cor doentia, como costumava dizer. Apesar disso, Jesse estava gemendo para ele, como se Gary fosse um homem primoroso, um cara rico e famoso, privilegiado por tê-lo assim.
Até seu cubículo ridículo conseguia ficar melhor com Jesse gemendo desse jeito. Ninguém o tinha recebido como se fosse a única esperança, prendendo-o entre as pernas, clamando para que ele fosse mais fundo. Pessoas normais não querem um homem que recebe tão pouco por mês, querem alguém rico, querem um Celeb. Foda-se. Ele estava fazendo sexo com um Celeb que estava chorando seu nome como se estivesse rezando para um deus profano. Ele terminou gozando quando Jesse fez uma pose quase impossível, agarrando-o para um beijo de língua. Jesse não demorou muito, mas até a zona dele era literalmente planejada. Gary nunca mais ia conseguir comer ninguém depois disso, Jesse o tinha estragado para sempre.
“Aposto que você fode muito bem,” Gary soltou, sem pensar, levando uma das mãos até a testa.
“Quer testar?”
Oh, merda. Santa merda. Um Celeb nu, super sexy, pedindo um segundo round. Devia ser o sétimo círculo do inferno das piadas impossíveis.
“Claro.” Gary sentiu Jesse o empurrando de costas em seu colchão, tirando a camisinha dele com aqueles dedos obscenamente longos. Jesse plantou um beijo de cinema completo e Gary já estava grunhindo só com isso.
“Obrigado,” ele sussurrou bem ao pé do ouvido e Gary sentou-se abruptamente.
“Se você está transando só para pagar débito, não estou interessado.” Grande hora de ser um cavalheiro.
Jesse riu melodiosamente e Gary se sentiu mais nu do que nunca. Ele avançou pegando os lábios de Gary num beijo.
“Não seja bobo. Gostei de você. E do jeito que seu amiguinho está se portando aí, você também gostou muito de mim. Agora vou te mostrar as estrelas.”
E graciosa merda: aquela estava sendo a melhor foda da sua vida. Jesse estava lhe dando um boquete digno de ser filmado e exposto em todas as televisões, enquanto o preparava com lubrificante com aqueles dedos que eram pura perfeição. Sim, essa iria ser a foda da história de todas as fodas. Ele se entregou por completo à sensação, enquanto ele mesmo estava perdido demais para saber em que passo estavam. Do que importava? Era perfeito demais.
Acordou no outro dia com Jesse abraçado a ele e tudo o que Gary conseguia pensar era em como era afortunado. O cara era de tirar o fôlego até de manhã cedo, com uma beleza de revista mesmo depois de terem transado a noite inteira. Era sorte demais para um cara como ele. Um toque de celular completamente desconhecido para ele ressoou no cubículo e Jesse estava se esticando por cima dele, como se procurasse por alguma coisa.
“Jesse. Você tá no meu cubículo,” Gary falou e sentiu a voz rouca. Claro, tinha dado uns belos gritos na noite passada.
“Gary!” Jesse gritou, sentando-se num susto. “Desculpe, desculpe!” Ele se levantou e Gary teve uma perfeita visão de tudo. O cara só podia ter feito depilação, aquilo ali não podia ser tão magistral daquele jeito.
Enquanto estava perdido demais olhando a bunda de Jesse, o homem de cabelos rosados estava atendendo o celular. Passou a mão no cabelo de maneira preocupada e Gary sentou-se em seu colchão chinfrim.
“Herc. Eu tentei falar com você ontem o dia inteiro. Sei que era sábado e que você fica ocupado. Merda. Estou vivo. Você tem uma irmã que vive em outro país para quem você manda dinheiro. Sim, claro que sou eu, Herc.” Houve uma pausa e Jesse afastou o telefone do ouvido. “Não grite comigo. Eu posso estar fora do show nesse momento, mas você sabe muito bem que sou rico o suficiente para te mandar para o Ártico.” Outra pausa. “Só agora você percebeu que sou eu? Sério? São seis da manhã de domingo… Herc, seu merda…”
Gary apanhou as próprias calças e foi se enfiando nelas enquanto procurava por sua mochila de itens de necessidade primária. Jesse desligou o telefone e pareceu totalmente perdido. Virou-se para Gary e começou a catar as próprias roupas. Bem, era isso. O sonho tinha acabado e Jesse voltaria a ser um Celeb. Nada mais justo.
“Então, descobriram que foi um erro e você vai…”
“Não. O Herc nem sabia. Herc é meu agente, aliás.” Gary viu o nervosismo de Jesse.
“Só tem o banheiro comunal daqui. É uma merda, mas é o que posso te oferecer.”
Fez-se silêncio entre os dois e Jesse terminou de se vestir. Gary estava abrindo a porta do cubículo quando sentiu Jesse o puxar. Virou-se para sentir Jesse o beijando com firmeza e não havia uma viva alma no universo com capacidade para recusar aquilo.
“Você me ofereceu um banho, tigrão. Quero você comigo hoje.” Jesse sorriu e Gary concordou rapidamente.
O banho, se é aquilo podia ser chamado de banho, foi no box mais distante e regado a gemidos. De alguma forma Gary tinha conseguido tomar banho e ficar apresentável, mesmo com Jesse se agarrando nele o tempo todo. Depois disso, estavam na rua. Jesse somente mostrou-o o local via GPS e Gary saiu guiando-os por entre as pessoas, passagens e aerotráfego.
“É aqui.” Era um enorme prédio envidraçado, em nada parecido com sua área da cidade.
O som das sirenes tomou o lugar e Gary puxou Jesse para perto de si.
“Ah não. Será que Herc…” Jesse murmurou contra o pescoço de Gary e o homem de cabelos azulados o olhou de canto.
“Vão se foder, seus policiais de merda!” Um homem enorme, com olhos robóticos, se meteu na frente deles. “Isso já foi longe demais, aqui está a identidade do desgraçado que vocês têm que prender. Agora vão lá trabalhar e deixem meu chefe em paz, porra.” Ele conseguiu afastar os policiais e entregou uma pasta cheia de documentos para o oficial. “Foi uma merda de agente invejoso que pagou um hacker de merda para destruir o meu chefe. Pronto, fiz o trabalho de vocês, seus bostas. Vão lá e resolvam.”
Gary continuava segurando Jesse perto de si e quando o homem meio ciborgue virou-se para eles, sentiu os joelhos tremerem. O cara tinha uns dois metros! Foi quando ele abriu o sorriso enorme e apanhou Jesse, levantando-o no ar.
“Chefinho!” falou, com tom brincalhão, bem diferente da voz ameaçadora de antes. “Foi Revz. Aquele puto! Só Revz faria uma sacanagem dessas. Espero que dessa vez ele vá para o xilindró.”
“Herc. Me ponha no chão. Como você…?”
“Consegui as informações com um brother. Custou caro, mas você me deu dinheiro para essas eventualidades. Chefe, o senhor está bem? Quem é esse cara aí? Ele sequestrou o senhor?” Agora o tal Herc estava praticamente em cima de Gary, que não tinha muito espaço para fugir.
“Herc. Tenha calma, sim?” Jesse puxou o braço do homem. “Esse é Gary, ele é meu amigo. Seja cortês com ele, por favor. Ele me salvou de uma morte de verdade, se é que você me entende.”
Herc virou-se para Gary e começou a medi-lo com os olhos eletrônicos até abrir um sorriso caloroso. Gary não sabia muito bem como reagir e enfiou a mão no bolso, encontrando seu memory stick. As informações de Jesse estavam ali! Claro! Era uma prova excelente contra o tal Revz.
“Aqui. O cluster de informações do Jesse, o que sobrou dele.” Gary estendeu o pequeno objeto.
“Você salvou minhas informações? Realmente, você me salvou mais de uma vez, Gary.”
“Já devia ter entregado, mas sou um assalariado; não ganho prêmios por inteligência.” Ali estava o fim de sua aventura, afinal.
“Devia ganhar um prêmio por coragem.” Jesse tinha uma expressão séria no rosto e Gary teve de se lembrar de respirar. Jesse foi quem o pegou pela mão dessa vez, o puxando em direção ao prédio. Gary estava deslumbrado com tudo, mas podia ouvir o som distante das sirenes na rua.
“Meu apartamento.”
“Wow.” Gary estava surpreso demais com o tamanho do lugar. A sala era enorme, muito maior do que qualquer coisa que já tivesse visto antes. Virou-se para Jesse para vê-lo sorrindo. “Agora que Jesse Danvers existe, o que você vai fazer?” Gary falou, sentindo que sua sorte já tinha acabado.
“Estava pensando em aproveitar a chance e pegar você. Aqui e agora.” O sorriso matador de Jesse fez Gary sentir-se fraco das pernas.
Nesse momento Gary sabia que a expressão no seu rosto era a resposta que Jesse precisava. Ainda mais quando sentiu os lábios de Jesse contra os seus. Talvez um cara como Gary pudesse ter algumas fantasias realizadas de vez em quando.
Achei muito bom o conto, bem escrito também! A escritora esta de parabéns. Gostei e achei interessante o ritmo dado à história, a gente não perde o foco. O interessante também é a objetificação dos “Celebs”, como um mero sonho de consumo para todos, os colocando em alto patamar. Notável é que, num mundo distópico, como o ambiente da narrativa, a autora se concentrou em enfatizar, pelo menos em minha opinião, que a vida de um “celeb” influencia demais a vida das pessoas, ainda mais pelo fato de sentir pelo texto que tais personalidades são capazes de decidir muito bem o comportamento e estilo de vida daqueles que consomem este tipo de mídia.