Crise de fé

‘Figura de Deus Enquanto Zínia” surgiu de uma crise de fé. Com isso, eu quero dizer que eu não tinha fé nenhuma, e, de repente, eu tinha, e aí eu tive que lidar com isso. Escritores mais espertos que eu disseram e repetiram que não há boa história sem conflito; certamente se não houvesse esse, não haveria “Figura de Deus Enquanto Zínia”.

Hoje a gente vê a palavra “fé” pra todo lado numas capinhas de celular bonitinhas e até mesmo numas camisetas de algodão no metrô, mas, pra mim, o termo sempre foi negativo, talvez até mesmo um tanto quanto agressivo na sua cooptação: Tenha fé, Marina, alguém diria enquanto eu estava passando por algo difícil demais para outros substantivos. Tenha fé, quando eu na verdade precisava de dinheiro, ou saúde, ou companheirismo, ou, sei lá, de um bom e longo abraço. Quando eu era uma magrela pré-adolescente ainda começando a entender que, além de meninos, gostava também de outras meninas, tive algumas experiências não de todo agradáveis nas igrejas evangélicas das minhas amiguinhas, e aí a tal “fé” foi azedando dentro de mim por anos.

Entenda, leitor, não é fácil ouvir uma jovem pastora dizer “Menina, o seu corpo é como se fosse um pão, e você deve preservá-lo, pois ninguém quer comer um pão despedaçado e nojento, de quem todos tiraram pedaço,” e depois disso continuar acreditando em um Deus que te ama não importa o quê. Eu olhei para a mídia e vi pastores apoiando candidatos que bradavam abertamente para que pais espancassem filhos LGBT+ em casa; olhei para as famílias de amigos e vi a Bíblia sendo usada para machucá-los; olhei para as igrejas das minhas amigas e não vi nada sendo feito a respeito disso. Foi aí que acabou para mim. Eu fiquei muito brava, leitor. Brava com Deus, assim como a Maria. Brava porque porra, se ele existisse mesmo, ele não devia estar deixando os pastores dizerem aquelas coisas pra mim, nem pra ninguém. Se ele existisse mesmo, ele não se importaria se eu beijasse meninas também, certo?

Errado, diziam as pastoras. Ainda dizem as pastoras. E então eu me afastei de Deus por anos. Não foi difícil. Minha família nunca foi particularmente religiosa. Eu desliguei aquela parte de mim que queria estar ativamente falando com alguma coisa mágica e grandiosa e passei a chamar o que eu chamava de “Papai do Céu” de “Universo”, e o que eu chamava de “Rezar” de “Conversar com o Universo”. É uma mudança pequena mas significativa de pensamento, e funciona; Você pode ter o divino sem a culpa de estar se comunicando com ele pelos canais que machucam pessoas como você. E você pode falar com ele (ou com ela, ou qualquer outro termo, eu estou aberta a sugestões, sempre) sem se preocupar com o dogma que te causa dor.

Mas não é o suficiente. E sabe por quê? Porque, apesar de tudo isso, tem algo de silencioso e profundo que você só consegue encontrar dentro de uma igreja ou de outros lugares sagrados, com vitrais coloridos, e um teto altíssimo e abobadado, e esculturas de santos e anjos: É algo que vem de todo aquele silêncio ecoado. A energia do lugar, você poderia dizer. E olha, eu não sei se é porque a Igreja Católica é simplesmente muito boa no que eles fazem, quando o assunto é marketing e design de interiores, mas eu gosto pra caramba de entrar numa igreja ou numa catedral e me perder no silêncio, até hoje. Toda vez que eu viajo eu encontro a igrejinha no centro da cidade, e eu fico lá dentro por vários minutos.

No conto, o pai da Maria encontra Deus nas coisas que ele ama; Eu não sei o que eu encontro ali dentro das igrejas, através daquele silêncio sagrado, mas eu admito que o sentimento é bom, e que o lugar quase sempre é lindo, e, se a igreja for grande o suficiente, todo o mundo é turista, então as pessoas se importam menos se parece que você pertence ali dentro. Eu costumava ficar de pé nas catedrais e fazer uma matemática mental para separar o prédio e o seu belo silêncio da instituição que o havia criado, e eu achava que isso era o bastante. Que eu podia simplesmente estar lá, quieta, com a minha raiva contida e o meu Universo, me entendendo com alguma coisa nebulosa e sem nome, sem ter que me importar com a Igreja. Que eu não precisava de mais nada dali a não ser da vibração daquelas paredes. Que o que eu queria ali era só o silêncio, e nada de Deus. Só o silêncio. Mas aí aconteceu uma coisa maluca comigo, de uma hora pra outra: a minha raiva começou a sumir. A força inconsciente que eu estava fazendo para segurá-la foi afrouxando, afrouxando, e finalmente afrouxou de vez, e, em algum momento no ano passado, eu deixei ela ir embora.

Não me entenda errado, leitor. Eu ainda estou muito brava, com muita coisa. Hoje em dia não faltam motivos para se estar brava, e você pode me encontrar com alarmante frequência na Avenida Paulista e em outras avenidas, no meio de um monte de outras pessoas bravas, segurando um cartaz. Mas eu não estou mais brava com Deus. Em algum momento no ano passado, a minha raiva passou, talvez substituída por cansaço, ou talvez simplesmente substituída por aceitação. Em algum momento, eu comecei a querer conversar com alguma coisa maior que eu sem me importar se eu precisava chamar ela de Universo. Foi quando eu passei de táxi na frente de uma igreja e senti vontade de entrar, não para ficar parada em um tenso silêncio, mas para conversar e estar com as pessoas agrupadas ali, que eu percebi que eu e Deus estávamos bem; Que talvez eu possa começar a fazer da minha raiva da instituição algo produtivo, ao invés de algo que me corrói por dentro; Que talvez, mesmo com raiva, eu possa ter espiritualidade sem ter medo. Que eu não preciso de um dogma, mas que isso não significa que eu preciso carregar todo esse ódio. Eu posso acreditar em algo com propósito, e manter meus valores, e lutar contra o que me oprime, sem abdicar do que me move. Deus nunca será, na minha concepção pessoal, o homem branco, alto e barbudo da Igreja Católica. Mas eu percebi que eu também não preciso mantê-lo inexistente e mudo. Eu posso recriá-lo à minha imagem, e eu tenho direito aos espaços onde eu sinto que ele existe.

É desse frágil e novo entendimento mútuo que surgiu “Figura de Deus entre as Zínias”. Assim como a Maria, eu tenho muito que discutir com Deus, e assim como ela, eu também tenho muito ressentimento. Mas nós duas estamos finalmente chegando num lugar de compreensão e reconhecimento das nossas próprias crenças, e nós duas estamos finalmente deixando ir a nossa raiva, e isso, pra nós duas, é o final feliz dessa partezinha da nossa história.

Author: Marina Paiva

Marina Paiva Ribeiro começou a escrever quando tinha seis anos e um desejo: entender qual história profunda movia o cachorro magrelo que morava na viela perto de casa, com a carinha triste e as orelhinhas caídas, cego de um olho e sem metade do rabo. Daí, foi ladeira abaixo: ganhou o concurso literário da escola com esse texto, e então ganhou mais seis concursos literários, o que lhe muniu de um ego terrível e acendeu de vez o pensamento:talvez dê pra fazer isso pra sempre. Agora, com vinte anos, nem sempre escreve mais pelo cachorro magrelo da viela, mas sim porque quer entender o que fazer com esse mundo doido que recebeu. Faz curso de design e pintura digital para entender como usar o computador pra contar histórias e faz outros cursos para tentar entender como contar histórias sem precisar de nada além de um cachorro magrelo da viela. Terá uma ficção-relâmpago publicada na temporada de 2019 da newsletter Faísca, onde continuará tentando entender qual é a dos relacionamentos entre as mulheres e as criaturas mágicas incompreensíveis. Nasceu e se criou em São Paulo capital, ilustra à grafite e pinta com aquarela e guache nas horas vagas. Está no processo de escrever um romance; Navega pela ficção-científica e pela fantasia, mas gosta mesmo é de fazer à la Star Trek e misturar realidade com coisa maluca, usando elementos do fantástico para falar de coisa séria. É fã de musicais (brasileiros e gringos) e nos momentos de tranquilidade sonha em ter um trabalho adaptado para a Broadway pelo Lin-Manuel Miranda. No fim do dia, enquanto dá comida para os gatos, fica imaginando, por vezes, que fim teve o cachorro da viela. Seu desejo, hoje, é contar histórias sobre mulheres malucas e jovens LGBT+ em que eles possam derrotar monstros, entender o universo, se apaixonar e se desencontrar e, especialmente, continuar vivos no final. Espera conseguir. Você pode encontrá-la em: twitter.com/fala_marina

9 thoughts on “Crise de fé

  1. Marina achei muito interessante esse assunto relativo a “Deus” e Fe” li e se fosse maior ainda continuaria lendo. Acredito muito em você e na sua inteligência capacidade. Torço também por você e acredite a “vozinha “onde quer que ela esteja deve estar muito orgulhosa de você. Beijos mil.

  2. Já tinha achado o conto muito poético, mas foi muito bom ler aqui e dar mais significado ainda pra ele.
    Eu fiz o trajeto contrário. Eu fui uma moça de muita fé, que passava madrugadas orando em voz alta. Também desencaixada e LGBT, porém.
    Com o tempo, eu e o divino nos afastamos e acho que hoje eu topo todo um inferno para sair com deus ou deuses no tapa. Disposta a perder, claro, como qualquer pessoa deve estar se houver qualquer coisa além do humano.
    Eu fui, porém, construindo um apreço novo pela humanidade, pela infinidade que a gente produz e carrega. Até mesmo pelos deuses que eu sinto que a gente cria. Acho que quem pariu o divino foi a gente e aos poucos isso foi também nos criando, de outras maneiras.

    Bem, sei lá!

    De todo modo, gostei muito do conto e da crise de fé! Belos textos! Espero ler mais coisas suas no futuro!

  3. Meus parabéns Marina, seu texto é de grande reflexão principalmente para os que ainda lutam com a questão da religiosidade. Texto claro e de fácil leitura. Estou com gostinho de quero mais…bjs

  4. Muito bacana sua reflexão e seu jeito de escrever. Amei! Na minha infância e adolescência passei, mas de passagem mesmo, por várias religiões. Nenhuma me seduziu. Acho que tenho uma relação com o divino parecida com a sua. É íntima, particular, não mediada por nenhuma instituição, tampouco por regras. Parabéns pelo texto, obrigada por compartilhar conosco suas reflexões

    1. Acredito que como humanos, sempre acabamos nos unindo em grupos para um determinado propósito e assim aprendermos juntos. Porém alguns desses grupos acabam em hierarquias pesadas e terceirizando a espiritualidade. Assim o sentido inicial se perde e ficamos vagando sem direção…

  5. Adorei a reflexão da personagem. Também sinto-me assim. Em meu caso, não foi bem um rompimento, mas um deliberado afastamento da igreja Católica. Encontrei dentro de mim mesmo muitas respostas para algumas angústias. Claro, tenho várias outras. Mas, com o tempo, sei que vou conseguir caminhar bem.
    Encontrei-me no Kadercismo. Não sou praticante como gostaria, mas, pelo menos, sei que nesta encarnação tenho que enfrentar minhas provas e espiações e resgatar meus karmas. Não sei se evolui, desde a encarnação passada. Acho que um pouquinho. Um dia vou saber.
    Gostei também do seu texto. É claro e direto, jovial. Não tem vícios de linguagem. Vai direto ao ponto. Não pare de escrever. Escreva todos os dias. Leia de tudo. E publique. Não deixe de publicar seus textos.

  6. Sabe… muitas pessoas maduras, com longa experiência de vida, não conseguem entender e aceitar a existência do conflito em relação a Fé (e muitas vezes com a falta de fé) o que você soube expressar de forma simples e sem rótulo. Parabéns Marina! Com carinho, Rô

  7. Parabéns, Marina, por sua luta, por seus questionamentos, por sua lucidez.
    Acima de tudo porque Deus existe, independentemente dos dogmas, dentro de cada espaço, pessoa, floresta, animais…
    Deus somos nós e o que fazemos para melhorar o mundo …
    Vocé é responsável por sorrisos e também pela busca do seu “dia melhor”.
    PARABÉNS, e siga seu caminho na certeza de que a existência de Deus depende do que fazemos, não das construções que a envolvem.
    Siga em frente! Você consegue, porque é guerreira.
    Beijo
    Elaine Jabur

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