Editado por Rodrigo van Kampen
Então Nilsinho Pause, o artista baiano mais extravagante e odiado de todos os tempos, observa com um dedinho no lábio os convidados comerem da broa, mingau e bolo de fubá oferecidos no vernissage. ‘Este é o meu corpo’ é o nome do trambique, e possui toda uma ritualística própria para exibição, da indumentária dos garçons (vestindo tulups abertas por cima de mankinis) à cerâmica marajoara usada para servir a comida. Sim, tinha sido um longo caminho desde os mercadinhos sujos de Itaparica até o Le Maison du Schwarzkogler, e Nilsinho sabia disso; não era qualquer amador de beiço frouxo que conseguia sua vez no museu mais chique de Paris, um dos últimos redutos de arte respeitados no Velho Mundo. Um olho no gato e outro na porta. Esse era o lema de Nilsinho.
Convidados se aglomeram. Executivo de Sophia Antipolis, exalando fator humano, aproxima-se do artista, acompanhado de uma übermodel de dois metros. A über veste macacão de paraquedista Hyein Seo e usa muletas que espirram Mon Guerlain de cinco em cinco minutos.
“Do que é feito?” pergunta o executivo, mostrando o prato. Limpa um farelo de milho do canto da boca.
“Da placenta de mamãe”, Nilsinho responde, num francês de Feira de Santana. A über gargalha como um ganso, jogando as muletas pro alto.
Típico Nilsinho. Em suas performances e trambiques, sempre mistura elementos extraídos do próprio corpo, de alguém da família ou do seu círculo de amigos. Já se apropriou de sangue, sêmen, corrimento, caspa, merda, mijo, catarro… Quando marca uma visita, geral usa capacete e coloca câmeras dentro das privadas, atenta aos seus movimentos. Nilsinho não se abala. “Arte do quinto mundo, djôu”, ele diz, imitando sua amiga bioquímica e comedora compulsiva de majun. “Arte marginal pra cacete.” Tudo é válido, tudo é possível.
Bienal do 798. Nilsinho cata voo pra Pequim, ansioso por exibir um trambique fresquinho para o Pavilhão Latino-Americano. Invade o Desvio para o Vermelho, do Meireles, amarrando cordas de varal de um canto a outro da sala; sobre os varais, dezenas de aie-aies pendurados, olhos inchados e verdes encarando visitantes e jornalistas. Eles são alimentados por assemblers que correm pelos varais, levando um shake de mel e vermes que é esguichado diretamente na boca dos bichinhos. Após uma semana de exibição, o fedor de urina e fezes de lêmure era tanto que amolecia a curiosidade de qualquer um interessado nas obras da ala brasileira. Boatos de que Argentina e Venezuela ficaram chateadas.
Vestindo roupas tradicionais herero, o diplomata angolano pergunta: “Isso aqui também faz parte da obra?” Ele olha para a sola do sapato, enojado.
Na hora do Programa Matinal, desempregados, senhorinhas e estudantes movidos a Red Bull não desgrudam os olhos da holotv. O apresentador faz uma dancinha para os convidados, ajeitados confortavelmente em um largo sofá de couro de teiú. Entre eles, Nilsinho, rei dos trambiques; ele usa chapéu astrakahn e um mackintosh de borracha fluorescente, apesar da temperatura beirando os vinte e oito graus no estúdio.
“Nilsinho”, fala o jornalista do escorressangue carioca, “aquela obra que deu um bafafá em São Paulo foi realizada por você, não foi?”
Nilsinho faz que não com a cabeça. “Sim”, ele responde. “´Deixa o Bosch Saber Disso` é o nome dela. Fiz pro aniversário da cidade. Deu um trabalho arretado instalar aquelas palmeiras todas, mas o resultado no final me satisfez mesmo, viu”, ele diz, dando uma piscadinha para Goro, o cantor de quatro braços, que revira os olhos.
“Obra bem controversa… qual o porquê disso?”
“Olha, meu rei, aquele povo de São Paulo é meio afrescalhado, num sabe? Posso estar enganado, mas imagino que dessa vez tenham sido os servos pneumáticos que instalei em cada uma das duzentas e oitenta e sete palmeiras da obra. Eles faziam cada árvore tremer sempre que alguém ligava pro um-nove-zero pra denunciar morte ou estupro. Os workaholics lá ficaram meio desconfortáveis, eu acho, vendo aquelas árvores todas tremendo o dia inteiro como uma horda de esquizofrênicos bem no meio da Paulista. Quando chegaram com as retroescavadeiras, eu fiz questão de me acorrentar com meus amis naquelas árvores. Foi eu ameaçar falar em indenização que voltou tudo com as rodinhas pra trás, mostrando bundinha igual um bando de babuíno. Chulepei mesmo. Bando de afrescalhado.”
São Paulo para trás, Nilsinho resolve atacar Êmigê (terra dos cu preso, como ele gosta de falar) em pleno FIGO – Festival Internacional de Gastronomia de Ouro Preto. Como artista convidado, ele expõe um trambique numa das espeluncas locais. Escolhe o Vertigem, único restaurante escheriano autorizado em todo o estado (shows de comédia, geribirita caseira e sorvete de balut com bico e tudo). Pessoas bebem em mesas que se assemelham a escadas, fazendo os garçons subirem e descerem por degraus impossíveis, pós-newtonianos (plaquetas na saída, energizadas por Mycoplasma mycoides, avisam: Galera da saideira, de pés grandes e/ou do IFAC, beware). Na cozinha do Vertigem, Nilsinho dá o berro: “Vê aí a esponja de lavar prato que vocês mais usaram hoje.” Com DNA de saliva dos clientes extraído da esponja, fios de cabelo acumulados em pés de cama de estudantes de Engenharia Civil e um boneco To-Pleasure, modelo Incubus king-size, Nilsinho projeta com ajuda dos graduandos do Departamento de Bioinformática da Federal de Ouro Preto um organorreceptor, modelo golem, capaz de servir os clientes do Vertigem, calcular tensão em vigas, exibir a temperatura e trabalhar como guia local. Coisas vão bem até que um decano acha que seria uma boa dar uma carreira de brilho para o aborto de proveta. Bichão aprova o gosto e, em épocas de fissura, entra em amoque e começa a espancar pessoas na rua e a destruir igrejas setecentistas (professores de História da arte têm AVC um após o outro, caindo como dominós pela Rua Direita). Terror percorre a pequena comunidade, até que a república Castelo dos Nobres resolve tomar o golem como bicho, alimentando-o com doses diárias e controladas de pó requentado em espelho novecentista e Sega Saturno. Projetão torna-se rei do carnaval e patrimônio da cultura ouro-pretana, virando até personagem de um dos blocos. Lado obscuro da história? Relatos de turistas de quinze anos desaparecendo são abafados com as planilhas bem coloridas do Secretário de Turismo, encantado com o aumento na arrecadação da cidade. Parte da verba municipal engrossa por tabela uma das contas bancárias de Nilsinho, que não para de receber convites de outras cidades turísticas.
Mesmo assim, depressão pós-riqueza atinge nosso herói. Tóquio, Londres, NY, Sidney, Abuja e Rio… todas as grandes já haviam sido abençoadas pelo toque único de Nilsinho, que acumulava prêmio em cima de prêmio, homenagem após homenagem. Última delas, doutorado Honoris Causa pelo Instituto Günter Brus, em Colônia (em seu discurso de agradecimento, Nilsinho defende os serviços prestados à arte por David Paker Ray e passa uma hora louvando os benefícios da laranjinha capeta pra acabar com mau cheiro nas axilas). Mas nada disso parece valer de nada… No auge da carreira, trinta e dois anos nas costas, Nilsinho começa a repensar sua vida, sua ouvre. No fundo, no fundo, seu verdadeiro sonho nunca se realizou: ter uma rua com seu nome em Itaparica, sua cidade natal. Apesar da infância difícil — menino de rua, entupido de heroína verde, espancado por locais, corpo marcado pela violência e pela cor do vício —, ele ainda amava a terrinha. Assim, decide agir por conta própria. Passa meses trancafiado no seu bangalô de quatro andares na Rocinha, planejando seu maior projeto. Envolveria transformar um dos seus braços num pequeno baobá, árvore sagrada do candomblé. “Sim, a ilha agora vai ter um pouco do meu amor”, ele canta em falsetto, toda comu ouvindo.
Para colocar em prática o novo trambique, Nilsinho corre atrás duma velha amiga, Adelaide Bedu, bioquímica de um grupo farmacêutico sino-nigeriano, baterista do MegaCutie e garagista nas horas vagas. Eles sorvem garrafas de tarubá no apê dela, localizado no disputadíssimo conjunto IAPI, enquanto fumam charos gordos de haxixe uruguaio.
“E o que eu ganho com isso, djôu?” Bedu pergunta, de quepe com Totenkopf e rodopiando uma baqueta à la Neil Peart.
“Fama”, é a resposta de Nilsinho, depois de soltar a fumaça dos pulmões. Ele tosse, cospe e enxuga uma lágrima, de olho se tem casquinhas de caspa no chão. “E uns réis também, claro.” Nilsinho vive a usar gírias do tempo do vovô. Típico Nilsinho.
“Bão… isso vai pedir umas sessões de xenotransplante, uns tiros de gene e uns mergulhinhos na sua epigenética.”
“Mergulhinhos… mergulhinhos pra quê?”
“Entropia, filhote. Doublar pra onde papai e mamãe escorrem pra fora da sua pele.”
“Sei, sei…” Nilsinho fala. Sabe porcaria nenhuma.
“Fora isso, vou precisar duma caralhadinha de plasmídeos dourados.”
“Dou…rados?”
“Ouro, djôu, ouro”, ela diz, esfregando o polegar no indicador. “Orienta green goo?”
“Green-hã?”
“Green goo”, ela balança os dedos no ar como feiticeira. “Gosma verde, melecona. Estilo Caça-Fantasmas, mas Chernobilzão.”
“Nem beiro.”
“Entropiza”, Bedu fala. Vira o tarubá e arremessa longe a garrafa, logo absorvida pelos desmontadores inatos ao cimento e à tinta da parede. “Ma vamo lá. Cê tá com a nota mesmo…”
Muito bisturi, cartuchos de pistola de gene e guaraná Jesus depois, Nilsinho sai da garagem de Bedu com seu novo projeto: o braço-baobá mutante, bichão capaz de crescer e diminuir à sua vontade. Como uma ereção mental.
“Achtung com o que vai beber naquelas mixolabs porcarientas, djôu”, Bedu avisa.
“Ja, ja, Fräulein”, Nilsinho concorda, sentindo o corpo pesar dum lado. Fora isso, sente-se radiante como um colegial no último dia de aula. A tarde inteira só pra Doritos, videogame e punheta telecinética. O braço-baobá deu uma esticada, mostrando os veios-veias de madeira. “Povo da ilha vai ter um troço”, Nilsinho comenta para si mesmo, dando pulinhos de satisfação.
De volta a Itaparica. Nilsinho passeia pela orla, levando a tiracolo o baobá. Entre insultos e cuspes, ele sente-se como uma drag, desfilando para a multidão odienta e recalcada de plebeus da ilhota. Gritam-lhe bichona, veado, queridinho de satanás, aberração, cu de jambo, bibelô do Sudeste, joelhos de Ipanema, chuca de garoa, nádegas de pão de queijo, nazistinha do agreste, entre outros e vários nicks adoráveis. Nilsinho dispara um beijo e um sorriso, saindo a rebolar pela areia esvoaçante e quente.
Até o dia em que esquece o alerta da Bedu e bota os pés num mixolab na rua do Marcelino. Lá, ele toma uma vitamina de abacate curtida em biocilindro e processada em um sintetizador de DNA Applera. Pra azar de Nilsinho, o Applera estava infestado com traços de teleosporos, uma variedade Tierra del Fuego do Ustilago maydis. Nilsinho tem nem tempo de colocar os pés pra fora da espelunca quando o revertério bate. Sua coxa estica pra trás, adquirindo o tom lustroso e duro de baobá.
“Aposto que ser um daquelas pêigadinha”, comenta um turista ianque, dando uma mordida num podrão de carne de guará texturizada. “Cadê os câmera?”
Fazendo escândalo e dando faniquitos impossíveis, Nilsinho se arrasta pra fora. O sol baiano deixa ele zonzo, testa minando suor, o intestino quente como radiador furado sem selante. Sua regatinha das Spice Girls começa a rasgar, os rostinhos das meninas dando lugar ao seu peito, agora de madeira cabeluda.
Cai de joelhos na calçada, os transeuntes observando curiosos. Ninguém ajuda o pobre trambiqueiro, que se estrimilica todo, pedindo socorro. Brotos de tumor bolorento saem do seu corpo, caindo no asfalto quente como postas de carne podre feitas de madeira. Carésima calça Mainbocher se abre de lado a lado, exibindo a parte interna das coxas. As costas do boy, agora do tamanho dum jipe Surrey, apresentam lascas grossas de baobá que não param de crescer; Nilsinho olha ao redor, tenta abrir a boca, mas os dentes e a língua derretem moles, dando espaço pras pequenas raízes que começam a se infiltrar entre as pedras da rua. Plebe ulula louca.
Um vendedor de banana passa devagar de bicicleta e comenta: “Olha lá se não é aquele garoto que roubava cigarro e banana na feirinha… tá doendo, fidaputinha, tá…?”
Helicóptero carregado de turistas sobrevoa o antigo porto de Itaparica, completamente tomado por Nilsinho Boy. Rebocadores contornam a orla, esguichando dia e noite químicos para impedir o avanço dos troncos de baobá para além da ilha. É como observar um imenso prato de macarrão por cima. Prédios, casas, pontes… tudo virou espaguete. O helicóptero dá um rasante.
“Ach so”, o curador do MoMa, um alemão de meia-idade, diz ao microfone, “estamos sobrevoando agorra o última obra de Nisinho, artista brasileiro e gênio incompreendido da land art. Itaparrica, eh… Non zabemos o nome ainda. Acredita-se que uma nova sotsiedade vive embaixo dessa amontoado de folhas e galhos, e que os pessoas lá louvam figurra mítica e, por que nom, mistisch, de Nisinho Pause. Parece tratar-se de um culto de carga, se é que se pode falar assim. Mas, tenho que dizer, há críticos que acreditam que Nisinho se refugiou pros bandas do África, desaparecendo lá como Dom Sebastiom, o rrei lusitano, conhetsido pelos noias e zortilégios.”
“E é verdade que tudo isso saiu das costas dele?” pergunta um estilista japonês, em busca de influências tropicais.
“Dos costas e do Arsch, com perdom do expressom”, responde o curador. “O corpo dela virou um baobá gigonte. Non fossem os barcos aí embaixo, o obra, ou trambique, como Nisinho costumava chamar seus trabalhos, já teria tomado Brasil todo, do Oiapoque a Chuí. O que non seria de zurpreender, dado o ouvrre abtsurdo e fantástico de Nisinho.”
Um tronco da grossura dum moinho de cimento sai da ilha, agarrando como uma língua gosmenta de sapo o helicóptero, que é puxado para dentro de Nilsinho. Som de metal retorcendo. Enorme arroto ecoa, formando bolhas no oceano. Close no entardecer de Itaparica, quando então…
Não liga não, baby
Dá pra mim… o seu amor
Dá pra mim…
Não se preocupe que eu serei um bom rapaz
Quero seus lábios
Dá pra mim… o seu carinho
Dá pra mim…