Wonder

Quando eu soube que você poderia ser um wonder, fiquei em choque.
Numa ressonância magnética de rotina, constataram uma atividade peculiar no seu cérebro. Fazia pouco mais de três meses que você estava na barriga de sua mãe. Uma segunda avaliação, mais detalhada, confirmou as suspeitas.

“O bebê de vocês de fato é um wonder.” O obstetra de sua mãe, doutor Carvalho, por mais que tentasse se conter, estava em êxtase. Ajudar um wonder a vir ao mundo seria excelente para o seu currículo. Você foi apenas o terceiro ou quarto a cair em suas mãos. Ele quer se especializar na área. Demos um voto de confiança.

Doutor Carvalho continuou:

“Durante a gravidez, o cérebro de qualquer bebê está em pleno desenvolvimento. A diferença dos wonders está nas conexões entre os neurônios. Estas conexões são bem mais desenvolvidas, em níveis acima dos antigos superdotados. Portanto, seu filho ou sua filha precisará de uma série de estímulos específicos para lidar com tanto potencial em sua cabecinha. Vou indicar um ótimo especialista para trabalhar com vocês. E podem me ligar sempre que quiserem, sem restrições de dia ou horário. Eu e minha equipe vamos acompanhar todo o processo, não se preocupem.”

O doutor falava, enquanto mostrava para a gente, numa tela plana atrás da mesa dele, as imagens da ressonância magnética de sua cabeça. Além de uma animação em 3D, pausada de vez em quando, sobre o ciclo de crescimento de um wonder, da gestação aos primeiros anos de vida. Ele apontava tudo com uma caneta de laser vermelho.

Sua mãe e eu falávamos pouco durante a consulta. Estávamos meio perdidos. Pelo menos, eu estava.

Por volta das três da tarde, saímos do consultório. Uma nova consulta estava marcada para a semana seguinte.

Fomos direto para casa, os dois em silêncio. Escutamos no carro algo suave, sonatas para flauta de Bach. Quando a gente chegou, evitamos olhares mais demorados. Sua mãe foi para o quarto tirar um cochilo. Fui até a cozinha atrás de um petisco e uma cerveja gelada.

Fugíamos um do outro. Não queríamos encarar os fatos, ter uma conversa séria tão cedo, refletir sobre o que tínhamos acabado de ouvir.

Antes da novidade bombástica, a gravidez de sua mãe já me confundia, misturava felicidade e medo. Fazia-me imaginar o tipo de pai que eu queria ser: presente, amoroso, justo. Mas também eu duvidava da minha capacidade. Nos últimos anos, fiquei muito tempo fora de casa. Afinal, seu pai é um jornalista freelancer. Viajo para diferentes cidades e países com frequência.

Para muita gente, ter um wonder é como ganhar na loteria. Um prêmio do acaso, da natureza; algo que os especialistas ainda estão longe de entender completamente. Pode significar prestígio, fama, dinheiro, poder. Mas naquela tarde, um pensamento me dominava: quando você começasse a desenvolver suas habilidades, ganharia consciência de como as pessoas à sua volta eram medíocres, de como seu pai era medíocre.

Sua mãe deu um grito.

Fui correndo socorrê-la.

Ela tinha batido o joelho na porta da suíte.

Levei-a de volta para a cama e me deitei também. Enfiei minha mão por dentro de sua blusa. Comecei a acariciar a barriga já saliente.

“Quando é que a gente vai contar às pessoas, aos meus pais, aos seus?” sua mãe perguntou, num tom quase inaudível.

Respirei fundo.

“Acho que a gente não deve dizer nada por enquanto.”

“Não contar a ninguém?” Ela elevou um pouco a voz.

“Isso.”

“Até quando?”

“Não sei.”

Ficamos em silêncio por algum tempo. Então eu disse:

“E como você está, de verdade?”

“Com medo.”

A gente resolveu sair de casa. Sua mãe queria muito isso. Ela queria se distrair, talvez até dar algumas risadas. Principalmente, ela queria deixar o resto da conversa para depois.

Enquanto nos arrumávamos, eu a vi trocar de roupa, pentear o cabelo, passar uma maquiagem leve. Tentei me colocar no lugar dela. Ela achava que existia o que dentro de sua barriga? Uma bênção? Um monstro?

Desculpe se falo nestes termos, mas quero ser o mais sincero possível. Acho que você será o primeiro a entender.

Eu pretendia mimá-la. Tinha que aproveitar meu tempo com ela. Na manhã seguinte, eu viajaria a Buenos Aires. Ficaria lá por três dias e meio, cobrindo um encontro sul-americano de empresários do agronegócio.

O tempo ajudou. O ar estava fresco. O céu limpo.

Andamos de mãos dadas pela orla da Barra, comemos pipoca, apreciamos o pôr do sol.

À noite, jantamos no restaurante preferido de sua mãe. Ela escolheu uma sopa de batata com couve e alho francês.

Depois fomos ao cinema. Assistimos à comédia mais boba em cartaz.

Ela chegou em casa exausta e dormiu o melhor que pôde. Levantou na madrugada, sentindo-se mal, foi ao banheiro.

Desta vez ela não quis minha ajuda. Não insisti.

Ela voltou para a cama e se encolheu debaixo das cobertas, calada.

Não me aproximei, não a abracei.

Eu não conseguia pegar no sono.

Uns vinte, trinta minutos depois, levantei da cama, devagar.

Fiquei de pé olhando para sua mãe, no escuro. Ela não se mexia. Não dava para saber se estava acordada ou dormindo.

Fui para a sala assistir televisão. Não parei de zapear. Perdi a conta de quantas vezes dei uma volta completa na grade de canais. Quando meus olhos pesaram, fui para a cama. Tive quatro ou cinco horas de bom sono.

Às oito da manhã, o despertador tocou. Sua mãe acordou junto comigo, cheia de preguiça.

Eu estava cansado.

“Você vai ficar bem mesmo?” perguntei, ainda na cama, olhando para ela, nossos rostos na horizontal, tão perto um do outro.

“Relaxe. Preciso modificar o projeto do ateliê da tal artista plástica. Vou passar os próximos dias grudada no computador.”

“Tente se divertir. Que horas sua mãe vai chegar?”

“Umas dez.”

“Mas nem uma palavra sobre o bebê ser um wonder.”

Para minha surpresa, sua mãe respondeu com um ok brincalhão.

Dei uma risada.

“O que foi?” ela perguntou, sorrindo.

Beijei-a com gosto, mesmo com a boca amarga da manhã. Ela correspondeu. Fizemos sexo, acelerado, ofegante.

Em seguida, comecei os preparativos para a viagem.

Quando me despedi de sua mãe, ela ainda estava debaixo das cobertas. Beijei-a, disse tchau, ela disse tchau de volta, e saí.

Pude perceber certa angústia no fundo dos seus olhos.

No aeroporto, na sala de espera, mandei uma mensagem. Eu disse que tinha chegado bem. Perguntei como ela estava. Ela demorou um pouco, mas acabou respondendo que ainda estava na cama, tentando pegar no sono. Conversamos por mais alguns minutos. No final, eu disse que a amava. Ela disse que me amava.

Guardei o celular.

Abri o notebook. Comecei a procurar conteúdos sobre o agronegócio sul-americano e suas correlações no cenário mundial: textos, vídeos, cotações, índices, valores. Pesquisei em buscadores específicos para o business, em sites, blogs e portais confiáveis, em jornais e revistas on line. Em vinte minutos, eu estava exausto. Normalmente, só sinto cansaço depois de duas horas de pesquisa.

Não conseguia me concentrar.

Desliguei o notebook e o coloquei de volta na maleta. Passei o resto do tempo jogando Tetris no celular.

Quando me ajeitei na poltrona do avião, no corredor, minha vontade era de dormir um pouco, recuperar parte do sono perdido, para retomar a pesquisa depois, ainda no voo.

Um homem de terno, na poltrona da janela, nem quis papo. Foi logo baixando a mesinha de refeições para apoiar o notebook e colocou os fones de ouvido.

Mandei a última mensagem para sua mãe, dizendo que já estava no avião.

Ela não respondeu.

Depois da decolagem, chequei o celular novamente. Nada. Nenhuma palavra dela.

Cheguei a fechar os olhos. Só que eu estava inquieto. Era uma mistura de cansaço com ansiedade. Não era algo novo. Odeio quando isso acontece. A melhor solução seria um quarto escuro de hotel e uma cama macia. Portanto, teria de esperar até chegar em Buenos Aires.

Ironicamente, quem já estava dormindo, inabalável, era o homem de terno, ao lado.

Eu não estava com saco para continuar a pesquisa. Então abri o notebook para fazer outra coisa.

Digitei a palavra wonder.

A seleção de páginas, vídeos, imagens e áudios foi certeira.

Era a primeira vez que realmente me interessava pelo assunto. Desculpe. Sinceridade, lembra?

Como qualquer pessoa ligada aos acontecimentos mundiais, eu tinha algum conhecimento do que a mídia falava sobre os wonders, desde o surgimento deles.

Para a maioria, eles são celebridades. Por isso, é um baque saber que, em breve, as atenções vão se voltar em sua direção, para sua filha ou filho. A vida da família de um wonder nunca mais é a mesma depois que ele se revela, que o descobrem.

Sentado naquela poltrona, eu fazia minha pesquisa com certa tensão. Eu não deixava transparecer, mas minha cabeça não parava de especular.

Coloquei meus fones.

O primeiro vídeo que assisti foi uma entrevista recente do mais velho wonder que se tem notícia. Hoje em dia, ela é uma jovem sul-coreana de dezessete anos. E também é PhD em bioinformática e alta executiva de uma multinacional de seu país, a Sun Biotech.

Na entrevista a uma repórter da BBC, Ji-Hyun Kim se mostrava uma jovem assustadoramente madura para sua idade. Ela vestia um terno escuro e uma blusa azul com a gola para fora. Seu cabelo era curto e preto.

Enquanto eu a ouvia falar um inglês americano com leve sotaque, abri uma página para saber mais sobre sua vida. Informações que nunca liguei muito. Sempre me atentei mais ao impacto que suas pesquisas e criações provocaram na indústria de alta tecnologia e na economia global.

Kim nasceu em Seul, em 2020, filha única de um executivo da indústria farmacêutica e uma médica.

O pai costumava trabalhar por horas no escritório de casa, à noite e nos finais de semana. Vez ou outra, Kim ficava em seu colo, observando ele lidar, no computador e no smartfone, com números, estatísticas, relatórios de medicamentos em teste e avaliações de mercado nos países onde sua empresa atuava. Conversava com ela, para desabafar, como se Kim pudesse entender o que ele dizia sobre as exigências do cargo.

Uma tarde de domingo, o pai foi para o escritório de casa. No chão, havia uma folha de papel com um desenho colorido. Ele sorriu e pegou a folha. No momento seguinte, ficou perplexo, como ele mesmo revelou depois, tantas vezes. Ele logo percebeu o que era o desenho. Um mapa mundi mal delineado, mas inteligível. Cada país onde sua empresa tinha uma filial estava pintado com uma cor diferente. Os nomes dos países estavam corretos. Alguns escritos em coreano, outros em inglês, em letras vacilantes, grandes e pequenas. E o mais assustador: as porcentagens desenhadas dentro de cada país. Eram projeções muito próximas do que ele mesmo previa para o crescimento desses mercados no ano seguinte. Kim tinha dois anos e oito meses de idade.

O pai já tinha discutido com a esposa sobre a superinteligência de Kim. A mãe notava o mesmo quando as duas brincavam juntas ou a filha mostrava um desenho ou conversavam. Reconheceram que não podiam esperar mais. Depois do desenho do mapa mundi, decidiram procurar ajuda, por meio de amigos e de gente conhecida na área médica.

Uma equipe de pediatras, psicólogos e médicos do Hospital da Universidade Nacional de Seul se interessou pelo caso. Em questão de semanas, os testes e resultados de Kim constataram que sua inteligência era algo inédito para uma criança daquela idade. O entusiasmo foi geral. Autoridades do governo sul-coreano foram comunicadas. A história acabou vazando para toda a internet. A imprensa americana criou o termo wonder e a coisa pegou.

Mesmo com outros exemplos posteriores e excepcionais, ao redor do mundo, a trajetória de Kim ainda impressiona. Até os sete anos, ela encarou um programa pedagógico elaborado para ela, com aulas expositivas, pesquisas em laboratórios, sessões em realidade virtual e elaboração de papers e projetos científicos. Dos sete aos dez, ela cursou a Universidade Nacional de Seul; apesar dos vários convites para frequentar instituições nos EUA. Aos doze, ela se tornou mestra em biotecnologia e começou a prestar consultoria à Sun Biotech. Aos quatorze, tornou-se doutora. Com orientação dos pais, emancipou-se, sendo logo contratada pela Sun Biotech. Aos dezesseis, tornou-se PhD em bioinformática e alta executiva da empresa.

O projeto mais ambicioso em que está envolvida atualmente consiste em desenvolver chips para implantes cerebrais. O objetivo é amenizar ou até mesmo curar os efeitos de doenças como o mal de Parkinson e depressões severas.

Claro que, desde o surgimento de Kim como wonder, polêmicas a seu respeito não deixaram de aparecer. Muitos acusaram seus pais de transformá-la numa aberração a serviço de grandes corporações, uma prisioneira de seu próprio talento. A ONU foi acionada por ONGs sul-coreanas e estrangeiras de direitos humanos. Travou-se por dois anos uma disputa nos tribunais para determinar em que condições Kim seria cuidada e educada. Depois da emancipação de Kim, segundo entendimento da Suprema Corte da Coreia do Sul, a controvérsia foi legalmente encerrada.

Por sua vez, Kim sempre afirmou que os pais a amavam e que lhe ensinaram a ser dona de seu destino.

Eis um trecho, traduzido para o português, da transcrição de uma entrevista dela, aos cinco anos, para a televisão sul-coreana:

“O que você gosta de fazer no seu tempo livre?” o repórter pergunta.

“Andar de bicicleta, jogar videogame, tomar sorvete, viajar,” a entrevistada responde.

“E você brinca com outras crianças?” o repórter pergunta.

“Eu tenho amigos de várias idades, eu aprendo muito com cada um deles,” a entrevistada responde.

“Você é uma criança feliz?” o repórter pergunta.

“Meu caro, não ofenda minha inteligência,” a entrevistada responde.

Ajeito-me na poltrona do avião, volto a colocar em tela cheia o vídeo com a entrevista mais recente para a BBC. Durante todo o tempo, enquanto eu escutava o áudio, nenhum assunto pessoal foi levantado. A repórter se concentrou em saber a opinião da doutora Kim sobre a economia mundial, o futuro da tecnologia e os próximos investimentos da Sun Biotech. Ela falava com muita confiança, como se fosse a presidente da empresa.


Eu estava em Buenos Aires fazia dois dias e meio. O encontro de empresários, que acontecia no bairro nobre de Puerto Madero, se mostrava uma chatice sem fim, como previsto. Durante o dia, era só trabalho. À noite, não tive disposição para rodar pela cidade, sozinho ou na companhia de jornalistas conhecidos. Nunca dormi tanto numa viagem dessas. Nunca consumi tantas garrafinhas de vodca do minibar.

Desde que o avião tinha pousado, falei com sua mãe algumas vezes. Em certos momentos, tive que tomar um banho frio e arrumar um pouco o quarto antes da chamada de vídeo.

Ela sempre parecia bem, dava até algumas risadas. Mas, no final, ao se despedir, deixava aquela impressão de angústia no fundo dos olhos.

Na terceira noite, acordei por volta das oito horas, no susto, esparramado na cama, de roupa e sapato. Resolvi tomar um banho e descer ao restaurante do hotel, para comer um prato quente e tomar uma cerveja.

O hotel era um três estrelas. Ficava na Avenida Corrientes, uma das principais da cidade. No restaurante, mesas e cadeiras ocupavam um grande espaço de um lado, e o bar, com seu largo balcão, um espaço menor, do outro.

O lugar estava movimentado, mas não barulhento. Reconheci, aqui e ali, alguns jornalistas que cobriam o encontro de empresários. Eram de várias nacionalidades, principalmente sul-americanos. Cumprimentei de longe dois ou três. Percebi uma dupla de jornalistas brasileiros no restaurante, mais ao fundo. A mulher me chamou para a mesa deles. Eu conhecia Joana; o cara, apenas de vista.

Eu não estava muito afim de papo, mas logo percebi que aqueles dois não queriam chatear ninguém, apenas ter mais uma companhia para beber e falar mal de gente importante.

Depois de esculhambarmos alguns empresários e políticos presentes no encontro, comentamos sobre uma notícia que tinha saído na semana anterior e continuava rendendo. A desarticulação de uma rede internacional de tráfico, prostituição e pornografia de menores, em vários países, inclusive no Brasil. Pessoas influentes e famosas foram expostas, muitas foram presas. Astros de Hollywood, ministros e diplomatas europeus e japoneses, senadores americanos e bilionários dos cinco continentes. O segundo homem mais rico do país, o empresário Herculano Lopes Machado, foi apontado como um dos cabeças da organização.

“Os advogados dele ainda não conseguiram soltá-lo,” disse o amigo de Joana. Acho que o nome dele era César.

“Fiz algumas perguntas ao desgraçado uma vez. Tão metido a santo,” disse Joana. Em seguida, tomou um gole de uísque.

“Ele nunca me enganou, mas pegar menor…” Nem completei a frase, o estômago forrado embrulhou. Tomei um gole generoso do meu chope.

“Parece que a coisa é obra de wonders,” César soltou e sorriu, satisfeito.

“Que história é essa?” perguntei.

“Uma nova lenda da internet,” Joana respondeu.

“Comentam que os autores da façanha são um grupo de wonders fazendo justiça com as próprias mãos, ou melhor, com os próprios cérebros,” disse César, depois sinalizou para o garçom lhe trazer outro chope.

Eu estava acompanhando o caso com algum interesse. Tudo começara com um material bombástico divulgado de forma anônima na internet. O público em geral não sabia a identidade nem as verdadeiras intenções dos responsáveis. As especulações foram muitas.

Num período de vinte e quatro horas, documentos confidenciais, e-mails, áudios, fotos e vídeos comprometedores foram divulgados, com o devido cuidado em preservar os rostos e nomes das vítimas. O material mais pesado, mais explícito, foi enviado, ninguém sabe como, direto aos órgãos de investigação de cada país onde os crimes foram cometidos, como a Polícia Federal e o FBI. A Interpol também foi acionada. A carniça era tão boa que até os grandes veículos de notícias correram para analisar o material na internet e apurar as informações.

“Esse grupo de wonders tem algum manifesto ou coisa parecida?” perguntei.

“Na verdade, é uma teoria. Ninguém sabe se existem pra valer,” César disse.

“Como assim?”

“São uma nova lenda urbana, uma nova lenda digital,” Joana completou.

“No primeiro dia, o material ficou disponível nas principais redes sociais e páginas de vídeos até ser retirado, poucas horas depois, por violação de conduta. Mas foi o suficiente para tudo ser reproduzido e espelhado pela internet. Além do mais, blogueiros, vlogueiros e jornalistas ao redor do mundo receberam tudo via e-mail, em várias línguas… Gracias.” César foi interrompido pelo garçom com seu novo chope.

“E por que acreditam que wonders estão por trás disso? Poderia ser qualquer um com as devidas habilidades,” questionei.

César tomou um gole de chope.

“Conheço um hacker lá em São Paulo. Foi ele quem me contou sobre a teoria dos wonders. É uma teoria que começou a ganhar força entre hackers quando certos e-mails trocados por funcionários do DPSD, uma agência de inteligência francesa, foram interceptados por um hacker canadense. Os e-mails falavam justamente sobre a bizarrice da criptografia que protegia os IPs das máquinas que enviaram o material aos jornalistas e blogueiros. Era um algoritmo avançado demais. Os agentes franceses chamaram a coisa de a fechadura do diabo.”

“E os americanos? Eles sempre se mentem em tudo,” eu disse.

“A NSA tentou quebrar esse código. Já usaram todo o poder de processamento deles, mas, quando chegam perto, o algoritmo evolui, então os analistas têm de começar do zero. Já repetiram a operação não sei quantas vezes, é o que se sabe.”

“E se tudo for obra de uma só pessoa, um só garoto, ou garota?” Joana especulou.

“Também pensei nisso. Mas meu amigo hacker me falou que, mesmo se tratando de um wonder, seria necessário um esforço coletivo para manter o código evoluindo. E é aí que mora a esperança da NSA. Para manter o algoritmo vivo, é preciso continuar se conectando. Então, em algum momento, o grupo pode cometer um erro. Mas não há nenhuma garantia de que os americanos vão encontrar pistas concretas sobre os mentores. Os wonders podem acessar terminais de bibliotecas públicas usando identidades falsas, roubar notebooks de gente distraída na rua, comprar computadores com números de cartões de créditos alheios. Algumas agências ocidentais pensam até em recrutar wonders como analistas; o que seria bastante polêmico. Os rumores são de que Rússia e Irã já fazem isso.”

Conferi as horas no relógio digital na parede.

“A conversa está boa, mas preciso preparar algumas coisas para amanhã.”

Chamei o garçom, paguei minha parte na conta e me despedi dos meus companheiros de copo.


De volta ao meu quarto, deitado na cama, com as luzes acesas e a televisão ligada, só consegui pensar naqueles wonders. Na possibilidade da existência desse grupo como anjos vingadores de algo realmente puro.

Uma ilusão talvez, um arroubo de ingenuidade.

O que poderia haver de fato por trás de toda essa história?

Naquele momento, minha vontade era de fazer o que sempre faço quando me empolgo: uma pesquisa exaustiva.

Mas, desta vez, eu nem saberia por onde começar.

Então decidi fazer outra coisa: uma chamada de vídeo para sua mãe.

Passava das onze da noite em Buenos Aires. Em Salvador, o horário era o mesmo.

Ela ainda estaria acordada? Estaria em casa?

Eu queria ter a longa conversa que tínhamos adiado sobre você. A conversa que sabíamos ser inevitável quando eu retornasse. Nosso acordo tácito antes de eu partir.

Claro que a melhor maneira de ter essa conversa seria cara a cara, tocando na pele de sua mãe.

Mas comecei a sentir algo que, em questão de minutos, invadiu minha consciência para me atormentar de vez.

Eu precisava me livrar daquilo.

Queria ser sincero com sua mãe. Sincero de verdade. Dizer o que eu realmente pensava. Sobre meu medo de, algum dia, você nos deixar para trás, de esquecer a gente. Sobre a incerteza de quem estávamos colocando no mundo. Uma heroína? Um monstro? Além da convicção do meu amor por você, independente de qualquer coisa. E que tipo de conflitos essa convicção poderia gerar em mim no futuro.

Na hora, pensei: A criança nem mesmo tem um nome. Não sei se será ela ou ele, e já estou colocando tanto peso sobre sua cabeça.

Confesso que a bebida alterou um pouco meu ânimo, deixou-me mais suscetível a exageros, ao drama. Fiquei me perguntando se sua mãe notaria isso, se entenderia, ou se ficaria furiosa. Ela não tinha me dito nada nas ligações anteriores.

Não importava mais. Era melhor eu descobrir logo. Não tomei outro banho. Não lavei o rosto. Deixei o quarto como estava.

Author: Ricardo Santos

Ricardo Santos é um soteropolitano que adora confundir as pessoas com suas mentiras. Seus contos ganharam prêmios e foram publicados em coletâneas e sites. É autor do romance juvenil Um Jardim de Maravilhas e Pesadelos e organizou a coletânea Estranha Bahia.

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