Ajé

Em uma manhã quente do ano de 1983, pai e filho caminhavam lado a lado em uma rua vazia. Os dois eram parecidos, com pele clara, cabelo cor de burro quando foge e o nariz fino, mas só o mais velho usava óculos e carregava um pesado arquivo debaixo do braço.

— Se tem uma coisa que seu pai pode ensinar — disse o Sr. Da Costa, desabotoando a gola da camisa social. — É isto. Trabalho e boa vontade. É o que importa na vida.

O filho, batizado com o infeliz nome de Eliseu da Costa Costa, era consideravelmente mais alto que o pai, e teve que se abaixar para responder:

— Eu só queria férias normais…

— Estou fazendo o que sua mãe gostaria que eu fizesse! — O homem estava ofegante e corado, tal era o calor de Cuiabá. — Ou seja. Trabalhar. Ajudar o próximo. É minha resolução de ano novo, sabia?

— Faz um ano que ela morreu…

Chegamos!

O prédio em questão ficava acima do Armarinho da Gilda, uma loja discreta cuja placa havia sido pichada. Sacos de lixo cobriam a calçada diante de um Chevrolet Monza creme, o primeiro em uma longa fileira de carros estacionados.

— P. Espinhosa, número 530, segundo andar. — O Sr. Da Costa tocou na tinta amarela e descascada do prédio e fechou os olhos. A porta se abriu com um clique, mostrando o corredor escuro. — Hora de ver seu velho pai em ação!

— Achei que a gente não podia fazer isso.

— E não podemos! Destrancar uma porta sem mandado é contra a lei — afirmou o Sr. Da Costa, dando passos largos até chegar à escadaria. — Mas já que estou a serviço, tenho permissão. Vivendo e aprendendo, Eliseu, vivendo e aprendendo!

Eliseu estava perdido em seu devaneio sobre as férias ideais, que consistiam em ler gibi e não fazer nada, mas o pai tinha outros planos. Logo, logo, você vai ser um homem feito, tinha dito. Precisa ajudar a comunidade.

O Sr. Da Costa tocou a campainha assim que encontraram o apartamento.

— Sra. Espinhosa, por favor?

Quem atendeu não foi a Sra. Espinhosa, e sim uma adolescente minúscula que, como veriam a seguir, lembrava muito sua mãe.

— A gente não quer comprar porra nenhuma, tá bom?

— Ótimo, porque nós não somos vendedores! — sorriu o Sr. Da Costa. — Ajé, minha querida, ajé! Sua mãe está em casa?

Berenice, a menina que parecia pronta para jogá-los escadaria abaixo, congelou ao ouvir aquilo. Ajé vinha do iorubá, e não era uma palavra que muitos usavam, ao contrário de axé. Como substantivo, ajé significava energia, feitiçaria, poder; mas, para seus adeptos, sempre havia sido eu, nós, e uma forma de desejar o bem.

— A… Ajé — Berenice gaguejou. O cabelo preto e escorrido cobria seus ombros, mas mostrava o rosto largo debaixo da franja curta.

— Mais fácil do que achou que seria, não foi? — O Sr. Da Costa piscou para o filho e a seguiu até a sala.

O apartamento era um lugar deprimente, com um sofá xadrez de dois lugares, uma almofada bege e solitária jogada no chão, uma televisão da década anterior com enormes antenas e um carpete marrom que cobria o chão inteiro.

A mulher do outro lado parecia um fantasma. Assim como a filha, a Sra. Espinhosa tinha cabelo preto e comprido, mas o dela estava salpicado de mechas grisalhas e parecia sem vida sobre a pele marrom e escura de seu rosto encovado. Era magra, esguia e baixa, e seus cotovelos pontudos apareciam sob as mangas três quartos.

— Piedade? É você? — O Sr. Da Costa bateu palmas. — Lembra de mim? Hilário da Costa, estudamos juntos no colegial!

— Infelizmente, ainda possuo memória. — A voz da Sra. Espinhosa era arrastada, e Eliseu precisou piscar várias vezes para ter certeza de que ela era real. — O que veio fazer aqui?

— Pois então, estou a trabalho! — Hilário ergueu o fichário que carregava no ar, mostrando o título: ASSOCIAÇÃO DE SERVIDORES PÚBLICOS (ASP-AJE). — Ajé, minha amiga!

— Ajé? — Piedade virou os olhos. — Pra quem?

Um observador atento teria percebido o hematoma no canto de sua boca, prestes a sumir, do tipo que aparece após um tapa. Hilário da Costa, porém, não era conhecido por sua discrição, e Eliseu temeu pelo que o pai diria a seguir. Pior ainda foi ver Berenice atrás da cortina de contas coloridas que separava a cozinha da sala, espiando a conversa.

— Pai — Eliseu chamou, segurando-o pelo braço. — Acho que nós não somos bem-vindos aqui.

— É melhor irem embora antes do meu pai acordar — Berenice enfiou a cabeça pela cortina, sorrindo de orelha a orelha.

— Ela tem razão — concordou Piedade. — Vão embora.

— Infelizmente, não estou aqui para falar dos velhos tempos — suspirou Hilário. — Vim solicitar sua ajuda formalmente para resolver uma situação de nível 3. Como ajés…

— Não fala essa palavra aqui — Piedade sussurrou, checando o corredor atrás de si. — Se meu marido ouvir…

— Ele é crente? Se for, posso falar com ele.

— Ninguém pode falar com aquela desgraça. — A mulher deu um passo à frente para levá-los até a porta. — Agora chispa daqui. Vai, vai!

— Mas Piedade, é uma emergência regional, nós precisamos…

Que porra é essa?

A voz embargada de Jeremias das Cruzes se fez ouvir no apartamento. Troncudo e corpulento, o pai de Berenice devia pesar quase o dobro de Eliseu, e sua regata branca estava manchada de cerveja. De cabelo marrom e pele bronzeada, a única coisa que tinha em comum com a filha eram os olhos estreitos e o formato dos lábios. Fora isso, não se pareciam em nada.

— E quem é esse merda?

Em outras situações, Hilário teria se sentido amedrontado. Apesar do outro homem mal alcançar seu queixo, seus braços eram maiores, e sua chegada tinha imposto um silêncio desagradável. Pensou no que sua esposa Cora diria se ainda estivesse viva: Olha pra sua amiga, toda machucada. Olha pra filha dela, se escondendo, assustada. Você não vai fazer nada?

Por isso, respirou fundo e sorriu:

— Senhor. — Hilário tocou no ombro de Jeremias. — Me faça o favor de não ficar tão perto, obrigado.

Jeremias congelou. Os olhos ficaram ocos e sem vida, e seu corpo pesado continuava com o punho no ar.

— O que aconteceu com ele, pai?

— Ele tá em transe, óbvio — Berenice respondeu, fazendo Eliseu se sentir estúpido. A garota andou até o pai e deu um tapa em seu rosto imóvel.

— Isso não é ilegal?

— Situações desagradáveis pedem por respostas apropriadas, filho — disse Hilário em tom professoral. — Agora, Piedade, podemos conversar a sós?

Os dois atravessaram a cortina de contas que formava a imagem de uma arara-azul, e deixaram os adolescentes sozinhos. Berenice sentou no sofá, encostando o rosto contra o quadril do pai.

— E aí, você sabe o que é uma situação de nível 3?

— Hã, bom, meu pai não explicou muito. — Eliseu encarou o teto. — Parece que a sua mãe sabe fazer algo que pouca gente sabe fazer.

Berenice ergueu uma sobrancelha.

— Transferência.

— Oi?

— Quando tem uma concentração anormal de ajé em um único lugar, alguém precisa transferir a energia dali e levar pra onde não tem — Berenice continuou. — Ou a coisa vira uma bomba-relógio. Gente comum pode até morrer se chegar perto.

O barulho das miçangas da cortina batendo umas nas outras interrompeu a conversa. Hilário e Piedade estavam de volta e ambos olhavam para Berenice.

— Você vai? — A garota ficou de pé em um pulo e segurou a mãe pelos pulsos. — Deixa eu ir junto, por favor, por favor!

— Para de espernear, Berenice — Piedade grunhiu, mas a voz não saiu tão dura quanto as palavras. — Eu acabei de recomendar você pro trabalho, sua tonta.


Quando jovem, Piedade Espinhosa das Cruzes tinha uma lojinha esotérica, além de trabalhar uma vez por semana para a Associação de Servidores Públicos oferecendo serviços de transferência. Aos vinte anos, ficou grávida de Berenice e seus dias como ajé viraram parte de um passado do qual preferia não lembrar. Mesmo agora, sentada na rodoviária de Cuiabá, aquela vida parecia um sonho distante, cujo acesso ela não merecia mais.

— O plano é o seguinte. — Hilário voltou com as chaves de um carro alugado e quatro sacolas de lanche. — Segundo nossos rastreadores, o foco de energia fica no Morro da Caipora, bem no meio do cerrado.

— Nunca ouvi falar — murmurou Eliseu.

— Isso é uma péssima ideia…

— Vamos lá, Piedade, só precisamos fazer isso e já voltamos! Seu marido nem vai notar que o tempo passou.

Berenice alisou a minissaia xadrez e puxou Eliseu pela gola da camiseta, forçando-o a se levantar.

— A gente vai indo pro estacionamento — disse, sem deixar espaço para ele discordar. Eliseu correu para alcançá-la, sentindo o ar frio que a cercava refrescar seu corpo, como se tivesse dado de cara com um ar-condicionado. — Qual é seu nome mesmo?

— Eliseu.

— Bom, Eliseu — repetiu Berenice, com a cara de quem tinha comido algo desagradável. — Eu tô de saco cheio da minha mãe reclamando e do maluco do seu pai sendo otimista a respeito de absolutamente tudo, então somos só nós dois agora.

— Você também reclama bastante — resmungou, apesar de concordar. — Mas gostei do truque do ar gelado. Me ensina?

Berenice sorriu de lado.

— Não.

O carro alugado era um Fusca bege, e Eliseu ficou aliviado ao notar que os bancos de couro foram refrigerados pela energia de Berenice. O frio não alcançava os adultos, e o pai teve que abrir a janela, suando e bufando como um boi irrequieto.

— Vou ligar o rádio — disse, olhando no retrovisor. — Um pouco de música faz bem pra alma!

— Você é tão barulhento, Hilário — Piedade comentou, o cabelo preso mostrando o pescoço comprido. — Tinha esquecido disso.

Com o barulho do carro misturado ao vento, trânsito e uma versão levemente distorcida de “Você Não Soube Me Amar”, ficava mais fácil para Berenice e Eliseu conversarem sem serem ouvidos.

— Você também sabe fazer a transferência? — Eliseu virou-se, tentando achar uma posição em que os joelhos ossudos não fossem comprimidos pelo banco da frente.

— Tá surpreso por quê? — Berenice apontou para o nariz comprido dele com um chip de banana frita. — A culpa não é minha se você é incompetente e não sabe fazer.

— Eu também tenho meus truques — replicou Eliseu. Para seu infortúnio, Berenice só sorriu, achando graça daquela tentativa vã de defender a própria honra. — Pra sua informação, estou me especializando em buracos do tatu.

Eliseu não tinha como saber, é claro, mas havia falado a coisa certa. Berenice esticou-se na direção dele, seus olhos atentos observando-o, o nariz achatado a centímetros do seu, como se procurasse sinais de uma mentira. A técnica do buraco do tatu era uma tradição ajé brasileira imprescindível para a vida moderna; era um trabalho enfadonho e muito bem pago, que consistia em criar túneis que levavam de um lugar ao outro. Um buraco do tatu de Cuiabá para São Paulo, por exemplo, durava apenas um minuto, então todo ajé respeitava os criadores de tais feitos.

— Seu buraco do tatu não deve ser grande coisa se nós temos que ir até o não-sei-o-quê da Caipora de carro — Berenice anunciou depois de alguns instantes e voltou ao seu lugar.

— Eu ainda estou aprendendo. — Eliseu enfiou a mão no pacote de chips, sentindo um forte cheiro de sal.

— É claro que você ia ter uma profissão de riquinho dessas. — Berenice puxou o pacote da mão dele. — Tá na cara, e nesse seu sotaque sonso de paulista.

— Eu não sou rico. — Eliseu pegou o pacote mais uma vez, sem precisar tocá-lo. Quando fez isso, Berenice ergueu a mão, fazendo o salgadinho flutuar até ela. — Eu sou classe média.

— É tão coisa de rico achar que é classe média só porque não é milionário.

Quando os dois tentaram puxar o pacote de novo, a embalagem virou ao avesso no ar, e o conteúdo caiu no chão do carro.

— A culpa foi sua!

Agora ele mostra as garras! — Berenice deu uma risadinha, movendo os dedos no ar como se tocasse o piano. Os chips de banana voltaram para o pacote. — O que mais tem pra comer?


Quando caiu a noite, Hilário da Costa decidiu parar em uma cidadezinha e procurar um hotel. Ele nunca esquecera o que sua querida Cora gostava de dizer quando viajavam: Dirigir de noite é pedir por acidente! É isso que você quer, Hilário? Se hoje era um servidor público digno, era porque Cora tinha ensinado tudo que sabia quando começou a trabalhar na Associação. Ela era um pouco mais velha que ele, e uma funcionária apaixonada. “Os outros em primeiro lugar”, dizia sempre, e ele tentava seguir seu exemplo.

— Pai. — Eliseu cutucou-o no ombro. — A gente pode ir na lanchonete enquanto vocês pagam?

— Claro, filho — Hilário respondeu, distraído. Era difícil imaginar Cora como parte do passado: quando pensava nela, nos cachos grisalhos, no sorriso rechonchudo e nas tardes jogando canastra, pensava em aqui e agora. Tirou alguns cruzeiros do bolso e colocou na mão de Eliseu. — Mas toma cuidado, viu? A Berenice é uma mocinha, fica de olho nela.

Hilário viu o filho sair acompanhado da garota que falava e gesticulava enquanto ele sacudia a cabeça. Isso trazia memórias da escola… Ainda lembrava como era pegar três buracos do tatu para aprender a controlar seu ajé em uma cabana construída ao lado de uma ribanceira, e depois voltar para Pindamonhangaba para atender o colégio normal no período da tarde.

— Quer jantar? — perguntou para Piedade. — As crianças foram comer um xis, mas nós podemos pedir uma pizza.

— Muçarela.

— Certo, muçarela — Hilário sorriu, coçando a parte calva de sua cabeça.

Quando a pizza chegou, os dois foram para um dos dois quartos que Hilário tinha reservado, e sentaram no chão para comer.

— Achei que nunca mais veria alguém da escola — Hilário abriu duas garrafinhas de Grapette e passou uma para ela. — Quer dizer, alguém além do Pedrinho, que continua meu amigo até hoje. Ele teve três filhos, sabia?

— Hum.

— E aquela loja esotérica, heim? A esposa do Pedrinho faz um trabalho muito impressionante em terreiros com a capacidade curativa dela. Acho incrível se doar aos outros assim. Não tem muitos lugares que nós possamos passar despercebidos, mas a gente faz o que dá, né? Dá pra botar seu ajé nas velas da loja, essas coisas, e já ajuda um bocado.

— A loja não existe mais.

— Quê?

— Tive que vender depois da Berenice nascer.

— Ah, isso é uma pena! Você é uma ajé excelente, Piedade, você…

— Era.

— Quê?

Era uma ajé. Não sou mais.

Hilário abriu a boca, mas a voz não saiu. Ainda em Cuiabá, na cozinha do apartamento da família Espinhosa das Cruzes, Piedade tinha dito que não praticava mais, mas não teve tempo de perguntar o motivo. E nem precisava — a resposta estava em Cora, cujo trabalho como assistente social já atendera vários casos de ajés que, por estresse e por trauma, tinham perdido a capacidade de usar seus poderes.

Crianças abusadas, acidentes trágicos, idosos abandonados, mulheres que apanhavam… Eram inúmeros os motivos que levavam aquilo a acontecer, e ninguém sabia exatamente o que fazia duas pessoas que tinham passado pelas mesmas coisas terem experiências diferentes. Alguns perdiam o ajé para sempre e outros escapavam ilesos, ao menos no quesito energético.

— Piedade, estou preocupado com você.

Piedade ergueu os olhos. O tempo tinha passado para os dois, mas ainda conseguia ver o rosto juvenil ali, o mesmo que achara tão bonito aos quinze anos. Uma paixão boba, é claro, já que Piedade nunca dera bola para ele.

— Preocupado com o quê, Hilário? Vai cuidar da sua vida.

— Eu não nasci ontem — argumentou. — Esse seu marido, esse Jeremias… Nós podemos ajudar você. A Associação tem meios para ajudar ajés em apuros, você sabe disso.

— Eu não estou em apuros. — Piedade cobriu a bochecha com a mão, como se quisesse esconder a marca que já desaparecia. — O Jeremias é um imprestável, mas é o homem que eu escolhi.

Hilário quase conseguia ouvir “não você nem mais ninguém” em seu tom de voz, mas decidiu não responder. Fazia tempo, afinal, e tinha sido muito feliz casado com outra mulher.

— Tudo bem, você escolheu, mas e a Berenice? Eu não sei muito dela, mas dá pra ver que a menina é puro talento! — Hilário limpou as mãos engorduradas com o guardanapo vagabundo que tinham enviado com o pedido. — Você quer que ela acabe sem ajé?

— Isso não vai acontecer com ela. Logo ela vira dona da própria vida, vai-se embora e não volta mais. A Berenice é esperta.

— E se ela não for? — Hilário insistiu. — E se ela ficar pra cuidar de você?

— Hilário. — Piedade deu um peteleco em sua testa, como quando eram crianças. — Cuida da sua vida que eu cuido da minha.


Eram oito da manhã, e o sol estava a pico. Eliseu da Costa Costa esticou os braços finos e sentou-se em uma pedra atrás do posto de gasolina onde tinham parado. O pai e Dona Piedade estavam conversando na lanchonete, mas Berenice quis explorar as redondezas.

— Não sai de perto de mim — implorou Eliseu, suor escorrendo pela testa. A camiseta de manga curta prendia ao corpo assim que a menina se afastava, deixando o bafo substituir o ar gelado.

— Implora.

— Por favor, Berenice.

Berenice sentou ao seu lado. Não havia nenhum sinal de que ela estivesse sofrendo como os outros mortais: a franja estava limpa, o cabelo preto brilhava sob a luz natural, a pele marrom continuava seca. Eliseu suspirou, refrescado, e encostou a bochecha no ombro arredondado dela.

— Você tá suando feito um porco.

— Tô.

Eliseu considerou o fato de ela não empurrá-lo para longe uma vitória. Na verdade, Berenice colocou uma das mãos no topo de sua cabeça e começou a esfriá-lo.

— Você é muito cara de pau.

— Se eu disser que gosto de meninas difíceis, você me mata?

— Mato.

— Então eu não gosto de meninas difíceis.

Berenice deu um sopapo na nuca dele, mas Eliseu só riu.

— Se eu matar você, nunca vou aprender a fazer um buraco do tatu.

— Eu ensino. — Eliseu ficou de joelhos na frente dela, sujando a calça jeans desbotada de terra. — Mas aí você vai me ensinar o treco do ar-condicionado.

— Sei não…

— Por favor, Berenice. — Ele a segurou pelas mãos. — Cada vez que a gente para pra ir no banheiro, eu sinto que vou derreter.

— Nem tá tão quente assim, seu fresco.

— Por favor, Berenice!

— Vou pensar no seu caso.


O Morro da Caipora não era um lugar de fácil acesso. Deixaram o Fusca de lado e seguiram a trilha pelo cerrado, atravessando a mata baixa e seca, sem resguardo algum do sol. Piedade e Hilário andavam devagar em direção ao morro, mas Eliseu e Berenice já estavam bem à frente.

— Eliseu! Tem um riacho ali na frente, vamo’?

— Não sei se é uma boa ideia…

— Achei que você tava morrendo de calor. Covarde.

— Só quando você sai de perto — Eliseu deu de ombros, ofegante. — Mas eu achei um pé de manga coquinho.

Berenice pulou da árvore que tinha escalado, correndo para pegar a fruta. Eliseu riu, os braços cheios de mangas pequenas e arredondadas pedindo para serem comidas.

— Aquelas lesmas vão demorar séculos pra chegar — disse Berenice, mordendo um pedaço da fruta. — Vamo’ lá, é aqui do lado.

— Mas eu não trouxe uma sunga…

— Então você pode ficar olhando. — Berenice ofereceu um sorriso maldoso e saiu correndo em direção ao riacho.

A piscina natural era baixa e refletia o azul do céu, as nuvens e as sombras dos troncos retorcidos que a cercavam. Eliseu precisava admitir que era convidativa, especialmente quando Berenice ficava fugindo dele, como se quisesse que sofresse naquele calor desgraçado.

— Vou entrar. — Berenice tirou a camiseta branca, jogando-a em uma pedra. O sutiã não era tão diferente de um biquíni, mas Eliseu virou de lado, tentando não olhar.

— Você vai tirar a roupa?!

— Você é tão criança, Eliseu. — Berenice desabotoou a saia xadrez e a deixou dobrada sobre a grama. — É só um corpo, besta. Você não vai morrer.

— É só um corpo — Eliseu recitou, fazendo Berenice gargalhar. Ele deixou as mangas perto da roupa dela e tirou as botinas, as meias encardidas, a calça jeans e a camiseta, ficando só de cueca. — É só um corpo!

— Finalmente! — Berenice o puxou, e os dois entraram na água fria.

Como a piscina não era muito funda, dava para ela sentar com tranquilidade no chão rochoso, afundando o pescoço até o cabelo flutuar em volta dela. Eliseu fez o mesmo, mas esticou as pernas, tentando boiar.

— Até que o verão não tá tão ruim assim. — Conseguia sentir a pele ficando rosada na ponta do nariz, mas a sensação era quase agradável. — O que você vai fazer quando voltar?

— Provavelmente ficar em casa o dia inteiro. — Berenice mergulhou a cabeça inteira na água. Gotas grossas escorreram pela franja e os cílios compridos, e Eliseu sorriu ao vê-la. — E você?

— Acho que meu pai vai me obrigar a continuar indo trabalhar com ele.

— Queria poder fazer isso.

— A gente pode pedir pra ele — disse Eliseu. — Não quero perder meu ar-condicionado ambulante.

Berenice olhou para Eliseu, querendo acreditar que poderia aproveitar o resto do verão e ter tudo o que sempre sonhou: um trabalho ajé bem longe de casa, fazendo o que bem entendesse. Mas, ao mesmo tempo, não queria deixar a mãe sozinha em um lugar onde não poderia defendê-la…

Sacudindo a cabeça, ficou de joelhos na água e se inclinou sobre Eliseu, beijando-o na boca.

— Eu posso te ensinar mais coisas que só o ar-condicionado. — Berenice sorriu do mesmo jeito malvado que o assustava um pouco, pousando uma das mãos na barriga dele embaixo da água. — Mas só se você implorar.

— Por favor, Berenice.


No topo do Morro da Caipora, Berenice Espinhosa andou a passos firmes em direção ao eixo do poder, sentindo o ajé fluir ao redor dela. A energia era tanta que fazia a terra vermelha tremer, consumindo as sempre-vivas chuveirinho no meio da mata, reluzindo ao redor de um cajuzinho-do-cerrado, piando com os sabiás-laranjeira, preenchendo os enormes formigueiros.

Respirou fundo com aquele ajé dentro de si, permitindo que ela, e apenas ela, visualizasse sua fonte, escondida entre os cactos e as pedras. Uma imagem manchada de São Jorge de sabe-se lá quanto tempo atrás. Berenice abriu a garrafa de água vazia que carregava consigo e a deixou de pé ao lado da estatueta envelhecida.

— Você vem comigo — sussurrou, os dedos fazendo desenhos no ar para guiar a energia. O ajé concentrado, prestes a explodir e tomar tudo à sua volta, a obedeceu e entrou na garrafa: sem cheiro, sem cor, sem gosto, visível apenas para ela.

Quando acabou, a imagem era só uma imagem, e o morro continuava intocado.

— Seu Hilário, será que…? — Berenice sentiu aquele poder tão vivo vibrando sob as palmas claras de suas mãos. — Eu queria transferir isto pra minha mãe.

Piedade encarou o chão. Nunca, em todos esses anos, tinha revelado o que sentia com quem quer que fosse, nem mesmo com sua única filha. Sentia-se dividida entre a profunda rejeição que tinha para com o próprio ajé, e a saudade de ter sua loja, sua liberdade, sua vida. Parte dela queria acreditar que Jeremias era capaz de mudar e ser um marido melhor, e a outra era consumida pela culpa de manter Berenice presa a um lar que só a machucava.

Letargia consumia seu corpo como uma doença, mas agora, pela primeira vez em muitos anos, quis dizer sim. O indicador moveu em um espasmo leve. Depois o polegar, pronto para agarrar a garrafa. Mas a mão e o braço continuaram no mesmo lugar, moles, um de cada lado.

— Pode ficar com isso, sua tonta. — Piedade fez careta. — Eles vão precisar de você pra transferir toda essa bobageira pra outro lugar.

— Mãe…

— Já disse que não quero essa porcaria! Só causa estresse. Hilário. — Piedade virou para o antigo amigo, evitando olhar para a filha. — Eu deixo ela ir junto, mas você vai ter que me prometer que ela vai ser sua estagiária.

— Com certeza — Hilário abriu um sorriso fraco. — Ela tem muito futuro pela frente.

Ótimo. — Piedade espalmou a própria roupa, tirando o pó vermelho que levantava do chão. — Agora eu quero voltar pra casa.


A volta para Cuiabá pareceu mais rápida do que a ida. Hilário e Piedade passaram o tempo todo em silêncio, sem sequer mencionar o campeonato de futebol de botão do qual participaram em 1960 e Hilário dera tantos detalhes nos últimos dias. No banco de trás, Berenice e Eliseu falavam baixo, lutando para ver quem ficaria com o último Lollo da caixa de bombom. Quando chegaram no prédio, Piedade foi a primeira a sair do carro.

— Foi bom rever você, Piedade — disse Hilário, e Piedade respondeu com um aceno de cabeça. — Berenice, tudo certo pra próxima quarta?

— Tudo. — Berenice correu atrás da mãe, mostrando a língua para Eliseu.

Piedade puxou a filha pela mão, sem olhar para trás uma única vez.

Dentro do Fusca bege, Hilário da Costa afundou a cabeça entre as mãos, encostando a testa ao volante, e chorou como não chorava há muitos anos. Lágrimas correram pelas bochechas e o peito contraiu, deixando escapar os soluços que há muito deixara dentro de si.

Não chorara no funeral de Cora. Não chorara vendo o rosto amarelado no caixão aberto. Não chorara durante a doença, acreditando todos os dias que a dor que compartilhavam chegaria ao fim. Hilário soluçou de novo, incapaz de explicar ao filho o que ocorria.

— Ajé, pai — disse Eliseu, esticando-se para abraçá-lo. — Ajé.

Author: H. Pueyo

H. Pueyo (@hachepueyo no Twitter) é uma autora argentino-brasileira com foco em ficção especulativa e roteiros para quadrinhos, além de traduzir nas horas vagas. Não é muito de falar, mas seus contos já apareceram na Trasgo, Mafagafo e na antologia Mitografias, e podem ser lidos em inglês em diferentes revistas estrangeiras.

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