A Noiva Diminuta

Ele encontrou a garota quando retornava para casa. Jean-Philippe puxava a mula com uma corda gasta, deixando-a andar em seu passo lento, cansado da pequena viagem; chovia uma chuva fina e incômoda, que fazia com que Jean-Philippe sentisse o frio entrar por baixo de sua carne. Ele pensava nos legumes que não conseguira vender no mercado, porque a safra não fora boa, e que agora apodreciam nas sacolas que levava para casa. Foi no meio da estrada, agora feita de lama que criava crostas em suas botas, que encontrou a flor. Ele sabia que não era época de floração. Era época de céus nublados e de solo infértil. Mas a flor estava lá, solitária, no meio de um arbusto sem cor. Era uma peônia. A mula de Jean-Philippe reclamou quando ele se aproximou do arbusto, e o rapaz se lembrou do que sua mãe dizia, do que escutara da própria avó: animais reconhecem magia.

A flor emanava um cintilar dourado. Havia calor nela. Jean-Philippe largou a corda pela qual puxava a mula e devagar se aproximou do arbusto. Ele tomou o botão entre suas mãos, com delicadeza o bastante para não soltá-la do caule. A flor desabrochou em resposta a seu toque. Dentro dela, adormecida em seu miolo, estava a garota. Ela bocejou. Revirou-se por alguns momentos, e então despertou. Ela percebeu Jean-Philippe, suas mãos gigantes a envolver a flor em que ela dormira, e soltou um gritinho. Jean-Philippe gritou em retorno, e a flor balançou em suas mãos.

— Não faça isso — pediu a menina, segurando-se nas pétalas, parecendo tonta.

— Desculpe — disse Jean-Philippe.

A garota mal tinha o tamanho do dedo indicador de Jean-Philippe. Seus cabelos eram longos e dourados, chegavam até seus pequenos pés. Ela usava apenas uma camisola.

— Está frio — comentou a garota.

— Eu abri a flor. Desculpe. Eu não sabia o que estava fazendo.

— Bem, aconteceria algum dia, cedo ou tarde. É você?

— Eu? — Fez Jean-Philippe. — Eu quem?

— Aquele que veio me levar. Era para eu dormir até que viessem me buscar. Que ele me buscasse.

Jean-Philippe ficou quieto.

— É você ou não? — A garota perguntou.

— Eu não sei.

Ela parecia impaciente:

— Está chovendo, de qualquer jeito. Pode me levar para um lugar seco?

Jean-Philippe considerou. Não conseguia imaginar uma garota tão pequena no lombo de sua mula, e imaginava que a mula tampouco aceitaria prestar o favor, desconfiada que estava. Ele tateou suas roupas.

— Você pode vir no meu bolso — disse. — Se não se incomodar.

A pequena garota analisou Jean-Philippe. Ela bufou.

— Eu imagino que não seja tão ruim.

Jean-Philippe ofereceu sua mão. A garota segurou-se em seu polegar com força, tremendo um pouco, e Jean-Philippe cuidadosamente depositou-a em um dos bolsos de seu casaco puído.

— Aqui cheira a animais — a garota disse, colocando a cabeça para fora.

— Eu sou um fazendeiro — Jean-Philippe disse, à guisa de desculpa.

Ele encarou a peônia em que encontrara a menina. A flor murchara. Seu brilho dourado parecia ter sido transferido para a garota, que brilhava dentro de seu bolso como um vaga-lume.


Ele a colocou sobre a mesa de madeira gasta. A mãe de Jean-Philippe observou a menina por alguns instantes, sua expressão indecifrável. Ela alisou a própria têmpora brevemente, expirou de leve, e disse:

— Bem, isso é inesperado.

— Bastante — disse a garota.

— Você tem um nome? — Perguntou a mãe.

A garota pareceu levar alguns segundos para pensar, como se procurasse uma memória perdida, mas balançou a cabeça. Ela encarou Jean-Philippe:

— Como se chama a flor em que você me encontrou?

— Uma peônia — disse o rapaz. — A mais bonita que já vi.

— Peônia…

— Pivoine pode ser seu nome — Jean-Philippe sugeriu.

— Pivoine é um lindo nome — a mãe concordou.

A garota fez uma careta séria.

— Pivoine. Pivoine… — ela repetiu.

Sua expressão mudou; ela pareceu alegre.

— Eu gosto — disse.


Ela dormia em uma pequena caixa de madeira, no parapeito da janela do quarto de Jean-Philippe. A caixa era forrada com algumas das penas dos gansos que eles mantinham, e com pedaços de tecido que a mãe de Jean-Philippe costurara. Eles poliram um minúsculo osso de galinha para que ela penteasse seus cabelos longos, aqueles que tinham um fulgor tão fantástico; Jean-Philippe deixava uma pequena vela acesa para ela, porque ela reclamava do frio, mas o rapaz suspeitava de que o que Pivoine realmente tinha era medo do escuro. Ele costumava vê-la se revirar dentro da caixa, erguer a cabeça para ter certeza de que ele estava em sua cama, pronto para defendê-la. Durante os dias, ela recolhia a cera derretida da vela e fazia pequenos objetos para si mesma: xícaras e minúsculos pratos. Bonecas, às quais ela dava olhos de pequenas sementes de frutas silvestres. Ela tinha habilidade nata para aquilo, algo que não sabia de onde vinha, porque não se lembrava de nada de sua vida antes de ser despertada da flor.

A garota e a mãe de Jean-Philippe tomavam chá juntas, quando havia chá. A mãe colocava uma gota na xícara de cera de vela de Pivoine, que saboreava a bebida com imenso prazer. Elas comiam biscoitos frescos, o pouco que a mãe de Jean-Philippe conseguia fazer. E, enquanto isso, Jean-Philippe laborava no pequeno pedaço de chão em que plantavam. Um dia, observando-o da janela, Pivonie perguntou:

— Por que as plantas parecem tão tristes?

Jean-Philippe parou com a enxada. Limpou a testa suada com a mão.

— Tristes? — Indagou. — Plantas parecem tristes?

— As suas parecem.

Jean-Philippe encarou brevemente o sol acima de sua cabeça, depois as plantas que pareciam crescer sem vontade, que cercavam seus pés.

— O solo não é muito bom — disse ele. — Nunca foi, mas era o que meu pai conseguia manter.

Pivoine fez um som, como um pequeno estalar de língua, e pediu para que Jean-Philippe a buscasse no parapeito da janela. Ele obedeceu, e depositou-a no chão da horta. Pivoine deu alguns passos tímidos, tocou algumas das folhas, então começou a rir e a dançar. Quando seus pés diminutos tocavam a terra, era como se fagulhas escapassem deles; quando seus cabelos giravam, era como se o próprio ouro estivesse ali, e ela cintilava enquanto dançava entre os pés de verdura e de legumes, cintilava como a peônia da qual nascera; as plantas pareciam querer dançar com ela, movendo-se como se pelo vento, embora não soprasse nenhum, e elas ficavam mais verdes e mais fortes a cada volta de Pivoine.

Foi a melhor safra que tiveram. Jean-Philippe, pela primeira vez, conseguiu vender tudo que levara para o mercado da cidade. Ele também levara Pivoine, que ficara apoiada em seu bolso, ditando os preços com a segurança de quem já fizera aquilo muitas vezes. A pequena barraca de Jean-Philippe não tardou a ser cercada por gente que queria pelo menos um relance de sua pequena ajudante. Jean-Philippe retornou para casa com dinheiro, leite, farinha e carne. Ele e a mãe fizeram um pequeno banquete, e brindaram à Pivoine, que permanecia sentada no meio da mesa, o rosto rubro de satisfação.

A única roupa de Pivoine era sua camisola branca, mas os dias haviam deixado-a cinza e um tanto gasta nas pontas.

As aranhas chegaram sem aviso, descendo lentamente de seus fios de teia, e quando Jean-Philippe as viu, chegando pela janela, seu primeiro ato foi o de pegar um sapato para esmagá-las, com medo de que machucassem a garota.

— Não — disse Pivoine. — Elas estão aqui para ajudar.

Jean-Philippe hesitou. As aranhas pararam no meio do ar, penduradas nas teias, e quase pareciam ofendidas com o que o rapaz presumira. Mas Pivoine chamou-as, e as aranhas desceram até ela. Elas despiram Pivoine de sua camisola, com patas finas e agéis (e Jean-Philippe ficou de costas, cobrindo os olhos), e teceram para ela um vestido tão bonito que parecia ser feito da mais pura seda, fios intrincados como os dos bordados que a mãe de Jean-Philippe fazia.

— É confortável? — Perguntou ele, uma vez que as aranhas partiram.

— É um pouco grudento, mas vai me servir — respondeu a garota.

Para o inverno, a mãe de Jean-Philippe fez uma pequena capa de crochê para Pivoine. Ela dormia aconchegadamente com ela, em sua caixa de penas e tecidos.


A garota trouxera sol e fartura para eles. Ela também trouxera os pássaros, lindos pássaros coloridos que apareciam para cantar pela casa, e que a mãe de Jean-Philippe apreciava com o coração leve e satisfeito. Ela trouxera sorte, como um amuleto, mas restavam as perguntas sem resposta. A mãe de Jean-Philippe serviu bolo de limão, certa tarde. As duas sentaram; Pivoine sobre a mesa, pernas cruzadas..

— Você não se lembra de nada de antes? Nem um pouco? — A mãe de Jean-Philippe perguntara.

Pivoine balançara a cabeça.

— A flor me gestou; eu tinha um destino.

— Um destino?

— Aquele que me acordasse me contaria.

A mãe franziu seu cenho precocemente enrugado.

— Bem, e Jean-Philippe já contou?

— Não. Eu não acho que ele saiba. Eu não acho que era ele. Foi um acidente.

— E você vai ter que pagar algum preço por isso?

Mas Pivoine deu de ombros. Comeu suas migalhas de bolo silenciosamente.

— Há quanto tempo o pai de Jean-Philippe se foi? — Ela perguntou, do nada.

A mãe precisou pensar por alguns instantes.

— Cinco anos — disse.

— Ele não fala a respeito.

— E não falaria. Entre ele e o pai, a relação era complicada.

— Você sente falta?

— Algumas vezes. Outras vezes, não.

A mãe de Jean-Philippe suspirou.

— Eu me casei por obrigação. Meus pais achavam que o pai de Jean-Philippe era um homem próspero. Próspero para os nossos padrões. Eles achavam que ele me daria um teto e sustento, e que isso os livraria de continuar a me dar o mesmo. Meus pais diziam que não haviam tido sorte. Só tiveram filhas.

— Você tem irmãs? — Perguntou Pivoine.

— Eu tive. As duas morreram novas.

— Sinto muito.

A mãe de Jean-Philippe ofereceu um sorriso pequeno.

— Foi há muito tempo. Antes da morte do meu marido. Quando ele faleceu, eu fiquei triste. Você se acostuma com a companhia das pessoas. Mas nunca houve amor. A única coisa boa que ele me deu foi Jean-Philippe. Eles eram tão diferentes, sol e lua. E agora eu só tenho o sol, e fico grata por isso. Não sei o que seria da minha vida sem ele.

Pivoine aquiesceu.

— Aquele por quem você espera… — disse a mãe de Jean-Philippe. — Quando ele aparecer, se aparecer, não deixe que decida seu destino, Pivoine. Não deixe que ninguém decida, além de você. Não há nada pior do que ser uma peça nas mãos de alguém.


Ele escutou os chamados abafados. Estavam vindo de algum lugar do quarto.

— Jean-Philippe, socorro.

Era Pivoine. Jean-Philippe procurou com cuidado, com medo de esmagá-la acidentalmente. Ele viu algo mover-se debaixo de uma de suas camisas, jogada no chão. Era pouco mais que uma protuberância, e movia-se de um lado para o outro, apavorada.

— Jean-Philippe — ela gritava.

Jean-Philippe ergueu a camisa. Lá estava Pivoine, arfando, bochechas queimando. Ela segurava uma das agulhas que a mãe de Jean-Philippe usava.

— O que está fazendo aí? — Perguntou Jean-Philippe, agachando-se.

— Queria costurar suas roupas — disse Pivoine. — Estão sempre com algum rasgo. Mas me perdi.

Jean-Philippe riu.

— Não precisa fazer isso. Eu sei costurar — disse. — Minha mãe me ensinou.

— Então por que não costura?

Era uma boa pergunta.

— Nunca encontro tempo — Jean-Philippe respondeu com honestidade.

— Bem — disse Pivoine. — A agulha é grande demais, de qualquer jeito. E o rolo de linha é muito pesado para ser puxado por aí.

Jean-Philippe observou a agulha que ela segurava.

— Parece uma espada, nas suas mãos.

— Parece, não é?

E Pivoine fingiu espetar algo invisível. Ela lutou com seus inimigos imaginários, até a agulha fincar no chão, e Pivoine precisar fazer força para arrancá-la de lá.

— Boa espada — ela decidiu. — Você sabe lutar?

— Eu? Não. Nunca segurei uma espada na vida. Só entendo de pás e de enxadas.

Ele pegou a camisa deixada no chão, dobrou-a com cuidado.

— Do outro lado do mar, na Inglaterra, eles falam de uma espada mágica, que o Rei Arthur tirou de uma pedra, e era a espada mais poderosa do mundo; ninguém conseguiria derrotá-lo em batalha enquanto ele a tivesse consigo — Jean-Philippe contou.

— Então ele nunca morreu?

— Dizem que ele está dormindo. Debaixo de uma montanha, ou em uma ilha. Ou as duas coisas, uma montanha em uma ilha. Não sei muito bem. Mas dizem que ele vai retornar, quando for necessário, e que a espada mágica vai retornar com ele.

Ela pediu para que Jean-Philippe contasse mais histórias que soubesse, e ele contou; sobre o cavaleiro Lancelot e seu amor proibido pela rainha Guinevere. Sobre Sir Galehalt, o mais puro dos cavaleiros, aquele que encontrara o Graal; sobre a mesa redonda que os homens do Rei Arthur dividiam, porque uma mesa redonda fazia de todos iguais. Pivoine adormeceu escutando as histórias, a agulha-espada descansando a seu lado, na caixa de retalhos.


Eles chegaram na primeira noite de lua cheia do mês. Jean-Philippe estava adormecido, mas a canção e a luz acordaram-no. Eles voavam pela noite, iluminados, e aterrissaram do lado de fora do parapeito da janela. Bateram no vidro, e a batida despertou Pivoine também. Eram muitos: pelo menos quarenta, todos minúsculos como Pivoine, mas vestidos como nobres, roupas com fios de ouro e veludo macio e pequenas pedras que brilhavam. Eles tinham asas como as de borboletas, e rostos que eram de um branco pálido, de um escuro como céu da madrugada, de um tom de canela, de uma cor do verde do musgo. Eles bateram no vidro, quase educadamente, e Jean-Philippe e Pivoine encararam-se brevemente antes dele se levantar e ir abrir a janela. Eles traziam potes minúsculos, de onde brilhava luz forte, mas nada como fogo. As mulheres usavam saias feitas de flores, usavam joias minúsculas de prata. Eles todos consideravam Jean-Philippe em meio a certo desgosto, até que um dos visitantes deu um passo à frente. Seus cabelos eram pálidos e seus olhos escuros. Ele usava um manto carmim, roupas de veludo azul e, no topo da cabeça, uma coroa feita de pequenos espinhos.

— Boa noite — disse ele, sem muito sentimento. — Estamos aqui para buscar minha noiva.

— Sua noiva? — Fez Jean-Philippe.

— Sim, ela — e o pequeno homem com a coroa apontou para Pivoine, dentro de sua caixa. — Eu deveria ter acordado-a de seu sono, mas ela foi acordada antes.

— Oh — fez Jean-Philippe. — Desculpe. Foi um acidente.

— Humano estúpido. Nós sabemos — disse o homenzinho. — Viemos corrigir o erro.

Em silêncio, Jean-Philippe observou a pequena procissão que dominava o parapeito.

— Minha corte — disse o homenzinho, como se lesse seus pensamentos. — Eu sou um rei dos pixies. Você sabe o que isso quer dizer?

Mas Jean-Philippe balançou a cabeça. O rei deu uma risadinha pretensiosa.

— Claro que não sabe. Pobre fazendeiro burro.

— Não fale assim dele — Pivoine ergueu a voz.

Aquilo chamou a atenção do rei dos pixies.

— Venha, minha noiva — disse ele. — Já estamos muito atrasados para o casamento.

— Meu nome é Pivoine — ela retrucou. — E não noiva.

— Chame-se do que quiser — disse o rei, com um suspiro. — Mas sou seu noivo; aquele que chegou para despertá-la.

— Já estou desperta. E não quero ir com você.

O rei pareceu chocado. Houve um murmurinho entre seus cortesãos, e logo o rosto do homenzinho ficou rubro, como o de Pivoine costumava ficar.

— Não cabe a você decidir. Já estava decidido antes de você ou eu nascermos.

— Eu estou acordada — disse Pivoine. — E eu decido.

— Mas eu posso levá-la para casa. Este não é seu lugar.

— É meu lugar já faz algum tempo, e eu gosto daqui.

— Por quê? Por causa desse humano limitado? — Perguntou o rei, cintilando mais do que todos, como uma chama furiosa.

— Porque eu não quero — disse Pivoine, e desceu da caixa. Ela empunhava sua agulha.

— Isso é ridículo — disse o rei. — Não vou abrir mão da minha noiva.

Ele encarou Jean-Philippe.

— Se você quiser ficar com ela, vai ter que duelar comigo.

— Duelar? — Fez Jean-Philippe.

— Amanhã à noite, durante a segunda lua cheia — decidiu o rei. — E eu aviso, humano: ninguém da sua espécie já sobreviveu à picada da minha espada.

O rei e sua corte deram as coisas aos dois e ergueram voo, suas asas causando o som de um bando de pássaros a fugir. Eles iluminaram os céus por alguns segundos, então desapareceram. Jean-Philippe e Pivoine ficaram a observar a janela aberta, sem saber o que dizer.

— É melhor eu arranjar uma arma — disse Jean-Philippe. — O que acha que seria útil contra um pixie?

— Não pode lutar com ele — Pivoine protestou.

— Se eu não lutar, vão levar você.

Eles discutiram o assunto durante a manhã inteira. Jean-Philippe não tinha apetite, e sua mãe pareceu desconfiada ao ver suas mãos tremerem quando ele levou o copo à boca para beber leite (a única coisa que seu estômago parecia aceitar). Ele e Pivoine passeavam pela horta, onde os legumes agora cresciam gordos e as verduras viçosas, e falavam sobre o futuro.

— Quero que cuide da minha mãe, se alguma coisa acontecer — Jean-Philippe pediu.

— Nada vai acontecer.

— Alguma coisa vai. Eles vão voltar, e você sabe.

Jean-Philippe suspirou.

— Eu nunca andei além da cidade. Nem dois quilômetros além. Eu não sei lutar, eu não sei nem mesmo ler. Só sei assinar meu nome, e mesmo assim me dizem que minha caligrafia é horrível. Como vou vencer um rei?

— Não vai precisar vencê-lo.

— Preciso. Reis costumam manter sua palavra, e quando ele aparecer, o que mais vou poder fazer?

Jean-Philippe sentou-se no chão. As abelhas zumbiam ao redor deles, cortejando as flores coloridas que nasciam desde a chegada de Pivoine. A garota segurou o polegar de Jean-Philippe gentilmente, como se a oferecer conforto.

A corte voltou, como prometera, no horário prometido, quando a segunda lua cheia surgiu no céu. Eles pareciam ainda mais bem vestidos do que na noite anterior, como se esperassem uma grande festa. O rei dos pixies usava roupas da cor do rubi; da cor do sangue, pensou Jean-Philippe. Ele aguardara-os do lado de fora da casa, depois de certificar-se de que a mãe dormira, respirando sossegadamente em sua cama. Ele queria escrever uma nota, um adeus, se chegasse a um adeus, mas não sabia como desenhar as palavras e Pivoine recusou-se a ajudá-lo.

— Você apareceu — disse o rei. — Não é tão covarde quanto imaginei.

Ele trouxera sua espada, que não era o que Jean-Philippe esperava, mas algo como um graveto com uma ponta fina, cercado de espinhos. Parecia venenoso; um toque e você deixaria de existir, ou cairia em um sono profundo.

— Eu achei que poderíamos conversar — disse Jean-Philippe.

— Conversar?

— Você é um rei. Com certeza pode achar outra noiva.

— Eu não quero achar outra noiva. Eu quero a noiva que é minha.

— Ela tem outras opiniões a respeito desse casamento predestinado.

— E o que ela pensa que sabe? Eu sou o rei. Eu decido. Você vai lutar comigo ou não?

Jean-Philippe mordeu o lábio inferior.

— O problema é que eu não sei lutar — admitiu.

— Então desista. Desista e vou ser misericordioso — o rei prometeu.

— Não posso.

— Não me deixa muita opção.

O rei apontou sua espada de espinhos para Jean-Philippe, que estremeceu.

— Ainda há uma opção — eles escutaram a voz de Pivoine. O rei parou onde estava. A garota saíra pela porta do casebre. Ela trazia sua agulha. — Eu posso lutar com você.

O rei parecia tão surpreso quanto Jean-Philippe.

— Você não pode lutar — disse o pixie. — Você é pelo que estamos lutando. Você precisa de um campeão.

— Posso ser minha própria campeã — disse Pivoine.

— Não pode. Não são assim as regras — disse o rei. — E já que o único campeão que me apresenta é esse fazendeiro assustado, eu vou acabar com sua brincadeira agora mesmo.

Ele avançou contra Jean-Philippe, pretendendo espetá-lo com sua espada, mas algo atingiu-o primeiro: uma chuva de um pó fino caiu sobre o rei, derrubando-o. Aveia, pensou Jean-Philippe, sentindo o cheiro. E percebeu que sua mãe estava ali, enrolada em um xale, as mãos sujas do punhado de aveia que lançara. O rei começou a tossir, engasgado. Seus cortesão gritaram e se afastaram enquanto o rei adquiriu uma coloração azul, vomitou algo verde e com cheiro de mata e parou de se mexer.

— Pixies — disse a mãe de Jean-Philippe. — Minha avó costumava falar sobre vocês. Eu nunca acreditei, mas sempre fiz questão de guardar aveia. Alguns hábitos nunca morrem.

Os cortesãos alados tremiam de horror diante da mulher. A mãe de Jean-Philippe inclinou-se, pegou o rei por suas asas, agora murchas, e depositou-o num saquinho de tecido duro. Atirou o saquinho para os pixies, que se afastaram, chocados.

— Aí está o seu rei, morto. Podem levá-lo. Ele morreu uma morte justa, que ele mesmo procurou. Eu sou a campeã desta garota — disse a mãe, indicando Pivoine. — E eu venci o duelo. Agora vão. Vocês não têm mais nenhuma demanda, e a casa em que estão é minha.

Os pixies seguraram o saco que continha o corpo do finado rei. Eles não disseram nada quando se afastaram e, depois de alguns metros, abriram suas asas e voaram, carregando o saquinho consigo, dividindo seu peso. A mãe de Jean-Philippe esfregou as mãos, livrando-se dos restos de aveia. Pivoine espirrou.

— Aveia — comentou a mãe de Jean-Philippe. — Uma coisa tão simples…

Pivoine permaneceu com eles. Ela não mudava com o passar dos anos, eternamente jovem, mas tornava-se mais sábia. Quando a mãe de Jean-Philippe morreu, ela chorou por dias. Suas lágrimas desceram pela terra na qual a mulher havia sido enterrada e deram vida a peônias lindas, que estação nenhuma conseguia derrubar. Alguns anos depois, Jean-Philippe apaixonou-se e se casou. Sua esposa chamava-se Éloïse, era pequena, rechonchuda e loira, e adotou Pivoine como sua própria irmã. Jean-Philippe e Éloïse construíram uma casa de bonecas para a garota. Fizeram seus móveis da madeira, Éloïse costurou roupas e lençóis, e as aranhas ajudaram com o resto. Jean-Philippe e Éloïse tiveram apenas uma filha, uma menina que recebeu o nome da avó paterna, Céline. Céline ainda era só uma criança quando a febre veio e levou seus pais. Pivoine chorou mais uma vez, por dias e noites, e mais flores brotaram nas sepulturas daqueles que havia amado. Ela cuidou de Céline como teria cuidado de uma filha. Ensinou-a a ler e a escrever, a costurar e a cuidar da horta. Contou para ela histórias sobre um rei que dormia sob uma montanha ou em uma ilha, ou as duas coisas, e ensinou a ela a como se defender de pixies, e da importância de guardar aveia. Céline cresceu; tornou-se uma moça bonita, com muitas propostas de casamento, mas não aceitava nenhuma. Ela e Pivoine continuaram a comparecer no mercado, e os produtos que vendiam eram sempre os mais procurados. Algumas pessoas se incomodavam com o par curioso, porém, e Céline sabia bem o motivo. Um dia, quando retornaram para casa, ela disse:

— Eles não acham certo. Que uma moça como eu fique sem marido. Eles se perguntam quem vai cuidar das nossas terras; não acham que eu seja capaz.

— E o que você acha? — Pivoine perguntara.

— Acho que eu e você podemos fazer qualquer coisa — Céline disse.

E aquilo encerrou o assunto.

À noite, antes de deitar-se, Céline acendeu o toco de vela para Pivoine, que ainda não gostava do escuro, mesmo depois de tantos anos. Deitou-se na cama, enquanto Pivoine deitou em sua própria cama, em sua casa de bonecas.

— Boa noite, Céline — disse Pivoine.

— Boa noite, Pivoine — a outra respondeu.

Author: Clara Madrigano

Clara Madrigano é escritora e jornalista, finalista premiada pelo concurso de roteiros do produtor da BBC John Yorke.

5 thoughts on “A Noiva Diminuta

  1. Parabéns, Clara! Conto com clima de fábula, mas com uma pegada bem contemporânea. Texto gostoso de ler, fluido, elegante. Apenas faltou um pouquinho mais de polimento. Alguns ecos que poderiam ser evitados, algumas inversões de substantivos e adjetivos que tornariam o texto mais “natural”. E o corte de algumas palavras para que o silêncio, as entrelinhas surtissem mais efeito. Você foge dos clichês, das soluções fáceis com muita habilidade, resolvendo tudo dentro do contexto da história. E o final é matador. É um belo conto, com um subtexto maravilhoso.

  2. Que conto maravilhoso!
    Clara, é a primeira vez que leio algo seu e a primeira vez que leio algo na Trasgo, então acho que foi uma ótima estreia.
    Parabéns pela escrita magistral e por esse conto tão benfeito.

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