Eles vivem

Os Teocidas nasceram na imaginação de um adolescente aficionado por quadrinhos há uns vinte anos. Um “eu” perdido no passado. A história chegou a ser escrita quase completa como roteiro de quadrinhos antes de ser deixada de lado em favor de outros projetos.

A primeira versão era bizarra. Os antagonistas eram empresários dominados por alienígenas – passaram-se anos até que eu viesse a saber que essa trama de filme B havia de fato fundamentado um clássico do cinema dos anos 80. “Eles vivem”, de John Carpenter, brinca com uma ingênua divisão de classes ilustrada por uma pichação na rua: “eles vivem, nós dormimos”. No filme, acompanhamos a desejada revolução daqueles que “acordam”, o protagonista e seu grupo, contra os que “vivem”: alienígenas que controlam o poder, as riquezas e os meios de comunicação da Terra.

Através dos anos, minha história bebeu de meus interesses por política e sociedade para se ambientar numa distopia ultraliberal muito mais plausível, lar de conflitos inerentes, aos quais não me atrevo a atribuir valor. O Fim dos Teocidas não tem heróis. Nem alienígenas.

Pedindo perdão pela longa introdução, aproveito para pedir permissão para ressignificar o título do tal filme. Nesse texto, quero falar sobre ter dado vida aos inadvertidos terroristas que frequentavam os devaneios daquele garoto, quando ele não queria mais prestar atenção na aula. E sobre dar vida a personagens de uma forma geral. Escrever. Criar.

A Fagulha

O filósofo Albert Camus, depois de defender que não há nenhuma motivação superior ou posterior à existência que alguém possa apegar-se para direcionar a vida, e que portanto só podemos perseguir as batalhas diárias às quais já estamos atirados, assevera que “a tensão constante que mantém o homem diante do mundo, o delírio organizado que o impele a acolher tudo lhe deixam uma outra febre. Nesse universo, a obra é então a única possibilidade de se manter a consciência e se fixar em suas aventuras. Criar é viver duas vezes.”

Ah, a febre! Podemos tentar convencer-nos dia após dia que tudo o que produzimos é inútil ou desnecessário, seja um livro ou uma postagem nas redes sociais; podemos submeter nossos ímpetos ao julgamento alheio e passar a desprezá-los porque ganhamos poucas “curtidas”, como se o olhar do outro sobre nosso calor pudesse de fato determiná-lo; podemos pesar esse desejo insano contra as atividades recomendadas para uma boa saúde e concluir que não vale perder um único dia com a criação, que essa voz que nos impele é o diabinho da consciência, e não o anjinho.

Mas ele segue lá, esse demônio peculiar. Sem tridente, só com fogo. E se decidimos dissipá-lo, vejam só, apagamos também o fogo de nossa segunda vida.

A Técnica

Embora eu seja fã do Jack London há tempos, só recentemente li seu clássico “Caninos Brancos”. Não sei se todos os leitores mais bem versados em técnicas narrativas notaram como sua trama contradiz certas “regras”. Protagonistas trocados, que desaparecem, clímax no meio da história, precedendo o que parece um longo epílogo… Um editor hodierno provavelmente pediria alterações imprescindíveis para cogitar sua publicação. Mas “Caninos Brancos” pulsa vida. Difícil não se apaixonar pelo lobinho que acompanhamos desde as primeiras aventuras para fora da caverna, por agruras e alegrias de suas fases selvagem e domesticada. Conclusão: mais importante que a fidelidade a técnicas, é esse ímpeto de dar vida.

Só que não estou afirmando de nenhuma maneira que despreocupar-se com a técnica é um caminho recomendável. Pelo contrário, penso que quanto mais técnica se tem, mais fácil será cultivar a fagulha.

Convivendo com dezenas de projetos em filas infinitas, fico angustiado quando encontro dicas para pessoas que desejam escrever, só que não têm ideias. Como é possível! Querem comprar? Tirando bloqueios mais pessoais (como a pessoa que está buscando um sentimento autêntico para expressá-lo poeticamente, por exemplo), acho que o problema da falta de ideias pode estar relacionado justamente com uma necessidade de apurar a técnica.

Muitos devem ter pensado em escrever sobre a sensação de opressão silenciosa de um negro numa casa de alta sociedade branca, mas poucos tiveram a habilidade para desenvolver uma inusitada trama sobre o tema, como a que rendeu ao filme “Corra!” o Oscar de melhor roteiro original. Ao saber o que “dá para fazer” com as palavras, é mais fácil para um autor cultivar suas fagulhas, por mais simples que elas pareçam quando surgem. Como disse o cineasta Stanley Kubrick uma vez: “se pode ser escrito, ou pensado, pode ser filmado”. Sim, para quem tem suas habilidades, claro.

As Imaginações

Conscientes ou não, nossas vidas são dominadas por fantasias. Imaginamos para conviver com nossos horizontes imperfeitos, para nos proteger de prospectivas ameaças ou para direcionar nossas ações a um futuro que, na verdade, jamais satisfará nossas projeções. Quanto de experiências reais entram na fórmula da imaginação é uma questão tão aberta quanto suas infinitas possibilidades. Quando acatamos o ímpeto de nosso diabinho e solidificamos imaginações, algo mágico ocorre. Elas deixam de fluir apenas em nossos rios mentais e ganham vida.

O primeiro efeito é, tal como as palavras proferidas numa sessão de psicanálise, a possibilidade imediata de observá-las na posição de um novo sujeito. O autor, quando lê sua obra, é um leitor. Sim, é um leitor diante de uma obra necessariamente significativa para si; ainda assim, não deixa de ser mais um leitor, capaz de interpretar e chegar a diferentes conclusões sobre o que vê ali.

Além disso, as imaginações solidificadas perdem seu caráter fugidio e viram parte inescrutável da vida. Além de leitor, o autor passa a ter a obra como um dos objetos significativos de seu mundo. Não precisa nem estar impresso na estante; pode ser um simples arquivo de texto no computador, incompleto e mal formatado. Porém, ali está uma das “coisas” de seu mundo. Algo que existe, que é real, que se pode recordar, se deixar influenciar, citar e até mesmo conectar com os novos eventos que o futuro segue proporcionando, enquanto se lhes dá significado.

Por fim – e este é apenas o último dos efeitos da criação, até mesmo opcional – ela vive também para outras pessoas, outras almas afins, essas com as quais desejamos tanto nos comunicar. A obra se torna um instrumento de comunicação sublime entre o “eu” do passado e outros membros de nossa comunidade, do futuro. Uma máquina do tempo, de uma certa maneira, pois aquele devaneio de tantos anos atrás poderá divertir ou emocionar uma nova alma até mesmo muito depois que a mente que o sonhou houver desaparecido sob a terra.

O mais curioso é que quando as imaginações convertidas em obra são lidas, seus criadores já não são aqueles que as entretiveram. A obra já não lhes pertence. Mas não dá uma alegria travessa, também, proporcionar chances ao nosso antigo eu, perdido no passado, de fazer um novo amigo?

Author: Felipe Cotias

Felipe Cotias é pseudônimo literário de Rodrigo Bahia, carioca desenvolvendo carreira jurídica e comercial mundo afora. Introspectivo de nascença, sempre se encantou por descobrir e produzir ficções. Já teve um conto na Trasgo (n. 14, “Saccade”) e algumas de suas outras obras publicadas podem ser encontradas em www.letraserastros.com.

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