Máquina do tempo

Editado por Enrico Tuosto

Na primeira vez em que a viu apertar um beck, escondido em uma salinha de depósito contígua à sala de artes de sua escola nova, você tremia como o novato que era – novato em matar aula, novato em fumar maconha –, quicando seu olhar entre a porta de madeira empenada e a garota de saia colegial azul-marinho. E se flagrarem nosso crime?, balbuciou, demorando-se em cada caixa de papelão, cada resma de papel A4, cada pote de tinta guache. Ela riu alto, jogando os cabelos tingidos de preto para trás. Você implorou para que fizesse silêncio, ela riu mais alto ainda e disse que matar aula não era crime. Mas fumar maconha é, você falou, encarando a mão em concha da garota, repleta de grãos verdes que ela moía com movimentos rápidos dos dedos. A culpa é o pior castigo, os olhos dela faiscaram. Ia argumentar que a culpa era inevitável, mas quando a viu lamber a seda, silenciou qualquer arrependimento.

(Ela sempre gostou de Dostoiévski. Três anos atrás, você pagou uma pequena fortuna num volume raro de “Irmãos Karamazov” que encontrou num sebo em Moscou, durante uma viagem para alguma de suas inúmeras conferências. Pincelou milhares de vezes a cena em que daria o livro a ela – aí você diria tal coisa, ela responderia tal. Mas agora que finalmente estavam cara a cara, a coragem para entregar-lhe o volume desbotava como a pintura que compôs tão habilmente na tela de sua imaginação.)

Agora ela aproxima a seda do rosto, a erva alinhada no centro. Esconde a língua atrás do papel, mas ao invés de abocanhá-lo como um glutão lambendo dedos engordurados, como a maioria das pessoas que você já viu bolando um cigarro, move a cabeça da esquerda para a direita – o movimento certeiro e gracioso de um gato. Entrecerra os olhos e os flocos verdes se agitam com a proximidade do nariz sardento. Então te encara com olhos semicerrados, sorri de canto de boca e acalenta o cigarro entre os polegares e indicadores.

Você permanece calado, temeroso de que qualquer movimentação perturbe a santidade do ritual de lamber e enrolar, enrolar e lamber. (Em todos os lugares em que esteve, procurou uma garota que enrolasse um baseado como ela. Depois de fumar mais de uma centena de cigarros de weed, unkraus, l’herbe e gras, concluiu que jamais, durante toda a milenar relação do ser humano com a maconha, houve alguém com o talento dela.)

Por fim, ela umedece os lábios, deixando um rastro brilhante na boca. Os dentes escorregam pelo lábio inferior e você ouve os tambores rufarem, ou o seu coração, ou o sangue pulsando entre suas pernas. Ela envolve o baseado em um beijo – um faquir engolindo uma espada –, e, em um passe de mágica, com a habilidade cirúrgica de uma estrela de filme noir mordiscando uma azeitona de Martini, retira da boca um cigarro perfeitamente enrolado.

Oito anos, e isso é tudo que temos a dizer? Ela retira um isqueiro Bic com o lacre de segurança raspado de um dos bolsos do roupão azul bebê. Acende uma das pontas retorcidas e dá uma longa tragada, apoiando a cabeça no encosto estofado da cama. Segura a respiração por alguns segundos antes de soltar uma onda de fumaça que escorre em câmera lenta pelas paredes do quarto.

Você está ótima, Milena.

Milena apoia a cabeça no ombro direito, os olhos piscando preguiçosos. Você nunca soube

dizer ao certo a cor dos olhos dela – olhos cor de trapaça, acostumou-se a pensar. Ela ri, um riso machucado.

Não preciso disso. Nunca precisei.

Sente vontade de se levantar e abraçá-la, contar que em todos esses anos fora do Brasil nunca conseguiu esquecê-la, entregar o livro e vomitar toda a conversa mental que teve consigo mesmo, mas agarra-se aos braços da cadeira, porque no fundo sabe que isso só a machucaria ainda mais. Milena ergue as costas do encosto da cama com uma naturalidade forçada, ereta como uma ponte levadiça, os dedos crispados no lençol. Um cilindro de cinzas escorrega do cigarro em seus dedos e forma um furo quase imperceptível no lençol com a logotipo do hospital. Em respeito, você afasta os olhos do buraco, como faria se o robe escorregasse dos ombros dela. Então levanta, pega o baseado, rascunha um sorriso e dá uma volta pelo quarto.

Asséptico e arrojado. Paredes brancas o suficiente para tornar o ambiente mais claro, mas sem estenderem-se em sua brancura a ponto de lembrarem um hospital. (Você traga o baseado. Não tosse, e torce para que ela tenha percebido). Um sofá verde limão. Duas cadeiras de mesma cor ladeando uma mesinha redonda com um arranjo de flores do campo (sua mochila jogada ali no chão entre as cadeiras, perturbando a descontração projetada do ambiente). Uma TV de tela plana acoplada a um armário de madeira creme. Em uma das estantes, uma máquina do tempo. A máquina do tempo que você construiu para ela. (Milena aos onze anos de idade sentada no jardim da casa dos pais, abrindo com uma chave de fenda uma caixinha de música. O que você está fazendo? Uma máquina do tempo.)

Caminha até a janela. Solta a fumaça e uma neblina cinzenta como uma nuvem carregada obscurece o espectro das roseiras e arbustos e fontes e pessoas deslizando em cadeiras de rodas. Volta a visão para a cama, para a mulher enrolada no robe azul claro, os olhos de trapaça e os cabelos negros. (Volta para o dia em que a viu pela primeira vez – a filha do chefe do seu pai –, sentada na cama de dossel no meio do palácio cor-de-rosa que era o quarto dela, escondida atrás do volume pesado de “Irmãos Karamazov”, compenetrada como um adulto, rígida e solene como uma boneca vitoriana. Claro que, naquela época, você não teria como saber.)

Por que você escondeu isso por tanto tempo, Milena? Por que não me contou?

Ela toca na beirada do colchão, no ponto em que a brasa atravessou o lençol. O que deveria dizer? Soa calma. Sou doente, não me trate como uma pessoa normal?

Você arrasta os pés até a cama e senta-se na ponta, com cuidado. Sente a mão esquentando e lembra-se do cigarro. Quando o devolve, seus dedos se tocam. Um instante apenas, o suficiente para que sua circulação acelere. (Nunca poderia trata-la como uma pessoa normal. Nunca pôde.) Sei lá, talvez eu tivesse o direito de saber…

Milena sorri e estica um braço em sua direção. Os dedos longos se emaranham em seus cachos e ela os despenteia, como fazia quando você era bolsista na escola de crianças ricas dela. Saber sobre minha condição não mudaria nada.

(Mil cenários. Revelar seus sentimentos por ela. Desistir da bolsa no exterior. Medicina. Nova área de pesquisa. A cura. Sua vida e a vida dela. A vida dos dois.)

Mas tudo que você diz é: Eu nunca teria ido embora.

Ela traga o baseado e solta a fumaça com um suspiro. Volta a agitar-se na cama. Você oferece um braço, passa o outro em volta da cintura dela e a coloca no chão. Embora esteja mais magra do que nunca, estima que ela deva pesar mais de oitenta quilos.

Milena põe o cigarro em um cinzeiro de vidro e caminha até a estante. Parece uma daquelas bonecas patinadoras dos anos oitenta, robótica e ritmada, nenhuma articulação da cintura para baixo.

Teria ficado, se eu tivesse falado. Mas a vida é o que a vida é, ela diz, enquanto dá corda no relógio da máquina do tempo. Você ouve o barulho da manivela girando até que um tec anuncia que o mecanismo está armado. (Não chore, Milena, por favor… Olha só, eu vou consertar pra você. Eu vou construir uma máquina do tempo pra você.)

Em dois anos, os músculos do meu quadril vão se transformar totalmente em pedra. Ela soa divertida, como se falasse sobre uma amenidade qualquer. Em dois anos terei que decidir se ficarei o resto da vida sentada ou em pé. (Não quer chorar na frente dela.) Mas eu não vou. O quê? Não vou escolher. Milena vira-se em sua direção e sorri, os olhos de trapaça brilhando como duas pedras furtacor. Não pretendo ver o dia em que me transformarei numa estátua viva.

O tic tac tic do relógio marca a marcha do tempo. Sente uma pressão na boca do estômago. Então, você vai…

Eu vou viver. Pela primeira vez, a voz dela soa nervosa. Vou recuperar o tempo que esse hospital me roubou. De que adiantaram oito anos aqui, fugindo de você, fugindo do mundo, se meu corpo continua se transformando em pedra?

Quando menos percebe, está ao lado dela. Tenta abraça-la, mas Milena se afasta e lhe lança um olhar tão frio que por um segundo é como se você estivesse petrificado. Então, ela amolece. Aproxima-se e segura sua mão.

Foi por isso que te procurei, Milena diz. Você escorrega as mãos pelo braço dela, sentindo a pedra por baixo da pele translúcida. Me tira daqui?

Levanta os olhos para encará-la, ainda absorvendo o impacto do pedido. Milena está séria, os olhos enigmáticos como o fundo do oceano. Na estante, o alarme da máquina do tempo dispara. A tampa da caixa de música abre com um estalido e uma bailarina de plástico rodopia ao som metalizado do Lago dos Cisnes.

Então, vamos embora daqui?

Author: Luísa Montenegro

Luísa Montenegro já teve uns empregos dignos de ficção: já foi professora de pré-escola, apresentadora de TV, analista de marketing de filmes adultos e dona de brechó. É mestra em Comunicação pela Universidade de Brasília (tem até foto com sabre de luz para provar), e atualmente cursa doutorado na mesma universidade. Em 2015, seu livro “A Menina Estrela d’Alva” ficou em primeiro lugar na categoria infanto-juvenil do 5º Concurso Agostinho de Cultura. Foi publicado pela Editora Adonis, em 2017, e selecionado para lançamento em 2018 na Bienal Brasil do Livro e da Leitura. “Máquina do Tempo” é seu primeiro conto publicado.

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