Diziam que havia, naquela região, uma espécie de monstro que aparecia no meio da água e perto de beiradas. Ouviu-se falar dele pela primeira vez na Capitania de São Vicente, no ano de 1575, como uma besta cabeluda, com quinze palmos de comprido e longos bigodes no focinho. Haviam-se passado pouco mais de cem anos desde o ocorrido, mas crônicas a respeito de monstros e aparições espalhavam-se por toda a Colônia do Brasil.
Fosse bravo, Isidoro teria ido atrás do Ipupiara ele mesmo, e mataria a criatura a golpes de espada. Como não o era, trabalhava como coletor de impostos desde os tempos de Lisboa, trabalho que trazia um bom sustento, mas satisfação precária. Em Portugal, a vida era repetitiva e as ruas eram sujas e fastidiosas, facilitando seu coração de pensar na vinda ao Novo Mundo como uma proposta aparentemente irrecusável. Não explicaram, porém, das baforadas de ar úmido, dos matagais fechados e extensos que cobriam toda a terra que não era praia ou casa montada, e dos insetos e mosquitos que zumbiam perto do ouvido da gente.
Não achava estar mal para sua idade. Aos quarenta e dois, a maior parte dos homens já estaria acabado, se não morto, mas Isidoro sentia-se inteiro. Inteiro o suficiente para uma viagem de mais de cinquenta milhas que parecia que nunca acabava.
— Andirá — chamou o guia, que cavalgava mais à frente, pelo nome. Ergueu a voz para que ele ouvisse no meio do galope. Tinham-no apresentado algumas semanas atrás, quando disse que precisava ir ao interior para apadrinhar o filho recém-nascido de uma de suas primas. Um grupo de paulistas disse-lhe para falar com o Caboclo Andirá, filho de um bandeirante que seguiu o ofício do pai até perder parte da perna em um acidente que o levou a usar uma perna de pau e andar mal. Agora, fazia algumas expedições de viagens, geralmente a cavalo, já que precisava seguir um ritmo mais lento. — Acredita que falta muito?
— Não era para demorarmos tanto — Andirá parecia aflito. Sabia o caminho daquela mata e daquelas vilas como se fossem as linhas trançadas de sua mão, mas Isidoro já começava a desconfiar que talvez ele não fosse tão competente quanto lhe falaram. — Era para estarmos em nosso destino. Sinto que andamos em círculos.
— Se nasceu aqui e sente que andamos em círculos, imagine então eu que confiava em sua habilidade de não se perder. — Isidoro amassou o bigode mais grisalho que preto, enquanto sua outra mão segurava as rédeas de couro marrom. — O alazão já ofega. Acho que ele pode ter machucado a pata…
Andirá parou sua própria égua. Ela bufou, parecendo contrariada de ter que parar no meio do mato. Isidoro compreendia, pois também o estava.
— Isso não é bom. — O ex-bandeirante parecia ter voltado de um funeral, olhando para o cavalo como se fosse o próprio cadáver. Tocou na cabeça do bicho com a mão calejada, tentando acalmá-lo. — Faz quanto que ele está assim?
— Umas horas, acho eu.
— Isso não é nada bom, seu Isidoro — Andirá repetiu e tirou o chapéu de abas largas para secar sua testa empapada de suor. Apesar de ser mais jovem que ele e estar acostumado a longas viagens, o guia estava visivelmente exausto, e suas sobrancelhas arqueadas franziam-se numa carranca. — Tem algo errado por aqui.
A profissão de coletor tinha feito com que Isidoro tivesse pouca paciência para argumentos e desculpas, pois eram essas as artimanhas de quem não queria pagar. No caso de Andirá, imaginava que ele poderia pedir por mais dois dígitos de réis pelo tempo perdido.
— Pois bem. Façamos uma coisa. O senhor volta para a vila, pede para minha prima por um novo cavalo, e eu espero aqui de bons modos. — Andirá não tinha gostado da proposta, isso era visível, mas a expressão de Isidoro não mudou. Continuava sério, e sua ampla barba escondia o leve sorriso de satisfação. — O que acha? Minha idade também requer que eu descanse um pouco. Mais que meio dia eu tenho certeza que não leva para ir e voltar. Tenho quase certeza que lembro de ter passado por essa parte da mata. Não estamos muito longe.
Já podia até imaginar o que se espreitava por trás da cena: Andirá não era tolo, e devia ter achado que o pagamento de ida e volta foi é pouco para quem recém tinha vindo da Europa. Talvez o fosse. Ainda assim, não pensava nesse serviço como algo complexo; era só fazer a viagem com uma única pessoa, para um fim de mundo que não era nem tão longe assim. Daí planejou o problema com o cavalo, e achou que não perceberia que repetiam o mesmo caminho uma e outra vez. Isidoro sorriu. Sabia lidar com isso.
— Se for mais rápido que isso, até posso dar mais alguns trocados. O que diz?
— Não acho que seria bom ficar sozinho aqui… Há coisas estranhas escondidas nessas bandas…
— Preocupado com o quê, homem? Você mesmo disse ontem que ninguém mora por aqui.
Andirá decidiu não discutir. Deu de ombros.
— Vou e volto, mas paramos a viagem quando cair a noite.
— Triplico o preço e continuamos de madrugada. Trato?
— O que o senhor quiser — ele repetiu de maneira oca, sempre com o olhar perdido nas plantas. O terreno já tinha sido desbravado anteriormente por outras pessoas, mas a parte onde as árvores e matagais se misturavam ainda era pouco convidativa. — Voltarei o quanto antes, só não saia daí. Por favor, seu Isidoro, não esqueça do que estou falando.
Andirá chutou a égua com as esporas e sumiu rapidamente.
Dessa vez, Isidoro desceu do cavalo e o amarrou a uma árvore. O bicho nem reclamou. Logo dobrou as patas e se encolheu como se fosse um cachorro cansado. Sentou ao lado dele, tirou o próprio chapéu e olhou para cima, bem para o alto. Ao menos, não reclamava da vista. Se tivesse de citar uma qualidade da colônia, é que era bonita. Não apenas a paisagem — estranha, extensa e densa, cheia de predadores que desconhecia, mas também de pássaros coloridos, lagos e cachoeiras perdidas, e água que nunca acabava —, mas também a comida farta e as mulheres. A paisagem era sua favorita, porém. Ali mesmo estavam perto de um arroio muito pequeno, com uma ponte natural feita de pedregulhos molhados e cheio de musgo, e um tronco caído em um dos costados.
Isidoro suspirou, aumentando o espaço entre o cinto e sua barriga. Era um homem de estatura média, pesado e de rosto endurecido. Durante a juventude, seu cabelo tinha sido loiro sujo, mas escureceu com o tempo e, ao começar a embranquecer, também apareceram alguns fios pretos, em especial no bigode e na barba. Perto das orelhas, tinha algumas cicatrizes da varicela que sofreu quando criança e da qual lutou para se salvar, criando marcas na pele bege. Seu nariz era curto mas ostensivo, batatudo e vermelho pelas horas de caminhada sob o sol tropical. Sua boca, estreita e fina, estava rachada de sede. Ao todo, percebia sua aparência como boa; sua esposa nunca reclamou, e meninas novas eram cheias dos não-me-toques.
Agachou-se ao lado do arroio e botou as mãos em forma de cuia para enchê-las de água cristalina. Em Lisboa, preferia beber vinho pois a água estragava logo, mas, desde que chegara ao norte daquela terra jovem e sadia, tudo que fazia era provar o que a natureza oferecia e as estranhezas preparadas pelos habitantes, em forma de sucos dos mais variados sabores. Virou-se para o cavalo.
— Só piora — comentou em voz alta, aproveitando para lavar o rosto também. Em um ato talvez tolo, encheu seu chapéu do líquido que corria pelo chão, vendo-o quase transbordar e pingar gotas gordas pela grama. Alcançou a deixá-lo diante do alazão. — Toma, meu velho. Toma que melhora.
O cavalo mal abriu os olhos. Ao lado dele, a água que trouxera foi vazando pelas abas, transformando a terra quase preta em lama. Isidoro já começava a sentir-se mal. Não gostava de ver um bicho definhando. Não gostava nem mesmo de acompanhar o processo na cozinha; quando sua mãe degolava galinhas, fechava os olhos no instante da morte para não ver a cara da ave antes de encontrar o facão.
— Vê se me perdoa quando for ao além. — Abriu uma das bolsas de viagem e pegou a pistola que levava consigo por precaução. Encheu-a de pólvora e apontou para a cabeça do cavalo. O tiro foi rápido e certeiro, mas tão alto que espantou um bando de passarinhos na copa de uma árvore, que saíram em revoada.
Isidoro sentou-se cansado ao lado do alazão morto. Queria que Andirá voltasse logo, mas o tempo parecia que não passava. Ficou olhando para cima, para os buracos entre as árvores enquanto conseguia ver parte da luminosidade que vinha do céu. Em silêncio, de olhos semicerrados, concentrava-se apenas nos sons à sua volta: o corre-corre do arroio dançando ao redor das pedras, a cantoria que as folhas não abafavam, o galho que quebrava quando um animal de pequeno porte andava por ele. Algumas formigas caminhavam por sua mão, e aí acordava de novo, sentindo-se quente e mole, sem vontade de levantar nem para aguar a própria pele.
Horas se passaram e não havia sinal de seu guia. As moscas já tinham começado a se reunir ao redor do morto, e sentia que não deveria ficar esperando uma onça aparecer para comer a carcaça. Se Andirá não chegasse até começar a anoitecer, tentaria achar o caminho sozinho.
Andirá não apareceu.
Desgostoso, Isidoro levantou, voltou a apertar o cinto e ficou com a pistola na mão. Deixou uma carta para o bandeirante fincada no tronco ao lado do alazão, avisando-lhe para onde pretendia ir. Tinha um facão além da adaga que ficou para trás, então ficou mais confiante. Começou a caminhar na direção do que achava ser o rio gigantesco que viram no caminho de ida, correndo um pouco para não ficar escuro. Já estava difícil de enxergar dentro da mata, então não seria simples de ir em frente.
Já quase perdera a esperança quando começou a ouvir a corredeira. Cada barulho antes disso parecia uma onça-pintada à espreita, uma sucuri comprida, ou uma aranha peluda e aterrorizante. Tinha que chegar logo ao rio, e daí seria fácil de alcançar a estrada de chão. Ah, como Isidoro agradeceria se Deus o ouvisse uma vezinha só, apenado pelo seu calor e cansaço! Seria bom se houvesse alguma pessoa por lá, ou se Andirá aparecesse na esquina, entre um tronco e outro.
O chuá do rio ficou mais alto. Os nós de seus dedos estavam mais brancos do que o resto de sua pele clara, de tão firme que agarrava o cabo do facão. E, como se tivessem respondido suas súplicas internas, Isidoro ouviu uma voz.
Não sabia de onde vinha nem de quem era, mas era uma voz clara e bonita, límpida como o líquido do arroio, alta o suficiente para se sobrepujar aos outros sons da floresta.
Isidoro voltou a correr. Tinha que alcançar quem quer que fosse, principalmente agora, que percebia que a voz cantava. A música não lhe era conhecida, mas também não tinha letra — tudo parecia composto de vogais, de longos as e os repetidos, alcançando notas quase inumanas. Mais à frente viu o rio, iluminado pela luz da lua. Ao sair do meio do mato, sentiu-se salvo. Rezou para todos os santos que conhecia, apertando os olhos e as mãos em sinal de respeito. A música continuava, mas ainda não sabia de onde vinha.
À frente de Isidoro, o cenário era muito diferente. Não era mais o afobamento da floresta imensa e fechada, e sim água para tudo que é lado, do mais profundo verde-bandeira escurecido pela noite, quase alcançando o preto. O barulho vinha de uma cachoeira que transbordava névoa e espuma, fazendo a paisagem beirar o sobrenatural. Isidoro sentiu a umidade na pele de suas bochechas, refrescado do inferno que era lá dentro. Acima, a lua cheia e branca servia como iluminação primitiva, mais eficiente que qualquer vela ou candelabro.
A música recomeçou.
De perto, o canto parecia menos real, soando como o instrumento artificial de algum país que desconhecia, e não como cordas vocais.
Com cuidado, Isidoro segurou-se em troncos mais finos perto da beirada, para não acabar escorregando na terra pegajosa ao lado do rio parado. Nesse ângulo, conseguiu enxergar a forma de uma pessoa perto da queda d’água. Não podia ver muito além da sombra do que parecia ser uma mulher de costas, nua e de cabelo liso e comprido, afundada até metade do torso.
Isidoro fez um novo esforço para escalar as enormes rochas que cercavam a cachoeira, tentando aproximar-se mais. Guardou a pistola na bolsa e o facão no cinto. Como as pedras estavam escorregadias, tinha que andar agachado, para cuidar de não cair.
O canto parou.
O português piscou várias vezes, sentindo-se num sonho. Estava parado de pé em uma das pedras no meio da água, sentindo várias gotas respingarem em sua camisa manchada e branca. A pessoa virou-se para vê-lo.
Ali, sob a luz da lua, havia um jovem índio, de cabelo liso, escorrido em diferentes tons de castanho. Não tivera interesse em decorar os nomes dos diferentes nativos quando chegara à principal cidade da capitania, assim como a maior parte dos europeus. Seu descaso provou-se não apenas bárbaro, como estúpido: talvez facilitaria a comunicação se não tivesse visto a colônia como mera extensão de sua terra natal, mas agora não havia saída.
— Você… consegue… entender… português? — Isidoro perguntou, enunciando cada palavra bem devagar, como se falasse com uma criança pequena e não com um homem feito. O rapaz seguia estático. Nunca tinha visto um menino naquele canto com cabelo tão comprido, mas, agora que pensava, talvez ele estivesse completamente só, pois parecia ter cortado as mechas com uma faca rudimentar.
Seu rosto era longo e arredondado; suas narinas eram largas e bem definidas; seus olhos eram pequenos e âmbar. Mesmo à noite, Isidoro conseguia discernir as cores marrom, vermelho e laranja que compunham seu corpo inteiro, parecendo uma estátua de argila trazida à vida.
Após um instante de confusão da parte do outro, e de hipnose involuntária por parte de Isidoro, ele obteve sua resposta:
— Por… que… você… fala… assim? — Era a mesma voz mágica e cantada que ouviu à distância, disso tinha certeza. Ao dar mais dois passos, notou que havia algumas algas enroladas no cabelo que caía na altura do peito.
Isidoro ficou nervoso.
— Não tinha como saber se me entenderia, pois — justificou sua percepção errônea, vinda de muitas irritações desde que saíra da navegação que vinha de Lisboa a respeito de “esses índios terem de se acostumar com a civilização mais rápido” —, podia não ter entendido. A maior parte do seu povo não entende.
O jovem sorriu. Suas sobrancelhas eram imperceptíveis, o que tornava mais difícil saber o que ele pensava.
— Pois entendo. E você, entende? — Tirou o braço direito da água, brincando com a superfície para movê-la com seus dedos. Isidoro franziu a testa cheia de linhas apertadas, parecendo madeira clara e velha.
— Seu português é bom. Aprendeu com quem?
O sorriso se repetiu. Quando olhava para ele, Isidoro, que estava acima da pedra, não precisava erguer o queixo, só os olhos, mostrando muito da parte branca.
— Aprendi com ninguém.
— Sozinho? — Isidoro tirou o chapéu, ficando de cócoras para ficar mais próximo da altura do jovem. — Isso é impressionante.
Apesar dele não ser muito alto, seu trapézio era largo e o corpo afinava para baixo, criando um formato triangular. A clavícula pareceu afundar na pele quando ele deu de ombros.
— Seu tipo anda aparecendo cada vez mais em minha frente. Impressionante seria se não aprendesse. — Apesar dele estar submerso há muito tempo, as pontas de seus dedos inquietos não estavam enrugadas. — E como falam…
— Deve ter talento para isso. Eu nunca aprendi língua nenhuma só de ouvir. Canta bem, também.
Esse comentário captou o interesse do jovem mais do que as outras coisas que dissera. Ele apoiou as duas mãos na pedra que Isidoro estava, e inclinou o torso para frente.
— Não vai me dizer que gostam de música, de onde você vem.
Isidoro aproveitou para sentar na pedra, mesmo que molhasse a parte de trás de suas calças de algodão.
— Como não gostaríamos! Adoramos, na verdade. — Tinha esquecido de Andirá e do alazão morto no meio da floresta, lembrando-se das cantigas portuguesas de sua infância, das mulheres cantando à noite e da música erudita. — Acho que não deve ter conhecido as pessoas certas.
— Tenho minhas dúvidas sobre isso. — Os olhos dele pareciam não ter cílios, e a pele brilhava na clareira. O rapaz olhou para cima, para o céu negro e estrelado. — Terão os invasores suficiente sensibilidade para qualquer tipo de coisa bela?
Foi a vez de Isidoro de estufar o peito para frente.
— Acha que somos todos brutos?
— Não acho! — A água agitou-se debaixo do mais moço, como se peixes passassem entre as pernas que não via. — Tenho certeza.
Isidoro sentiu as bochechas queimarem de vergonha e revolta, como se fosse de novo um moço desajeitado.
— Pois saiba que está muito enganado. Se cantar de novo, posso mostrar como apreciamos tudo que é bonito. Não estaríamos aqui se não apreciássemos.
— Acho que temos diferentes visões do que é apreço. — Os dedos finos correram por seu cabelo, sem tirar as algas, só recolocando-as como se fossem flores no cabelo de uma menina. Foi aí que Isidoro notou que, começando no meio do peito e descendo para a barriga que não via, havia uma enorme mancha branca na pele dele. — Mas canto, sim. Será que consegue ficar quieto e ouvir?
A pergunta foi retórica, mas Isidoro fez questão de responder:
— É claro que posso!
O jovem apoiou as gemas dos dedos sobre a água, só sentindo de leve o rio, sem tocar as palmas nele. Com isso, fechou os olhos e entreabriu os lábios. A voz que dali saiu parecia vinda de lendas, vibrando no pomo-de-adão de seu pescoço comprido, fazendo a água já trêmula se mover conforme a melodia. Isidoro sentiu-se atônito, quase oco, distante de toda a realidade. Para ele, não existia mais nada, nem lembrava mais onde estava.
De quatro, estendeu uma mão para frente, e interrompeu a canção encantada, tocando-o e segurando seu queixo.
A música quebrou-se, e voltou para a realidade. A pele do menino era fria e escorregadia como a de um réptil, mas isso não o intimidou. O sorriso voltou à boca dele.
— Parece que não consegue mesmo ficar quieto. — Os olhos ocre sob a lua fitaram Isidoro e sua pele seca, branca e envelhecida. Ele colocou a mão sobre a do coletor de impostos.
— Não pude controlar meu corpo — argumentou, com seus olhos pretos vidrados. O rio ficou inquieto. A cauda enorme de um pirarara rebateu na mesma pedra em que estava, perto de seus joelhos. Nunca tinha visto nada assim de perto. O único peixe do tipo que viu foi no mercado: comprido, acinzentado em cima e branco embaixo, com cinco barbatanas de um laranja intenso. — Sigo sem conseguir.
Não precisou fazer mais nada. A mão do menino d’água percorreu seu braço até alcançar seu pescoço, erguendo-se para cima. Mostrou um pouco mais da mancha branca de nascença, chegando a colocar o corpo para fora até o umbigo.
Ele voltou a cantar mesmo quando chegou perto de seu rosto, seus lábios úmidos de água doce beijando seu maxilar e empurrando a gola da camisa para o lado para abraçar sua nuca, ficando pendurando como um infante.
Isidoro ajudou a erguê-lo. O pegou pela cintura, notando como era muito mais pesado do que tinha imaginado, e o trouxe completamente para cima da pedra. Seus olhos estavam fechados, apenas aproveitando os beijos, aceitando as mãos e movendo as pernas para livrar-se das calças. Por fim, deitou de costas na rocha e trouxe o moço para cima dele, sentindo o cabelo que pingava cair sobre sua cara.
Colocando a língua para fora, entrou na boca dele, suave, macia e molhada, com dentes pontiagudos que lhe fincavam.
Quando Isidoro abriu os olhos, era tarde demais. Andirá chegara correndo aos tropeços na sua perna de pau, mas não foi veloz o suficiente para alcançá-los. Tudo que viu foi o que contou depois: Isidoro, o português que contratara seus serviços, tinha matado o cavalo e se perdido na floresta, tentando encontrar o canto que também ouvira. Ao chegar à cachoeira, seguindo as instruções que ele deixou numa carta, viu o Ipupiara, metade gente metade pirarara, fazer o que já se sabe que a criatura faz. Como os cronistas anteriores descreveram, o ser era grande e repulsivo, tinha longos bigodes, fedia, e matou-o a beijos e abraços.
A cena, porém, só piorou. Quando o Ipupiara largou o infeliz, agora completamente na forma de monstro, comeu seus olhos, seus dedos das mãos e pés, sua genitália, e banhou a água em sangue. Andirá ficou lá, paralisado, até que viu o Ipupiara virar para ele, mergulhar na água e aparecer bem à sua frente. Já não parecia a besta aquática, mas um rapaz de cabelo muito comprido. Olhou para dentro dos olhos opacos e cor de mel do ondim e para sua pele pegajosa, gotejando pingos vermelhos das extremidades.
— Andirá — ele chamou, falando no tupi-guarani melódico de sua mãe. — Sua perna sente saudades embaixo da água. Veio deixar eu pegar a outra pra fazer-lhe companhia?
— Não de novo, diabo — apontou o dedo para a cara dele, mas isso só aumentou o jeito risonho do outro. — Não vou cair na sua mais uma vez.
— Eu sou paciente, Andirá… — a resposta foi um aceno manhoso, movendo só os dedos. — Você sabe que voltará.
Se Andirá tivesse menos cuidado, teria ignorado o fedor de carne estraçalhada, mas Andirá não era Isidoro, e decidiu correr de volta pelo mesmo lugar de onde veio.
Sua condição de manco fez com que fosse lento, mas, quando alcançou sua égua, voltou para o vilarejo a toda pressa. Contou a todos a história como tinha sido, adicionando ainda que o cavalo morto tinha voltado à vida e que ouvira o canto do diabo por todo o caminho. Quanto ao Ipupiara, muito se ouviu falar nele até que caiu no esquecimento no século seguinte, substituído por sua irmã Iara. Até lá, muitos outros homens também desapareceram, mesmo com os avisos de Andirá de que por aquelas terras havia uma fera, meio peixe meio gente, que atraía com seu canto viajantes para o fundo da água.
da leitura deste conto notei que existe muito do nosso próprio folclore que nós desconhecemos e muito. Entretanto, preciso apontar que não minha opinião os diálogos ficaram superficiais demais, e não muito excitantes, porém o ponto positivo é que o autor se concentrou em externar sentimentos e emoções do nosso amiguinho lusitano,isso foi o que deu suporte na condução dos diálogos. Movido pelo interesse de ler não pelas interlocução entre os personagens, mas pelo suporte das perspectivas e sentimentos de Isidoro. O personagem Andirá ficou um máximo! Ele demonstrou um pouco do jeitinho brasileiro dados as coisas. Ainda sobre os diálogos, temos aqui dois personagens, um Português, um brasileiro e um Fantástico, e claro, fantasticamente tupi guarani… E… Poderia ter sido melhor aproveitado isso colocando o “sotaque” e até mesmo a língua de cada um, as dificuldade que isso geraria. Valorizaria muito o texto, muito mesmo, falo isso porque temos por exemplo a escritora Nacional Renata Ventura, que usou e abusou disso em seu trabalho em “A Arma Escarlate” (recomendo). Assim, acredito que o texto ficaria com uma riqueza peculiar. Do geral, valeu a pena a leitura, afinal, folclore né…
Adorei o conto! A história me prendeu desde o início. Gostei bastante da originalidade de tratar de um tempo tipicamente da cultura brasileira, principalmente se passando no Brasil colônia.
Apenas com o intuito de acrescentar à história, chamo a atenção pro fato de que não existe um idioma “tupi guarani”, mas sim um tronco lingüístico. Os povos nativos falavam tupi por quase toda a costa do Brasil, quando os portugueses aqui chegaram. A partir de São Vicente, e em direção ao sul, língua falada era o Guarani. Após a chegada dos lusitanos, o contato entre o português e o tupi (e também idiomas de outros troncos linguísticos) deu origem à “língua geral”, que era a falada pelos bandeirantes. Acredito que a substituição do termo “tupi-guarani”, presente no texto, por “língua geral” ou até mesmo por “tupi” daria uma maior precisão histórica.
Como disse o João Pedro no comentário acima, caso você queira incluir palavras tupis no text, pode me consultar.