Fábrica de salsicha

Olá, meu nome é Luísa Montenegro e, em 2014, eu escrevi o conto “Máquina do Tempo”. Sim, faz muito tempo, e minha vida mudou bastante de lá para cá: entrei no mestrado, depois no doutorado, e publiquei um livro infanto-juvenil, que ganhou um prêmio. Daquela época, ficou de lembrança uma gaveta virtual cheia de contos que escrevi quando a vida era mais simples e eu era uma estudante de graduação com mais tempo para me dedicar à escrita. Mas, como parte de uma resolução de vida, revisitei essa gaveta, soprei a poeira de cima do “Máquina do Tempo” e submeti à Trasgo no começo de 2019.

Quando conversava com o Enrico Tuosto, durante o processo de edição do conto para a publicação aqui na revista, ele me disse que a Trasgo estava pensando em mudar o formato de entrevistas para uma postagem das autoras e autores. Poderia ser sobre o conto, sobre a temática, sobre escrever… Achei a proposta bem interessante, porque mais ou menos na época em que escrevi “Máquina do Tempo”, eu e um amigo mantínhamos um blog sobre o processo de escrever fantasia. Eu tinha acabado de fazer um curso de escrita de ficção especulativa no Gotham Writers, que me abriu os olhos para métodos e técnicas que eu já aplicava intuitivamente na escrita, e estava louca para compartilhar minhas vivências e aprendizados.

Infelizmente, devido aos percalços e desdobramentos da vida adulta, não tocamos o projeto para frente, mas ainda considero muito interessante falar sobre o processo criativo por trás de uma história. Via de regra, escrever é uma atividade solitária e misteriosa. Como leitoras e leitores (e, ultimamente, tenho sido mais leitora do que escritora, confesso), temos acesso ao produto final: o conto lustroso, o livro com as arestas todas abauladinhas, a crônica com o cabelo lambido para o lado. Não temos acesso às dificuldades, à página do Word em branco com o cursor piscando, às unhas roídas. Por isso, com esse artigo gostaria de levar vocês à fábrica de salsichas do meu processo criativo na escrita do “Máquina do Tempo”.

Olhando em retrospectiva, posso dizer que o processo criativo que levou ao “Máquina do Tempo” surgiu da intercessão não-intencional de três traços de minha personalidade. O primeiro traço é uma curiosidade meio mórbida e quase obsessiva (ok, o “meio” e o “quase” talvez sejam eufemismos – risos nervosos). Por algum motivo, lá estava eu em uma tarde qualquer de 2014, buscando informações no Google sobre doenças raras degenerativas. E quando digo “buscando informações”, o que quero dizer, na verdade, é que estava lendo todas as páginas em inglês e português acerca do tópico, até a página 10 do Google (sim, eu sei, mas juro que sou funcional). Enfim, lá estava eu no modo hiperfoco, imersa há horas em doenças raras degenerativas, quando me deparei com a fibrodisplasia ossificante progressiva.

Pausa para uma explicação técnica: a Fibrodisplasia Ossificante Progressiva (também conhecida como FOP) é uma doença genética rara que faz com que os músculos, tendões, ligamentos e outros tecidos conectivos da pessoa afetada se transformem em ossos. A doença é progressiva, porém pode ser acelerada por batidas ou pancadas – o músculo atingido responde ao impacto transformando-se em osso. Além disso, as articulações da pessoa portadora vão se transformando em “pontes” de ossos, restringindo os movimentos e criando, em última análise, uma gaiola de ossos no corpo da pessoa.

Fiquei boquiaberta. O hiperfoco virou para FOP e passei as horas seguintes lendo artigos acadêmicos de medicina, vendo postagens de blogs, assistindo documentários com pessoas que possuíam a doença. Aquilo atiçou minha curiosidade de tal forma que me senti inspirada a escrever uma história em que uma das personagens possuísse uma doença semelhante. Como escritora, sempre utilizei de minha curiosidade como inspiração para histórias, personagens, situações. Como já sou naturalmente curiosa (até demais), nunca precisei alimentar minha imaginação ativamente, mas é possível desenvolver essa característica e utilizar notícias bizarras, descobertas científicas ou condições médicas raras, por exemplo, como inspiração e material para histórias, como fiz em “Máquina do Tempo”.

Pois bem, estava eu fascinada com a FOP, mas ainda não tinha uma história. Aquilo ficou marinando no fundo da minha mente algumas semanas, quando tive um sonho. Esse é o segundo traço da minha personalidade que faz parte do meu processo criativo: eu tenho muitos sonhos, muito vívidos, e costumo acordar no meio da noite e anotá-los para não perder as ideias (demoro a dormir depois, já que sou insone, mas algumas ideias valem a noite mal dormida). Nessa noite em particular, sonhei com uma menina rica lendo um livro grosso em um quarto ridiculamente barroco e cor-de-rosa, quando um menino entra, tímido, e reconhece o livro.

Aquela cena ficou em minha mente, a menina rígida como uma boneca vitoriana, o menino puxando assunto sobre o livro, ela lançando-lhe um olhar gelado. A partir disso, criei a história das personagens e o pano de fundo para o conto. Decidi que ela teria FOP (para causar um efeito maior de estranhamento e aumentar o elemento fantástico do conto, coloquei que ela se transformaria em pedra, ao invés de ossos) e que o conto narraria o reencontro dos dois.

Como disse que levaria vocês à fábrica de salsichas, deixo ao final desse texto o resumo da construção do cenário e das personagens do conto “Máquina do Tempo”. Porém, advirto que ter acesso a essas descrições pode tirar um pouco da magia do conto. Como Enrico disse em seu feedback no processo de edição, a concisão é um dos pontos altos da história. De fato, a ideia era deixar muitas reticências, muitos silêncios constrangedores, muitos espaços para serem completados pela imaginação de quem lê.

Essa concisão só foi possível graças à antítese do último traço de personalidade que deu vida ao conto: minha prolixidade. Eu sou uma daquelas pessoas que contam uma história, emendam em outra, lembram de outra coisa, perdem o ponto inicial, retomam, complementam com um detalhe que acabaram de lembrar. Eu nunca tinha escrito um conto com menos de quatro mil palavras (o que, na linguagem das escritoras e escritores, dá em torno de 10 páginas do Word, com fonte 12 e espaçamento 1,5). Naquela época, eu fazia desafios de escrita comigo mesma, e o desafio da vez era testar um foco narrativo diferentão (segunda pessoa, você) e escrever um texto de até 1.500 palavras, que era o máximo permitido no concurso de contos da FLIP, a Festa Internacional Literária de Paraty. Eu perdera a inscrição propositalmente e comentara com um amigo escritor que era impossível escrever um conto tão curto. Daí o desafio.

Nem sei quantas palavras a primeira versão do conto teve. Sei que passei semanas – SEMANAS – revisando exaustivamente a história, até conseguir chegar ao número de palavras a que tinha me proposto (ver P.S. 3, abaixo). Semanas escolhendo a exata palavra a ser cortada, a realocação perfeita das frases, o enxugamento ideal dos parágrafos. Lembro que, em certo momento, cheguei a chorar de frustração, porque não queria cortar mais nada (mas eu choro normalmente umas 5x por semana, então não é tão atípico assim, risos). Contei com a ajuda de pelo menos três pessoas fazendo leituras críticas. Aliás, se posso dar um conselho a vocês, encontrem amigas e amigos para fazerem leituras críticas do que vocês escrevem! Ajuda muito na solidão e para resolver os mistérios que se apresentam no caminho.

Enfim, para reforçar a concisão, retirei todos os travessões e sinais de fala, muitas vezes colocando um diálogo inteiro no mesmo parágrafo. Fiz isso para manter a atenção das leitoras e leitores colada em cada palavra, os sentidos aguçados, com a sensação de atenção e cuidado que tive durante a revisão. Após esse processo doloroso, cheguei praticamente à versão que vocês tiveram acesso aqui na Trasgo.

Para quem quiser os spoilers, fica abaixo o resumo do pano de fundo do conto, como prometi. Se eu fosse vocês, obviamente leria, porque sou muito curiosa. Mas também existe muita magia nas coisas que deixamos em aberto. No processo de edição, notei que cada pessoa que lia o conto tinha uma ideia de quem era o protagonista, qual a profissão dele, qual a relação entre ele e Milena, e quando eu explicava o meu prelúdio, ficavam um pouquinho decepcionadas. Acho que faz parte da graça do conto esse processo conjunto de criação, e entendo quem quiser manter o mistério.

Abraços!

P.S.1: Depois me contem nos comentários se leram ou não o spoiler, e, em caso afirmativo, se foi o que imaginaram. Fico curiosa =)

P.S.2: Essa postagem ficou com um número de palavras maior do que o conto em si #sorrynotsorry

P.S. 3: Antes de enviar a versão final dessa postagem à Trasgo, pedi que um amigo escritor, o mesmo que revisou as primeiras versões do conto, desse uma lida nesse texto. Ele disse que não passei semanas cortando as palavras do conto, e sim, uns dois dias. Eu duvido – certamente foram semanas.

P.S. 4: Spoiler – São duas crianças prodígio, ela na área de Humanas, e ele, de Exatas, que se conhecem porque o pai dele trabalha na empresa do pai dela. Eles estão sempre juntos em confraternizações, etc., e quando entram na adolescência, o menino ganha uma bolsa de estudos no colégio caro em que Milena estuda. Como ela sempre soube que tinha uma doença rara que eventualmente a transformaria em pedra, ela sempre meio que viveu no limite, enquanto ele é bastante certinho, um tanto covarde e atento às regras. Porém, como ele sempre teve um crush nela, ele a acompanha. Ela também sempre gostou dele, mas se fazendo de durona. Desde a infância, ele percebeu essa preocupação dela com o tempo, com controlar o tempo, mas nunca questionou. Quando ele recebeu a bolsa para estudar no exterior, ela deu um beijo nele. Foi o primeiro beijo dele. Ele teria ficado no Brasil mesmo que não soubesse da doença, mas ela percebeu isso e fugiu, para não arruinar o futuro dele, e se internou para não piorar da doença. Aí ele foi pros Estados Unidos, se formou, inventou uma tecnologia inovadora e de repente virou cool, como esses meninos do Vale do Silício que inventam apps e de nerds passam a multimilionários (mas eu não pensei no que ele inventou, gostei de deixar em aberto). Aí ele tá lá vivendo uma vida glamourosa, viajando o mundo inteiro, e um belo dia recebe um e-mail dela. Ela diz que está doente, explica a doença de forma bem fria e direta, e pede que ele a visite. Ele está em outro país, mas vem pro Brasil. A partir daí se desenrola o conto.

Author: Luísa Montenegro

Luísa Montenegro já teve uns empregos dignos de ficção: já foi professora de pré-escola, apresentadora de TV, analista de marketing de filmes adultos e dona de brechó. É mestra em Comunicação pela Universidade de Brasília (tem até foto com sabre de luz para provar), e atualmente cursa doutorado na mesma universidade. Em 2015, seu livro “A Menina Estrela d’Alva” ficou em primeiro lugar na categoria infanto-juvenil do 5º Concurso Agostinho de Cultura. Foi publicado pela Editora Adonis, em 2017, e selecionado para lançamento em 2018 na Bienal Brasil do Livro e da Leitura. “Máquina do Tempo” é seu primeiro conto publicado.

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