Como foi escrever Sementes Quechuas

Sementes  Quechuas nasceu ante a necessidade de escrever um conto com elementos fantásticos para uma chamada de textos onde eu concorria a uma vaga em uma jornada de literatura fantástica com uma imersão para escrever um conto, a ser publicado em antologia. Fui selecionada por conta dele. Mas o conto que me abriu as portas ficou guardado, até mais uma vez ser lido, apreciado e, pela primeira vez, publicado. Aqui na Trasgo. Para mim, ele já está sendo realmente fantástico pela segunda vez.

Ele foi escrito ao entardecer, foi nascendo e tomando forma, palavra por palavra, nem eu sabia onde o elemento fantástico entraria ou como eu construiria o final. O que veio na minha mente, logo de partida, foi a ideia de contar a história de pessoas germinando. Gostei disso.

Com isso, o lugar onde o conto se passaria ficou claro. E aí foi só deixar as lembranças da viagem que fiz ao Peru, em abril de 2017, com meu pai, invadirem o curso. Uma viagem maravilhosa, diga-se, a primeira internacional dele. 

Fiz uma pequena pesquisa na internet para me ajudar com os nomes próprios. Tinham de combinar com o ambiente e local: “nomes de origem inca”; “nomes de origem quechua”. E foi esse o apoio externo.

Lembro de quando nosso micro-ônibus descia as montanhas da Cidade Sagrada em direção ao vilarejo de Aguas Calientes (localizado na base das montanhas até Machu Picchu). Nós tínhamos passado a manhã inteira explorando as ruínas. Estávamos exaustos e extasiados. Meu pai, com os olhos molhados, me disse “realizei um dos sonhos da minha vida. Obrigada, minha filha”. Eu que agradeço, pai. Uma viagem para um lugar tão mágico, tão especial, só eu e tu. Por que esperamos tanto?

E provavelmente essa emoção de filha tenha me invadido e eu apenas deixei as imagens que me orbitavam as lembranças desencadearem a trama do conto. A história que construí é ficcional, claro, mas meio que não é, por conta disso, dessa intimidade que criei com ela, desse sentimento que aquele lugar deixa na gente.

E lá estava eu assistindo aos guerreiros e seus rituais. E agora é você que vai saber deles.

Tentei trazer um pouco das montanhas frias e ventosas, da rusticidade das casas, da umidade do clima, da cidadela de Aguas Calientes, da majestosa Machu Picchu, das lendas dos ancestrais peruanos que falavam a língua quechua. Que nome bonito, sonoro: k/é/x/u/a. Desde que ouvi essa palavra, lá no Peru, eu me apaixonei. E as lembranças, as que tive e não tive, foram se materializando no conto.

O Peru é fascinante. Deparar-se com o Oceano Pacífico é entender que somos um detalhe tão ínfimo do universo. É como se eu tivesse de agradecer à grandeza do Pacífico por entender isso.

E a cultura do povo? Invejável o respeito sério e sensato que nutrem pela Pachamama, a Mãe Terra, que é pura vida, se renova e alimenta ao homem. Até os dias atuais isso está incutido na cultura do povo peruano. Em Cusco – “o umbigo do mundo”, em quechua – e arredores, é nítida a influência das celebrações e dos rituais sagrados antigos, ainda que a religião católica tenha patrolado construções, monumentos e símbolos, se apossando deles.

Literalmente, igrejas suntuosas foram levantadas sobre construções pré-colombianas de engenharia de ponta, enterrando-as. Quando em visita à Catedral de Cusco, descobri que a igreja tinha como alicerce uma gigante construção inca, sólida, preparada contra os abalos sísmicos, que atingem o país historicamente. Fiquei curiosa e muito incomodada com aquela usurpação de cultura dos católicos imperialistas. Perguntei ao guia turístico por que esse legado material não era resgatado, sugerindo devolver à cidade a construção original. Ele, muito calmo, respondeu “não acreditamos que uma má escolha justifique outra”. E centenas de anos de engenharia dos povos antigos permanecerão cobertos pelos santos e pelos andores.

Mas eu entendi. Isso é respeito e resiliência no mais puro sentido. E eu respeito os peruanos por isso. Aprendi com eles.

Gosto de imaginar que os guerreiros antigos, como os do meu conto, respeitavam tanto a Mãe Terra a ponto de se oferecerem como sementes para as novas gerações se alimentarem com seus frutos. Isso me parece verossímil.

Gosto de pensar que isso acontecia, porque não tenho razão alguma para duvidar da bravura dos guerreiros, de que ouvi falar muito.

O povo peruano, nessa experiência de uma semana de convívio, muito mais significativa do que eu poderia imaginar, me fez acreditar que um sacrifício dessa magnanimidade, talvez, não seja apenas fantasia. Talvez não seja.

Author: Sabrina Dalbelo

Sabrina Dalbelo é gaúcha e reside em Bento Gonçalves. Formada em Direito, é servidora do Ministério Público Federal. É autora dos livros de poesia “Baseado em Pessoas Reais" (Poesias Escolhidas, 2017), “Lente de aumento para coisas grandes” (Penalux, 2018) e “Rasga-ossos” (Penalux, 2020). Foi aluna da Oficina de criação literária Contantes, projeto fomentado pelo Fundo Municipal de Cultura de Bento Gonçalves (2018) e do Curso “Escrevendo Literatura Fantástica”, da Metamorfose Cursos.

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