A morte de Afrodite

Humanos são criaturas engraçadas. Conheci um, e é esta a história que escolho contar agora. Muitas de vocês são jovens e nunca viram um humano; poucas têm a curiosidade. Mas não estou aqui para agradar-lhes com recordações amenas. Esta pode ser a minha última chance de dizer coisas nunca antes ditas e todas sabemos que os segredos pesam depois que morremos. Eu não quero afundar no mundo dos mortos.

O humano não era a mais bonita das criaturas, certamente, não a mais graciosa, e também não parecia muito inteligente. Mas havia um poder nele, uma faculdade de não sei quê… que se manifestava nas coisas que fazia ou deixava de fazer. Como quando ele pegava na minha mão só por pegar. Não havia um motivo, nada acontecia depois. Ele pegava e só.

Nem sempre foi assim. Essa é outra particularidade: as coisas cresciam com ele. Como as meninas ficam altas ou a barriga da mulher grávida aumenta, ou o pão no forno. A maneira como ele lidava comigo foi crescendo aos poucos. O que quero dizer é que Paul (era esse o seu nome) mal olhava para mim no começo, mas, após algum tempo, não passava um dia sem me tocar.

Nada parecia fazer sentido com Paul. Certamente, eu também não fazia sentido para ele.

No início, ele passava a noite acordado, segurando uma faca de cozinha. Achei que humanos não dormiam, mas, por que a faca? Paul nunca tentou me atacar, nem cortar um bife, nem nada. Então porque vigiar o talher, tão zeloso, a noite inteira? Além disso, a faca ficava no bolso de sua calça durante o dia. Deixei ele mantê-la, quem sabe o que aquela faca significava para ele.


As meninas mais novas me pediam para vê-lo; não as culpo, crianças são curiosas como gatos e, naquele tempo, fazia vinte anos desde que um humano — um homem — passava por aqui. Eles geralmente chegavam em veículos fálicos, vestidos de branco e vidro, com redomas esféricas sobre a cabeça que, as antigas diziam, simbolizava a oferenda de seus próprios crânios (como em um jantar de domingo encontramos as frutas e os queijos sob redomas). Muitos humanos viajantes tinham as cabeças arrancadas — naquele tempo, a ignorância nos fazia crer que os gritos e braços agitados era a linguagem banal da raça humana. Mas não era. Os gritos dos homens foram ouvidos pelos deuses, que intervieram e nos proibiram de os degolar — sua agitação era, na verdade, puro pavor. Acontece que os homens têm um medo essencial da morte.

Lembro de minha avó dizer: “Foi melhor, porque ninguém gostava de comer carne humana. O gosto lembrava porco, só que ainda mais forte, ofensivo ao paladar. E o pior, a carne do rosto era só um aperitivo. O prato principal eram os miolos servidos em uma sopa de sangue; mesmo grelhados e temperados com pimenta e alho, não tinham gosto. Além de que eram asquerosos e, como dizem: o que os olhos veem a língua prova. Comíamos por cortesia, porque seria falta de educação recusar um presente vindo de tão longe”. Hoje só posso imaginar o terror daqueles homens tentando nos dizer, em sua língua lenta e líquida, para não arrancarmos suas cabeças. “Eles cantavam”, minha vó dizia, “e choravam, uivando ‘noooo’ e outros sons maviosos, e nós achávamos que estavam celebrando o fim de uma jornada”.

Não achei que Paul queria ter a cabeça comida. Ele foi encontrado em uma caverna, de onde não saía nem para comer. Atena nos autorizou a levar comida, e então, a trazê-lo à minha casa, onde as garotinhas faziam fila para entrar.

Lorss, Nla e Mhyga eram três delas que não me esqueço. Elas encontraram Paul sentado no sofá. O homem já havia desistido de tentar se comunicar, por isso não falava mais — o que para mim era uma pena, adorava o som da sua voz e de seu idioma melodioso.

— Ele não se parece nada com Apolo. — Nla disse.

— O rosto dele está cheio de insetos peludos! — Lorss gritou.

— Não, meninas, isso é uma barba.

Como a barba áspera de Paul não parecia nada com as volutas macias de Zeus, toquei em seu rosto para mostrar às meninas:

— Veem? Apenas cabelo. — Elas tocaram também, e o homem se encolheu no sofá. Acho que foi Mhyga quem perguntou:

— Tia, os homens ficam grávidos?

— Ora, acho que não, por quê?

— Achei que ele estivesse grávido.

Logo as meninas estavam me implorando para que tirássemos sua roupa e víssemos sua barriga redonda — e saber o que ele tem entre as pernas.

As meninas só conheciam os retratos dos deuses e de seus inúteis pênis, enrugados e inertes entre os cachos pubianos (e, claro, o grande caralho fecundador de Príapo). Ouvi dizer que os seres humanos ainda copulam, como os deuses faziam, e que é assim que seus bebês nascem.

Puxei minha calça para baixo, para mostrá-lo que faríamos o mesmo com ele. A mimese era o nosso principal meio de comunicação — ele aprendeu que sementes de ptry eram comida depois de me ver mastigá-las e aprendeu a abrir portas e torneiras ao me imitar. Mas quando tirei a calça, ele não reagiu. Seus olhos (tão expressivos) corriam inquietos o meu corpo. Logo, compreendi:

— Ora, meninas, estamos sendo um pouco insensíveis. Nosso corpo também deve ser uma visão estranha. As mulheres humanas são parecidas conosco, mas não sei quão parecidas.

— Atena disse que elas foram criadas à sua semelhança. — disse Nla.

— “Imagem e semelhança” — corrigiu Lorass.

— Sim, mas deve ter algo diferente.

— Ele parece um bobo.

Era verdade, ele parecia um idiota. Vesti-me. Então, puxei a barra de sua camisa, no que ele me impediu bruscamente.

— O que foi? É a sua vez! — Ele afastava meus pulsos e as meninas riam alto porque viram a barriga redonda e peluda de Paul.

— Ele engoliu uma melancia?

— As mulheres humanas também são peludas assim?

— Tia, segura ele que a gente puxa a blusa!

— Não, Nla, ele não quer. Acho que está na hora das próximas. Vão, chamem as outras.

Paul viu mais de vinte crianças naquele dia. Ele as deixou pegar em sua barba, coçar sua cabeça, puxar as orelhas (que de fato pareciam abas pedindo para serem puxadas) e mostrou os dedos dos pés, todos os dez. Também aprendeu palavras feias com as meninas, que repetiu em seu sotaque musical — e o mais horrível palavrão soou como um poema.

Notei que seu riso era parecido com o das garotas… Algo no timbre, ou porque todos os músculos do rosto se contraíam. Algo. Só sei de uma coisa: foi seu riso que me fez perceber que há algo de infantil na humanidade.

Aquela foi a primeira noite em que o vi dormir. A faca caiu de sua mão em algum momento e ele não acordou. Um filete de baba escapava de sua boca e ele nem percebia — “os seres humanos são cheios de fluidos, e sangram como um rio quando abertos”, outra coisa que minha avó costumava dizer.

Paul era mesmo uma criatura molhada. Às vezes a água saía de sua pele, como se existissem mares furiosos dentro dele — e seus mares não cheiravam bem. Um dia, ele estava muito agitado, esfregando o corpo com as mãos, balançando os dedos sobre a cabeça, até que, impaciente, encheu um copo de água e despejou sobre si próprio.

— Você quer que chova? Podemos rezar por chuva. — disse. Mas ele não se ajoelhou, apenas deixou a casa. Como responsável por ele, o segui, o que não pareceu incomodá-lo. Chegamos à beira de um rio onde ele se despiu. Eu assistia de longe, tentando recordar alguma história antiga que ouvi quando criança, sobre uma mulher ver um homem nu nadar, ou o inverso. Paul, de costas, me olhou por sobre o ombro e pulou na água sem se virar.

— Seu pênis deve ser algo muito embaraçoso — gritei para ele, só porque sabia que não iria entender.

Thánata, que passava por ali, me viu e sentou-se ao meu lado, assistindo ao nado do humano. Não era bem um nado: ele mais esfregava o corpo do que mergulhava.

— Deve ser um costume. — Sugeriu Thánata — Você pode perguntar da próxima vez que falar com Atena.

— Eu tenho um livro de perguntas sobre os humanos para Atena. Oh, eles são incompreensíveis!

— Eles são fascinantes. — ela disse olhando para cima.

— Eu diria repulsivos.

— Eu repito: “fascinantes”! E eu gostaria de saber como é ser como eles.

— Um humano?

— Humana! Eles têm dois gêneros. Não soa bonito? Hu-ma-na.

— Mas porque você diz que eles são fascinantes? Eles estão atrás de nós na escala da evolução.

— E sabe quem inventou a escala da evolução? Um humano!

— Jura?

— Sim. Ele se chamava Drwn. Eles também foram os primeiros a venerar nossos deuses.

— O que importa? Eles expulsaram os deuses da Terra, no final.

— Não foi exatamente assim. “Expulsão” não é a palavra certa. Os humanos só… passaram a viver sem os deuses e eles foram embora. Você não vai acreditar na quantidade de nomes que há na Terra para os deuses. Isso confundiu muito as coisas e de repente homens que acreditavam nos mesmos deuses lutavam entre si, porque um não suportava que o outro dissesse o nome “errado”.

— Você está me dizendo que um problema de linguística causou guerras.

— Sim. Humanos podem ser bem teimosos.

Olhei de relance para Paul, que finalmente decidiu nadar.

— Não acredito que Paul seja assim tão… primitivo. Mas, me diga, como os deuses foram deixados de lado pelos humanos, se eles lutavam pelo nome certo?

— Bem, chegou o dia em que todos os deuses viraram um só. Um Deus que devorou todos os outros. No começo, foi apenas mais uma troca de nome, mas no fim várias entidades foram esquecidas. Sabe, são pouquíssimos os humanos que veem deuses, a maioria tinha que acreditar neles. E era a crença que sustentava o culto. Bem, Zeus, Febo Apolo, Palas Atena e todos os outros foram esquecidos e fugiram para cá, nosso pequeno planeta, até então vazio. Poseidon trouxe com ele os mares, Deméter, as sementes e Hefesto forjou os raios. Afrodite trouxe um casal de humanos e fez eles se amarem, porque para os humanos é o amor que perpetua a espécie.

— Sim, eu sei. O amor é quando o homem e a mulher se encaixam.

— Ah, não! O amor é muito mais que isso. Mas não temos mais Afrodite para nos contar sobre o amor. Veja, ele saiu da água. E eu devo ir, até mais!

Já vestido, Paul se aproximou.

— Aquela era a minha amiga Thánata. Ela é professora, é muito inteligente e, acho, gosta bastante de você. Ou do que você é.

Ele sorriu, mostrando os dentes pequenos e amarelos. Era difícil imaginar Paul discutindo com alguém por causa de um nome. Deveria ser melhor, então, que não houvesse comunicação plena entre nós. Sem significados, apenas significantes, melhor assim.

“Eles foram os primeiros a venerar nossos deuses”, Thánata disse. Pelo o que sei, os humanos que chegaram aqui vieram de todos os lugares e tempos da Terra. Teria Paul venerado Apolo, Dionísio e outros? Teria ele lembrança dos homens que os veneraram? Ou, ao menos, escutado sobre esses homens? Paul estava no sofá limpando as unhas com uma agulha quando me sentei ao seu lado. Havia uma estranha familiaridade entre nós, como se ele sempre estivesse ali. O abajur, o tapete, a janela e Paul: um cenário eterno. Quando ele se levantava, deixava uma marca funda onde havia sentado, que era o formato da sua presença. A sua presença era profundidade.

Imaginei um homem e uma mulher dividindo o mesmo teto por anos a fio. Parece filme de ficção científica! O que acontece quando os dois quiserem assistir ao mesmo canal? Ou usar o banheiro? E se um quiser a luz acesa, e o outro, desligada? E como vai ser para conversar? Se eles passam todos os dias juntos, uma hora os assuntos vão acabar.

Apesar de tudo, aquele homem parecia tão familiar à minha sala quanto eu mesma. Enfim, perguntei:

— Você conhece a deusa Afrodite? A-fro-di-te — pronunciei devagar para fazer sumir o sotaque. E ele repetiu perfeitamente, com o rosto estampado de surpresa:

— Afrodite!

— Sim, Paul! Afrodite e Atena, e Hera…

— Atena! Hera! Zeus!

— Isso! Quem mais? Zeus…

— Hades, Hércules!

— Hércu… o que?

— Hércules.

— Quem é Hércules?

— Hércules! — Ele gargalhava. Era como se apenas uma palavra familiar pudesse matar as saudades de casa.

— Desculpa, não sei quem é Hércules — eu insistia em falar, afinal, ele poderia aprender um pouco de nossa língua.

— Hércules, Aquiles, Minotauro — ele disse, e eu já não entendia mais nada.

Fui ao quarto e busquei um retrato de Afrodite. Apontei para a deusa nua e, naquele quadro, loira, embora a tradição seja representá-la de cabelo vermelho. Diz-se que os cabelos de Afrodite eram tão ofuscantes que não havia um consenso sobre sua cor, não da maneira como é sabido que Hera tem cabelos dourados como olhos de leoa. Mas Hera está viva para exibir sua cabeleira divina a quem quiser ver, enquanto Afrodite morreu há centenas de anos. Só os livros e as pinturas podem sugerir sua aparência. De qualquer modo, ela sempre me pareceu a deusa mais bela, se tivesse sido mesmo como os retratos mostram.

— Esta é Afrodite — apontei.

Ele sorriu e puxou o caderno em que às vezes desenhava o que queria, como uma maçã ou um cobertor. Dessa vez, me desenhou um símbolo, talvez um caractere de seu alfabeto, uma letra ao mesmo tempo redonda e pontuda. Tinha duas corcundas, a letra, o que parecia um par de seios ou de nádegas, ou apenas algo confortável para apoiar a cabeça. A parte inferior era um ângulo afiado, parecia um espinho ou um punhal para furar olhos.

Ele apontou para o desenho, depois para Afrodite e então para o próprio peito, no lado esquerdo.

— Não entendi.

Paul pegou minha mão e a pousou sobre o peito. Senti as batidas de seu coração.

— Coração?

— Coração — ele repetiu e apontou para o desenho e para o quadro mais uma vez. Então, pousou sua mão em meu peito e sentiu meu coração.

O que unia a deusa Afrodite ao bombeamento de sangue?

Paul trocou a mão pelo ouvido e apoiou a cabeça sobre mim, escutando o sangue correr para dentro e fora do meu coração, dentro e fora, dentro, fora… como uma canção de ninar, até adormecer. Deitado em mim. Ter uma pessoa em cima de você parece ser a coisa mais incômoda do mundo. Mas, não. Bem… como o sofá e o tapete, a janela, a grama lá fora, o ferrão da abelha e as luas no céu, aquilo só pareceu normal. Cada coisa em seu lugar. Podem me chamar de doida, mas, pelo menos naquele momento, o lugar de Paul era em cima de mim.


Depois daquele dia, nossa comunicação se tornou mais tátil. Paul me fazia rir e às vezes machucava quando me apertava contra ele, tentando abrir os poros de minha pele e entrar. Procurava algo em mim: verificava o espaço entre meus dedos, me cheirava a nuca, inspecionava minhas sobrancelhas, pálpebras e dentro da minha boca, contava minhas costelas, cutucava o meu umbigo e principalmente examinava, como uma médica, o espaço entre minhas pernas.

— Será que ele acha que eu sou a porta de volta para casa? — Perguntei para Atena, quando a deusa finalmente me recebeu em seu templo.

— Não, ele é homem, e homens procuram fendas por onde entrar nas mulheres, mas não é para voltar para casa. Às vezes, é para fugir.

— Não entendo.

— Você sabe, jovem, que os humanos são divididos em homens e mulheres, à semelhança de Zeus e Hera. O Pai está cansado, e a velha ressentida, e todos desistiram das vontades luxuriosas desde que Afrodite se foi. Melhor assim. Tanto a morte da deusa do Amor mudou nosso mundo que não há mais divisão entre sexos — há apenas vocês, filhas, que bebem o esperma do velho Príapo quando chega a hora, e concebem as filhas pelo umbigo. Nunca deixe o humano perceber que seu umbigo não tem fundo.

— Se me permite a pergunta, por quê?

— Não, eu não permito a pergunta. Gentil Ágatha, o rio corre e a água que passa nunca é a mesma. Nosso planeta é um lugar de paz e sabedoria, diferente da negra Terra. Eu sou a deusa dos deuses. Sou sua deusa. Acredite em mim: suas perguntas são tolas e esse diálogo, um desperdício.

— Perdão.

— Responda, vocês já descobriram como ele veio?

— Não.

— Então fica mais difícil mandá-lo embora. Você pode me apontar qualquer irmã para recebê-lo, este fardo está levando tempo demais para você.

— Ele não me incomoda.

— Algo mais?

Eu tinha muitas perguntas, mas todas deviam ser tolas.

— Não, toda-poderosa.

Ela sumiu no espaço das nuvens tão rapidamente quanto apareceu. Rumei para casa e encontrei Thánata no caminho. Não pude me segurar e perguntei aquilo sobre o que pensava insistentemente desde o fechar dos olhos de Palas.

— A Terra não é azul?

— O quê?

— Ouvi dizer, em algum lugar.

— Eu realmente não sei.

Mas você sabe tanto.

— Thánata, trouxe algo para você. — Puxei o pedaço de papel do bolso. — Você sabe o que é isso?

— Ah, sim! É o símbolo do amor para os terráqueos. Existem mais de seiscentos alfabetos na Terra, mas esse símbolo é reconhecido em todo o planeta. Alguns estudiosos afirmam que é um coração, o que concorda com todos os poemas e cartas que relacionam coração ao amor.

— Como?

— Acredita-se que, para os homens, o amor vem do coração. Você está bem?

Eu não sabia responder àquela simples pergunta. De repente, senti náuseas e pedi para pararmos de andar.

— Foi Paul quem desenhou isso, não foi? Eu estava mesmo querendo conversar sobre ele.

— Pode dizer.

Thánata era professora de História na Academia. Em sua casa havia livros com as mais maravilhosas histórias sobre a vida terrena dos deuses, histórias esquecidas em que as divindades habitavam um monte chamado Olimpo. Como tudo indica, ela moveu seu objeto de estudo do ídolo para o idólatra.

— Eu te peço para que o deixe comigo. Tenho um colóquio com Palas esta semana, e, se ela permitir, vou estudar o engenhoso coração humano.

— Como? Vai abrir Paul e arrancar o coração dele?

— Não. Não logo… preciso do coração funcionando para alguns experimentos. Mas depois, talvez, sim. Sim, de fato vou precisar estudar seu coração de perto.

— Mas, pelo o que eu entendi, a morte é um horror para os humanos. Ele não vai querer.

— Oh, não seja tola! — Por que eu estava sendo chamada de tola pela segunda vez naquele dia? — Esse homem já viveu demais e nem consegue voltar para casa. E o que é uma morte em nome do Conhecimento?

— Eu só acho que… vamos, vamos até minha casa.

Paul me esperava no sofá. Ele era repetitivo com as coisas que fazia. Geralmente, quando eu chegava, me recebia com um abraço e um encostar de lábios. Eu me acostumei com seu jeito, mas sabia que Thánata iria estranhar. Sabia que ela se espantaria quando o visse em minha boca, mas não esperava por um grito.

— O que há?

— Isso foi um beijo!

— O que foi um beijo?

— Isso — ela mesma encostou os lábios nos meus.

— O que isso significa?

— Especulações. Ágata, você precisa me deixar ficar com ele.

— Ah, claro. Tudo em nome do conhecimento. — Não queria ter dito isso. — Escuta, você vai embora — disse a Paul.

— Você sabe que ele não nos entende, certo? — Thánata falou, ríspida.

— Às vezes… ele entende alguma coisa.

Como já estava exausta de agir como uma idiota, apressei a saída dos dois e só percebi o que estava fazendo quando fechei a porta. Thánata guiou Paul até o lado de fora enquanto ele olhava para dentro, como se me esperasse sair também. A porta foi fechada, cortando o olhar rígido do humano, um olhar comunicativo, desesperado. Esperando que o meu respondesse. Mas meus olhos estavam ocos e mortos. Estou morta, e minha carne ainda não apodreceu. Talvez os olhos furados fossem os meus.


Thánata fez os experimentos de que falou e, quando se cansou, abriu a caixa torácica de Paul, removeu seu coração e o cortou em quatro partes, procurando a substância chamada amor — mas não da mesma forma que ele procurou em mim. Quando terminou, escreveu um trabalho (que, mais tarde, foi premiado) e costurou o coração inteiro de volta.

O coração, remendado como uma boneca velha, me foi enviado. Aquele pedaço de carne podre não se parecia nada com o desenho que ele fez. Não se parecia com um beijo de cisnes ou uma folha de hera. Não se parecia com ele por fora, o som da sua voz ou o formato da sua boca. Era um troço alienígena qualquer, um lixo orgânico, uma sobra de laboratório.

Thánata zombava de mim: aquele não era o seu coração.

Joguei no fogo. Não na pira de Héstia, mas em uma fogueira qualquer que aquecia as crianças no pátio.

O desenho do coração ficou como a lembrança verdadeira. Posso estar velha e muitas acham que sou maluca por nunca ter bebido o leite de Príapo; nunca ter me dedicado a cuidar de uma menina, como minha mãe cuidou de mim e minha avó cuidou de minha mãe. Esse ciclo, a que chamam de “ordem natural da vida”, me parece uma espiral inútil e eu não quero ficar tonta. Para mim, a vida é uma dádiva que os deuses nos deram, e a inteligência, a ferramenta para orientá-la. Eu escolhi não beber de Príapo. Afinal, já havia bebido de Paul.

Author: Maira M. Moura

Maira M. Moura, ou Maira Moura, é carioca da zona oeste. Tem um livro de contos publicado em 2015, "O jardim animado", pela editora Multifoco. Contribui, sempre com contos, para periódicos de literatura, como a revista Subversa, Diversos Afins e Raimundo, além de participar de eventos. Estudou Letras na UFRJ, onde se graduou em Literaturas de língua portuguesa. Trabalha como tradutora e professora.

8 thoughts on “A morte de Afrodite

  1. Gostei de como o Amor é tratado, na lógica da semiótica do que significa o Amor e do que ele realmente é enquanto significante. Muito em harmonia com a tendência moderna do “mostre, não conte”, o que, aliás, me proporcionou uma visão nova do tema.

    O conto inicia várias abordagens interessantes e confesso ter ficado com vontade de ver um maior aprofundamento nesses temas, como: 1) a existência de uma sociedade sem o Amor grego, que é Afrodite, mas também deriva de Eros, uma contraparte de Caos. Fiquei curioso sobre as motivações de uma sociedade sem Amor, o que lhe faz existir? O que germina a esperança?; 2) como funciona o panteão pela metade dos deuses, como isso influencia a sociedade… existe um bom vislumbre na ausência do Hades e a falta de medo da morte, mas é uma proposta muito ampla e interessante; 3) o próprio movimento científico dessa espécie é curioso. O Desejo de compreender o amor é muito semelhante aos humanos… Sei que o formato da história não permite uma análise detida de cada aspecto, mas são questionamentos que me peguei fazendo durante a leitura.

    Parabéns pelo trabalho!

    1. Obrigada pelo comentário. Bem lembrado, sobre Eros.
      Exatamente, o formato conto tem o foco num aspecto da história, e fico animada em saber que aquilo que deixou de ser escrito tenha tocado a curiosidade, ou mesmo a imaginação, de um leitor.

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