Figura de Deus enquanto zínia

Editado por Soraya Coelho

O ano é 2048. A astronauta Maria faz um check-up nas flores que crescem na estufa da estação espacial internacional. Ela é a bióloga-chefe dessa missão e, portanto, é parte do seu trabalho cuidar das zínias, as mais preciosas coisas dentro dessa enormidade de plástico duro e oxigênio processado; elas são raras aqui em cima, e são belas, o que poderia até ser dito das fotografias dos telescópios ultrapotentes ou dos cálculos dos engenheiros aeroespaciais, mas nenhuma dessas outras coisas causam por si próprias o mesmo nível de reverência nas pessoas que as flores de Maria — ou se saem tão bem nas redes sociais —, portanto ela se sente muito justificada em dizer que suas flores são as coisas mais especiais da aeronave. Ela faz um check-up nelas porque as ama, e também porque, mais cedo naquela manhã, havia sido acordada por uma luz e uma voz chamando seu nome.

Maria, a voz havia dito, espero por você onde os crescem os botões laranja. Maria é uma mulher da ciência, o que quer dizer que, onde a maior parte das pessoas têm cautela e bom-senso, ela tem uma fagulha dourada de curiosidade, especialmente no que diz respeito às suas plantas. Se uma voz misteriosa está fazendo a ronda na espaçonave, ela não pretende deixá-la fazer a festa com as suas zínias; não sem que possa observá-la primeiro, e talvez tomar notas num caderninho, para a posteridade.

“Estou aqui,” ela diz para ninguém enquanto flutua perto dos botões laranja. Já que está aqui, ela pode muito bem anunciar sua presença.

“Maria,” chama uma voz vinda das flores. Não é uma voz de homem nem de mulher. É uma voz e não mais que uma forte vibração, do mesmo jeito que um trovão é apenas um som quando ele ecoa no céu, estremecendo os nossos ossos.

Maria flutua ao redor das flores, tentando discernir a fonte da voz. “Quem está falando comigo?”

“Você sabe com quem fala, criança,” diz a voz, e ah! Ah puta merda!

De uma vez só, ela sabe.

Quer dar gargalhadas. É a sorte dela mesmo ter passado a infância inteira sendo arrastada pelo pai pra igreja só pra conhecer Deus aqui em cima, longe de tudo. E é Deus sim. Ela sabe na hora, até os ossos. Porra. “Seu timing é uma merda”, ela diz pras flores.

“E você está muito longe de casa,” as flores dizem pra ela. Ela consegue ver agora a divindade impregnada nelas. A maneira com que elas estão arranjadas de forma perfeitamente simétrica, cada pétala alinhada, como se arrumadas por uma mão invisível.


“Todo mundo aqui está longe de casa, Deus,” diz a ele. Ela decidiu que será um ‘ele’, porque é assim que funciona lá embaixo, na igreja de seu pai, e de repente ela está se sentindo patriota. Guerreia no seu íntimo o impulso de negar tudo — ela, uma mulher de ciência, falando com flores! Mas Maria passou por todo teste psicológico da NASA com honras, sua mente é sã. Isso que está acontecendo é real.

“Isso é real, não é?”, ela pergunta pra Deus.

“Com certeza”, diz Deus.

“Por que você está aparecendo pra mim, e não pra qualquer outra pessoa da equipe?”

“Até onde você sabe, eu posso estar aparecendo pra todo o mundo.”

Ela pensa sobre isso por um segundo. “É”, ela diz, “Mas por que pra mim?”

“Porque você está sofrendo.”

Maria se aproxima das flores com cuidado: ela nunca foi muito de ler escrituras, mas sabe que de vez em quando ele gosta de aparecer pegando fogo. Quando está tão perto das zínias que pode tocá-las, algo a impulsiona a falar; era a mesma fagulha dourada, talvez, que a fizera vir aqui no meio da noite, queimando brutalmente lá dentro do seu peito. “Eu quero ficar aqui pra sempre,” ela diz pra Deus, bem baixinho. “Eu nunca mais quero descer pra Terra. Eu estaria perfeitamente feliz só vivendo aqui, fazendo minhas contas e cuidando das minhas plantas.”

“Mas você não pode,” diz Deus. “Mesmo se o controle de operações deixasse, você não ia poder. Há algo te impedindo.”

Ela estava meio que esperando uma resposta diferente, algo milagroso. Algo que lhe permitisse evitar a coisa que ela estava esperando evitar. “Eu deveria querer estar lá embaixo, não deveria?”, ela pergunta. “Eu deveria querer estar respirando ar de verdade, e cheirando flores que nasceram de chão de verdade. Eu devia estar querendo deitar em pastos verdes, e beber de águas calmas, e tudo mais.”

“Você devia,” diz Deus. Ela o havia repensado como um homem e, por causa, disso ele se torna um, ou pelo menos a vaga figura de um: do tamanho certo, e do formato certo, mas vazio. Um vazio cheio de divindade. “Eu que fiz aquele lugar pra você.”

Ela pensa consigo mesma que mais provavelmente foram explosões oriundas de desequilíbrios termais causados por reações químicas que fizeram a Terra, mas não quer discutir astronomia com Deus, então flutua até a janela e olha para a Terra, que é a coisa mais linda dali de cima, curva e escura, toda oceano imenso e continentes iluminados por luzinhas como buracos de agulha, e por cima de tudo a atmosfera despontando, azul e brilhante, como um manto de proteção. É tão lindo que sempre traz lágrimas aos seus olhos, e ainda mais agora. Tudo que ela jamais conheceu está lá. Tudo que já foi e sempre será. Tudo lá, acontecendo, acontecendo. “Deus,” ela pergunta, “por que eu não quero voltar?”

Deus fica em silêncio por um tempo. Ela olha pra ele, e ele está examinando suas zínias com admiração na sua fisionomia. “Quando eu fiz todas as coisas,” ele diz, “eu fiz de vocês receptáculos para a reverência.”

Isso é muito bonito, mas não entra na garganta de Maria. “Você não fez todas as coisas,” ela diz a Deus. “Teve, sabe, a evolução. Nós aparecemos sozinhos, pela seleção natural.” Pelo amor de, bem, Deus! Ela é uma cientista. Ele deveria conhecer o público dele.

“De uma forma ou de outra vocês acabaram aparecendo, não apareceram?”, ele retruca, e tem uma afeição calorosa em sua voz, e ela sente segurança lavrá-la como amor. Ela imagina se é assim que deveria ter sempre se sentido na igreja.

“Você não respondeu minha pergunta,” ela lembra.

“Há em você um chamado para o desconhecido, cria das estrelas. Em você e nos outros da sua espécie. Vocês querem entender o universo. Parece mais fácil entender o universo daqui de cima.”

“É,” ela diz. “É, deve ser isso mesmo.” Eles observam as zínias, e ela sente aquela sensação de segurança se quebrar, a consternação entrando novamente nos seus pensamentos. “Mas eu preciso ir pra casa.”

“Por que você precisa ir pra casa mesmo?”, pergunta Deus.

“Como assim, por quê? Você sabe por quê. Meu pai está doente. Meu pai está morrendo, lá embaixo, Deus, e eu preciso ir lá ficar com ele.”

“É, mas você não quer fazer isso, né? Tenho quase certeza que você não quer.”

Ela dá uma bela olhada de canto nele, o que é bem difícil: a sua forma é radiante na sua escuridão; oscilana mente dela, como se fosse espuma do mar. “Você tem certeza que você não é o Do Mal não, né? Aquele lá com o ancinho, ou sei lá o quê. Aquele eu não quero. Eu preciso do Do Bem.”

“Eu sou o Do Bem,” diz Deus.

“Então era pra você estar me dizendo pra fazer a coisa certa, né! Era pra você estar me falando pra ir lá ver meu pai!”

“Se você tem tanta certeza de que essa é a coisa certa, pra quê precisa da minha ajuda?”

Com isso não dá pra debater. Ela exala o ar preso na sua garganta e se vira pra Terra na janela. Deus se aproxima e fica perto dela, observando também. “Você não gosta dele,” ele diz em voz baixa.

“Não gosto,” ela concorda, falando tão baixo quanto. Deus deu o tom: o lugar inteiro pegou uma atmosfera de igreja. Lá embaixo, na cidade do pai dela — a cidade que ela odiara tanto como uma menina e mais ainda como uma adulta, a cidade com a igrejinha e as mulheres amargas com o cabelo longo, escovado, preso em rabos de cavalo na nuca, e os vestidos indo até lá embaixo nos tornozelos, e as baratas voadoras, e os restaurantezinhos japoneses iluminados em neon onde os adolescentes se amontoam para se esconder dos olhares dos adultos —, naquela cidade são provavelmente cinco da manhã agora. O sol está apenas começando a confabular com as nuvens: Quanta glória pra hoje?

“Sabe, não é culpa dele, Deus,” diz Maria. “Não é culpa dele eu não gostar dele. O problema é que nós sempre fomos de coisas diferentes. Eu, eu sou disso aqui”, e ela estende seus braços para toda a maravilha do seu laboratório, da ciência. “Ele, ele é todo sobre você.”

“Eu?”

“É, você. Ele te achou em todo lugar, Deus, eu não sei como. Ele te achou no banco da caminhonete dele, e em todo domingo de manhã, e em toda quarta-feira de jogo, e, puta merda, ele te achou no fundo de uma garrafa mais que tudo, o que foi a nossa perdição, porque e quanto a mim? Eu não te achava em lugar nenhum.”

“Eu estou aqui agora.”

“Como eu disse, seu timing é uma merda.” Eles dão risada. “Pra falar a verdade, eu não precisei de você, Deus. Eu tirei um mestrado e meia dúzia de Phd.s, e aí eu vim pro espaço, e isso foi o suficiente pra mim. Não pra ele.”

“Ele não te entende.”

“Ele não sabe olhar pra cima. Ele passa tanto tempo falando sobre o Senhor, e sobre o Infinito e o Além, mas ele nunca olhou pro céu e pensou, sequer por um minuto, sabe, fez algumas perguntas, ficou interessado no como das coisas, no por quê. Nem por mim. Ele ficava bravo quando eu falava desse tipo de coisa, então eu precisei falar longe dele. Não é assim que o mundo funciona na cabeça dele, sabe Deus, ele é um acreditador, não um pensador.” Ela suspira. Tem vergonha de pensar assim no próprio pai, mas tem mais raiva. Se sente como um rio em movimento, começando a desaguar aqui, nesse laboratório escuro, tudo o que vinha levando guardado no peito há anos.


“Me diz por que você tem tanto ódio, Maria”, diz Deus, e isso quebra de vez a barragem.

“Porra, Deus,” ela diz, “É toda essa crença, sabe? Ele acredita em você, muito bem, obrigada. Mas o tempo passa. E você não estava perto dele quando a barra começou a pesar. Você não tava lá quando o carro dele bateu. Você não estava perto o suficiente pra fazer a crença valer. De repente, ele precisava de você mais do que nunca, e não te encontrava em lugar algum. A caminhonete já era, e o joelho dele também, de modo que ele não podia mais trabalhar, ou jogar bola, ou ajoelhar pra rezar. E você não estava lá. Você não estava em casa, e não estava na igreja, então ele finalmente te encontrou numa garrafa de cerveja, e em outra garrafa de cerveja, e em outra garrafa de cerveja. E uma hora o senhorio não acreditou mais nessa parada e colocou ele pra fora, e aí ele fez a primeira renúncia dele. Fez uma renúncia dele mesmo. E aí quem é que teve que carregar o peso dele, hein, Deus? Foi tudo eu. E o alcoolismo de um homem adulto é muito peso pra se carregar com dezenove anos. Eu tive que largar ele bem lá no chão.”

“E você acredita no quê, Maria?”, pergunta Deus, e ela quer gritar.

“Eu acredito nisso aqui!”, ela rodopia em gravidade zero com seus braços abertos, indicando tudo: o laboratório, que é o seu laboratório, e as plantas, que ela criou desde sementinhas, ali na escuridão do espaço, usando todo tipo de tecnologia, porque, contra toda razão, seres humanos querem que flores cresçam nesse lugar onde flores não crescem, pra que eles possam aprender com elas. As suas plantas! As plantas que ela criou com a ajuda de gente que ela treinou, gente em quem ela acredita, gente com quem ela estava planejando discutir sobre a última matéria científica, com quem ela tem piadas internas. Todo o espaço laboratorial, o qual ela conhece de dentro pra fora, com seus armários e gavetinhas, e mesas, e espaços onde são guardadas coisas mansas e voláteis em garrafas pequenininhas. Esse espaço todo, que ela vai ter que deixar antes do seu tempo com ele estar acabado. Antes dela poder terminar a sua pesquisa com as suas zínias.

“Eu não quero ir embora daqui!”, ela grita com Deus. “Eu amo isso aqui. Eu não quero deixar isso pela Terra, que nunca me fez nenhum bem, e não quero deixar isso por ele!”

Deus fica pensativo. Ele olha pras suas zínias. Levanta a mão contra elas, e a sua palma pega fogo. Pânico passa pelo corpo de Maria, e ela se joga contra ele, preparada pra lutar com Deus, mas o fogo já se apagou e eles estão novamente apenas iluminados por luzes artificiais. E ele diz: “Eu não entendo você. Você não quer nada com a Terra, mas seus sentimentos mudam assim que eu levanto a mão contra o pedaço da Terra mais próximo de você.”

Ela está ofegante. Primeiro se assegura de que ele não está tocando nas suas plantas, que as plantas estão bem. “Por que que você está aqui?”, ela exclama para Deus.

Deus descansa as mãos contra o corpo, desliza para longe das plantas e para longe dela, garantindo que ela se sinta mais segura. Olha bem pra dentro dela. “Maria, você está me dizendo que não tem amor nenhum por aquele planeta ali embaixo, que ele só te fez mal e que não tem nada lá embaixo para você, mas você se enfiou dentro de uma cápsula espacial e veio até aqui pra estudar organismos que só ocorrem nele.” Ele não desvia o olhar. “Eu vim até aqui porque eu precisava saber.”

“Saber o quê?” Ela tem lágrimas nos seus olhos e não sabe por quê. Ela pensa: não importa o quê, tem água salgada em mim. Não importa o quê. Eu ainda faço parte lá de baixo.

“Saber no que vocês ainda acreditam”, Deus lhe diz.

Há um silêncio então, e então há um silêncio maior, e Maria está sozinha. Ela flutua pra perto da janela, e olha para a Terra, e ignora o alarme de incêndio da estação espacial por um minuto, dois. Se levanta para desligá-lo antes que alguém venha incomodá-la. Nesse momento, a sua assistente entra na sala, ofegante.

“Maria”, ela diz, e Maria já a está cortando, já está dizendo, ‘não tem fogo, já apaguei, já cuidei do incêndio’, mas a garota está mesmo muito nervosa, então Maria se aquieta. E a sua assistente se senta com ela e lhe diz que seu pai está morto.

Author: Marina Paiva

Marina Paiva Ribeiro começou a escrever quando tinha seis anos e um desejo: entender qual história profunda movia o cachorro magrelo que morava na viela perto de casa, com a carinha triste e as orelhinhas caídas, cego de um olho e sem metade do rabo. Daí, foi ladeira abaixo: ganhou o concurso literário da escola com esse texto, e então ganhou mais seis concursos literários, o que lhe muniu de um ego terrível e acendeu de vez o pensamento:talvez dê pra fazer isso pra sempre. Agora, com vinte anos, nem sempre escreve mais pelo cachorro magrelo da viela, mas sim porque quer entender o que fazer com esse mundo doido que recebeu. Faz curso de design e pintura digital para entender como usar o computador pra contar histórias e faz outros cursos para tentar entender como contar histórias sem precisar de nada além de um cachorro magrelo da viela. Terá uma ficção-relâmpago publicada na temporada de 2019 da newsletter Faísca, onde continuará tentando entender qual é a dos relacionamentos entre as mulheres e as criaturas mágicas incompreensíveis. Nasceu e se criou em São Paulo capital, ilustra à grafite e pinta com aquarela e guache nas horas vagas. Está no processo de escrever um romance; Navega pela ficção-científica e pela fantasia, mas gosta mesmo é de fazer à la Star Trek e misturar realidade com coisa maluca, usando elementos do fantástico para falar de coisa séria. É fã de musicais (brasileiros e gringos) e nos momentos de tranquilidade sonha em ter um trabalho adaptado para a Broadway pelo Lin-Manuel Miranda. No fim do dia, enquanto dá comida para os gatos, fica imaginando, por vezes, que fim teve o cachorro da viela. Seu desejo, hoje, é contar histórias sobre mulheres malucas e jovens LGBT+ em que eles possam derrotar monstros, entender o universo, se apaixonar e se desencontrar e, especialmente, continuar vivos no final. Espera conseguir. Você pode encontrá-la em: twitter.com/fala_marina

17 thoughts on “Figura de Deus enquanto zínia

  1. Enrolação zero. Todos os parágrafos são muito bem aproveitados e a narrativa envolvente.
    Seguindo uma linha de realismo fantástico, o texto se preocupa mais com a afinidade e a clareza da situação. O sci-fi dá um brilho particular e torna tudo mais belo e artístico. Parabéns!

  2. Singelo, poético e bem espiritual, coisa que a gente não espera num cenário sci-fi. Estava precisando ler algo assim, um drama que a gente passa em silêncio e fala bem pouco sobre. O fim, meio que em aberto, é mil vezes mais eficaz do que qualquer outro fim que fosse mais fechado.

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