Faltavam dois minutos para a meia-noite. Cybelle estava oculta em cima de uma lobeira meio torta que não devia estar ali, plantada clandestinamente. A rua estava vazia e a noite escura e abafada. Na esquina adiante, a lamparina a óleo lançava uma luz bruxuleante nos muros de pedra. Ela estava em um bairro bom de Entreposto, cada parede guardava uma casa enorme de algum rico comerciante da cidade. Ela nunca marcava com ele no centro ou na periferia, onde seria muito mais fácil fazer algo parecer um acidente.
Ela aguardava silenciosamente. Entreposto era uma cidade movimentada e uma das melhores coisas de uma cidade cheia de viajantes eram os quitutes. Vestia seu poncho negro de viajante que a fazia parecer um morcego gigante e esperava quase distraidamente pela chegada dele. Exatamente à meia-noite, o capitão da milícia apareceu e parou embaixo do poste, desconfiado, olhando para todos os lados e esfregando as mãos. Vestia o seu uniforme militar e, mesmo daquela distância, ela sabia que ele estava suando. Se aproximou sem fazer barulho só para assustá-lo.
— Vejo que recebeu meu recado.
O sargento quase deu um pulo e arregalou os olhos. Ela pôde ver que seu bigode e barbicha elaborados continuavam no mesmo lugar, assim como o corte de cabelo militar perfeito. Sua aparência era sempre muito bem cuidada para alguém que parecia constantemente tão estressado.
— Da próxima vez você podia tentar não enviar a porra do seu morcego para me avisar. — respondeu, irritado.
— Corte o papo-furado, Matos. Recebi a sua mensagem, você disse que tinha um trabalho pra mim.
O sargento assentiu:
— Eu tenho, mas não é aqui, é num vilarejo próximo, Figueira. — Ele de repente parecia mais nervoso. Mudou o peso das pernas, olhou por cima do ombro. — A população foi riscada do mapa. Os poucos que sobraram fugiram assustados, contando histórias horríveis sobre mortos que andam.
— Isso pode não ter nada a ver comigo, — disse Cybelle. — Até varíola ou uma gripe forte pode fazer isso com um vilarejo por aqui.
— Tão perto de Entreposto? — Matos fez uma careta. — Os comerciantes estão ficando agitados e os tropeiros fofocam. Muito! Tenho medo de que o que quer que fez isso lá, faça aqui.
— É um pouco mais difícil se livrar de trinta mil pessoas do que de meia centena.
— Não se for — ele fez uma pausa dramática — uma criatura.
Cybelle suspirou e correu as mãos pelos cabelos. Eram negros, uma faixa única de cabelos compridos bem no centro da sua cabeça.
— Sargento, não é um vampiro.
— Perto dum lugar grande feito Entreposto, que bicho senão o Sete-Pele? Não. — Ele balançou a cabeça. — É exatamente o seu tipo de trabalho.
— Ou um grupo de bandidos particularmente preparado passou por lá e riscou a cidade do mapa. Que evidência você tem?
Matos olhou para as esquinas e se remexeu.
— Que tal: poucos cadáveres? Velhos e crianças, especialmente. O resto sumiu. E o estado dos corpos, Deuses! — Ele fez uma pausa, se abraçando. — Marcas de mordida, garras e exangues. Satisfeita?
— Algum ferimento na parte detrás do pescoço, na região da medula? — perguntou Cybelle.
— Não. Por quê?
— Algum sinal de esmagamento?
— Em alguns… você sabe o que é?
Ela deu de ombros.
— Desconfio. Os corpos foram enterrados?
— Sim. Em uma vala comum do lado de fora da cidade. Não conhecíamos os corpos e bem, não havia familiares para enterrá-los… Você vai resolver? Há um assassino à solta, talvez um monstro.
— Eu topo — disse Cybelle. — Mas vai ser caro.
Matos fechou a cara.
— Vampira é você, sempre sugando minhas moedas.
— Buá-buá, trouxe meu adiantamento?
Matos hesitou. Cybelle colocou as mãos na cintura e suspirou.
— Você quer isso resolvido ou não? Sabe quando você vai conseguir um contato como eu?
— Sabe quando você vai encontrar um contato como eu? Sério, uma denúncia, um telegrama e você vai ser queimada como os outros — rosnou de volta o capitão.
Matos percebeu imediatamente que aquilo foi um erro. Pelos olhos puxados e finos de Cybelle, ele pôde ver suas íris amarelas brilharem. Ela deu um passo à frente.
— Ou eu posso fazer a sua pele apodrecer e cair aqui e agora só por diversão. Quem sabe causar uma hemorragia anal incontrolável para dar assunto ao populacho? — ela suspirou. — Vocês idiotas são todos iguais. A magia morreu! A tecnologia vai salvar a humanidade! A Ordem foi rompida e os feiticeiros malucos que merecem morrer na fogueira estão à solta! Mas é só algo tétrico, sombrio ou infernal rastejar para suas vidinhas que vocês precisam de um mago. — Ela enfiou um de seus dedos compridos no peito do capitão. — E você sabe disso.
O capitão engoliu em seco e esfregou o bigode.
— Certo. Me desculpe. Não é da minha conta.
Na verdade, era. O governo republicano perseguia e queimava os magos na clandestinidade e ser um mago legalmente vinha com uma série de restrições e limitações. Regras que iam diretamente contra todas as práticas de Cybelle. Além disso, a Maré de Ferro perseguia todos os não-humanos, espancando e matando-os se possível. Os fazendeiros entravam cada vez mais fundo em Azura, derrubando as florestas, aumentando suas fazendas, criando gado. O povo da floresta, agora que não podia mais ser escravizado por lei, era exterminado sem piedade. Matos era um capitão da guarda estúpido e assustado de uma cidade de médio porte. Ele não fazia a menor ideia de como era estar na pele de Cybelle. Ele não fazia a menor ideia de qual era a sensação de ser perseguido por todos apenas por ser como você é.
Ela pegou silenciosamente a bolsa de moedas que ele lhe passou e, sem tirar seus olhos cruéis de cima do capitão, Cybelle deslizou novamente para a escuridão, sumindo na calada da noite. Ela não iria para Figueira naquele momento e já tinha pagado uma noite na estalagem. Uma boa dose lhe faria bem àquela altura. Retornou para a hospedaria no centro decadente de Entreposto. As ruas eram cobertas por pedras enormes e irregulares, a calçada alta e mal cortada. Os prédios de quatro andares, malcuidados e manchados ou com os tijolos à mostra.
Encontrou a hospedaria cheia. Mais cedo, apenas um ou outro viajante apressado estava no lugar, mas a noite parecia ter acabado de começar para uma turma de tropeiros que se acotovelava no balcão e ocupava uma mesa larga perto da escadinha que levava para os quartos. O lugar fedia a suor e cerveja choca. Os homens, grandes e barulhentos, conversavam alto e tentavam apalpar constantemente a única garçonete que fazia o seu melhor para fugir deles. A garota era filha adolescente da senhora que tomava conta do lugar e parecia horrorizada com aquele bando de idiotas. Atrás do balcão, a mãe dela corria de um lado para o outro ao mesmo tempo que tentava manter um olhar vigilante sobre eles e sobre a filha.
Cybelle sabia que a coisa sensata a se fazer seria abaixar a cabeça e subir as escadas, fugindo daqueles animais. Mas ela, que já desgostava de humanos naturalmente, desgostava muito mais de homens bêbados assediando adolescentes. Sentar-se a uma mesa próxima seria uma má ideia, e se alguém mexesse com ela seria uma péssima ideia.
E estava contando com isso.
Após se sentar, os tropeiros não repararam nela, entretidos em uma fofoca que fez o estômago de Cybelle revirar.
— Fiquei sabendo pelo sargento que queimaram dois feiticeiros na semana passada — disse um deles. — Estavam se escondendo em algum matagal aqui perto, fazendo suas práticas hereges.
— E como eles foram encontrados? — perguntou outro.
— Um missionário — respondeu o primeiro —, um viajante da Maré de Ferro pegou uma estrada paralela e deu de cara com os dois à beira de uma cachoeira. Eram humanos, mas a lei da República é clara: todo usuário não autorizado pela Ordem…
— Sim, sim — disse o outro sem alongar.
— Ouvi dizer que os moradores já desconfiavam — disse um terceiro que ainda não tinha entrado na conversa. — Bebês das fazendas estavam sumindo, sendo usados pelos dois em seus rituais. Animais morrendo. As plantas crescendo descontroladas…
Houve uma exclamação de nojo e surpresa entre os bêbados.
— Tiveram o que mereciam. Eu concordo com a lei. Magos são muito perigosos para correrem frouxos. Tem que impor a lei — disse o segundo.
— Mas você não acha que morrer queimado é um pouco demais? — disse o segundo. — Eu não sei. Um tiro na cabeça ou a guilhotina parecem formas bem mais, hm, humanas de se…
— Aí é que está: eles não são humanos — disse o terceiro. — Não lembra como era antigamente? Quando tentavam enforcar algum mago, ele simplesmente ria, incendiava a forca e jogava uma praga de gafanhotos na cidade. A fogueira é a única forma de realmente matá-los e garantir que eles fiquem mortos.
Cybelle podia sentir que estava chegando ao seu limite. Foi tirada de seus pensamentos destrutivos quando a adolescente, esbaforida, parou ao seu lado com um estrondo ao deixar uma bandeja cheia de canecos vazios sobre a mesa.
— Sim, em que posso servi-la? — perguntou, ofegante.
— Vinho, por favor.
— Não temos.
— Cachaça.
— É pra já. — A adolescente saiu em disparada, os bêbados tentando beliscá-la e segurá-la com variados graus de fracasso.
Só então perceberam que havia uma mulher sentada entre eles. Trocaram exclamações e gracejos entre si como se Cybelle não estivesse ali antes do primeiro dos idiotas criar coragem.
— Olá, olá, o que temos aqui! — começou. Sem autorização alguma, puxou o capuz negro de Cybelle, revelando seu corte de cabelo e muito mais. Todos eles soltaram barulhos excitados como se fossem adolescentes. — Ora, vejam só! Uma bugre orelhuda!
Cybelle estava começando a repensar seu plano sobre não matar nem aleijar ninguém naquela noite, mas se ateve a ele pois um banho de sangue seria catastrófico para a adolescente e sua mãe. Se não fosse por isso, o tropeiro que ousara tocar em seu capuz já teria perdido a mão.
— Veja só, é uma elfa! — disse o primeiro. — É, como se diz mesmo? É… Reliar!
Por ter a lateral da cabeça raspada, suas orelhas de quinze centímetros chamavam ainda mais atenção. O fato de serem cheias de brincos, somado a seus olhos dourados e sua pele negra, não deixava dúvida sobre sua origem. Ela não disse nada, virando-se lentamente para encarar os tropeiros bêbados com seu mais cruel olhar.
— Que porra é um Reliar? — perguntou o segundo, incauto do que estava por vir.
— São os bugres — respondeu o terceiro. — Significa povo da floresta ou algo assim.
Um deles que estava longe e fora da conversa veio tropeçando e se jogou na cadeira ao lado de Cybelle, fazendo sua melhor cara de galã.
— Bom — começou —, todas as bugres que vi até hoje na cidade estavam na vida, mas nenhuma era tão bonita como você.
— Ei, nada disso, eu cheguei primeiro e minha bolsa está tão cheia quanto a sua! — reclamou o primeiro tropeiro. — Encoste nela e eu quebro a sua cara.
— Cavalheiros — disse Cybelle. — Lamento dizer, mas eu não estou na vida. Encostem em mim e vocês é que irão se arrepender.
Todos os tropeiros pararam a algazarra e se encararam por um momento. Ela escolhera suas palavras com cuidado. Sabia exatamente que efeito elas teriam sobre a masculinidade frágil de cada um deles.
— Isto foi um desafio? — disse o primeiro.
— De uma mulher? — O segundo.
— De um bugre? — O terceiro.
Cybelle sorriu. Lá vamos nós. O primeiro a se mover era o que se achava galã, ao seu lado. Ela o tocou levemente no braço e ele instantaneamente foi tomado pelo terror mais real, urgente e profundo que sentira em sua vida, fazendo-o simultaneamente gritar, liberar sua bexiga e intestino para só então cair desmaiado de puro pavor.
— Ela matou o Ricardo! — gritou um deles, se jogando sobre ela.
Ela desviou com facilidade e o tocou no rosto, fazendo-o ficar cego e entrar em pânico, gritando, tateando e logo se estatelando sobre o chão. Os outros vieram em seguida e os movimentos se repetiram. Cybelle desviava de um golpe bêbado e então só bastava um toque para ter a sua satisfação. O próximo começou a vomitar incontrolavelmente. Outro ficou surdo, correndo em confusão. O seguinte caiu no chão tendo espasmos. Depois dele, o que veio entrou em uma fúria incontrolável e atacou seus amigos próximos e o último apenas caiu paralisado.
Cybelle parou em meio aos diversos corpos desabilitados, caídos no chão ao seu redor. Devia ter sido a briga de bar mais rápida e mais limpa da história. A dona da hospedaria e sua filha a observavam, petrificadas e de queixo caído. A elfa vasculhou sua bolsa e colocou três moedas sobre o balcão.
— Chame o capitão da guarda, Matos. Ele me conhece e vai dar um limpa aqui — disse calmamente como se nada tivesse acontecido. Na verdade, ela não se sentia tão bem-humorada em semanas. — Agora, por favor, poderiam me acordar amanhã às sete? Tenho uma cidade para investigar.
Primeiro, Cybelle foi à Figueira durante o dia. O vilarejo era minúsculo, não possuindo mais do que trinta ou quarenta casas. O que mais chamava a atenção no lugar todo era uma figueira enorme e frondosa na praça central que ocupava todo o espaço ao redor. A elfa então explorou os arredores, encontrando nenhuma alma. Havia poucos sinais de ataques. Algumas marcas envelhecidas de sangue, sinais de garras em algumas das portas trancadas.
Mas o capitão tinha razão: não sobrara ninguém no vilarejo. Todos haviam morrido ou fugido. Nas portas barradas e trancadas, ela encontrou o desespero de diversos moradores. Símbolos religiosos talhados para afastar demônios, símbolos arcanos para afastar bruxas, oferendas para os deuses — e até alguns para demônios também — tudo o que pudesse ter efeito para afastar a terrível criatura que assombrou e matou pelas ruas da cidadezinha, sempre atacando à noite.
Era hora de encontrar e conferir a vala comum que o capitão mencionara. Apenas os corpos poderiam explicar o que tinha realmente acontecido naquela cidade. As possibilidades eram variadas, mas a falta de destruição e caos excluía a maior parte das bestas maiores da equação. O capitão deu um palpite bom ao chutar que um vampiro desolara Figueira, mas um vampiro nunca se importaria com um lugar tão pequeno. Não, era uma criatura nefasta e da escuridão, mas muito mais rude do que um vampiro. Porém a destruição era muito grande para ser uma criatura tosca como um papa-figo, por exemplo.
Ela circulou até a saída da cidade onde a terra revirada formava uma cicatriz tosca de cerca de trinta metros de comprimento, mas não muito larga. Ela se perguntou quantos cadáveres ainda estariam sob a terra. Cybelle estendeu os braços sobre a vala e se concentrou. Aquela não era a sua especialidade, mas ela não precisaria de muita magia para mover um pouco de terra. Chamando o vento, a elfa expôs aos poucos o buraco, jogando os montes de terra sobre a lateral. Um mau cheiro forte de podridão tomou conta do ar.
Corpos de homens, mulheres e crianças se empilhavam de qualquer jeito dentro da vala, muitos deles mutilados. Sem hesitar, Cybelle desceu para o buraco, não ligando de pisar sobre cadáveres frescos e recém-enterrados nem de estar violando a paz dos mortos. Aliás, violar túmulos já era meio que uma especialidade. Ela procurou por um cadáver em melhor estado, algum que estivesse com a boca o pescoço e a língua intactos. Não foi fácil. Muitos dos corpos estavam severamente mutilados ou em decomposição.
Ela analisou as marcas. Todas possuíam uma ferida na nuca, algo como uma mordida. Mas era a única coisa em comum: a grande maioria estava com o pescoço quebrado. Algo abrira a parte detrás de suas costas e chupara suas medulas. Muitos dos corpos apresentavam cortes profundos feitos com garras e haviam sido parcialmente devorados por algo insaciável. Até aí, nada demais. Alguns poucos corpos é que chamaram verdadeiramente sua atenção. As mordidas nas nucas destes se pareciam com mordidas comuns, mas deixaram uma marca enegrecida, podre, para trás. Estes não tiveram a coluna quebrada e estavam com os corpos quase incólumes, mas, além da mordida, estavam exangues.
Cybelle já sabia do que precisava para banir aquele mal. Caminhou mais um tempo pela vala em busca de um corpo com a boca em bom estado até finalmente encontrar um velho que aparentemente fora um dos últimos a morrer. Ótimo. Tudo o que ela precisava fazer agora era conversar com uma das vítimas, mas não conseguiria invocar nenhum daqueles espíritos durante o dia. Saiu da vala e esperou pela noite.
Quando a luz finalmente desapareceu, ela já tinha tudo pronto, aproveitando o resto do dia livre para estudar o seu grimório e fazer todos os preparativos necessários. A vila ameaçadora havia se tornado o seu quintal de divertimento. O que quer que a criatura tivesse em mente, ela poderia retaliar — e se divertir — com facilidade. Coberta pela escuridão, podia finalmente conversar com o velho. Tirou-o da vala e o posicionou em um círculo arcano cercado por velas, algumas ervas e cobriu com o sangue de uma galinha e algumas gotas do seu próprio. Ela colocou a mão sobre o cadáver e proferiu palavras mágicas de comando.
O velho abriu os olhos e se botou sentado, arfante, enchendo o peito morto de ar, em desespero e confusão.
— Quieta, criatura! — Cybelle comandou. — Me conte o que se passou aqui.
— O… o… o pastor! Ele voltou! — gemeu o velho em sons cortantes e agourentos. — E-ele comanda os mortos! E-e-ele devorou e escravizou os vivos!
— Este pastor, conte-me dele — comandou Cybelle. — Ele era uma boa pessoa?
O corpo do velho se convulsionou enquanto ele tentava balançar a cabeça negativamente com bastante afinco.
— Ele era o demônio, ele era… Dizem que ele ma-ma-matou os próprios pais, para herdar a casa… ele… ele levava criancinhas, meninos, para a ca-ca-casa, e… ninguém mais os via.
Cybelle fez uma careta e desviou o olhar. Um corpo-seco. Ela já havia enfrentado alguns deles antes, mas suas histórias nunca eram fáceis de engolir. Mortos-vivos rejeitados pelos demônios, voltavam para se vingar, poderosos além-túmulo. Eles atacavam suas vítimas por trás, esmagando-as com seus braços fortes e então as mordia na nuca, sugando todo o sangue usando sua língua grande. Além disso, ele podia transformar as vítimas em serviçais.
Ele precisava ser exorcizado e queimado. Apenas um usuário saberia o que fazer, ou alguém com aquele tipo de conhecimento, como um Perseguidor, um estudioso, um caçador ou um druida. Não havia muitos destes em Entreposto. A magia estava desacreditada, monstros como aquele podiam facilmente atacar uma cidadezinha como aquela repetidas vezes até riscá-la do mapa e ninguém faria nada. Figueira teve que ser destruída para Matos criar coragem e chamar uma usuária apenas porque ele estava se cagando de medo. A elfa sentiu a raiva ferver em seu peito.
— Vocês descobriram que era o tal pastor que sumia com as crianças? O que fizeram com ele?
— Pe-pe-pederasta! O perseguimos para fora da-da-da cidade. O enforcamos e o deixamos para os u-u-u-urubus.
— Seus serviçais, quantos são? — perguntou ao cadáver.
— O-o-o-oito — disse o velho. — Terríveis. Derrubaram portas, co-co-comeram… bebês!
— Certo. Preciso saber o nome do pastor.
Já era quase meia-noite quando os primeiros uivos cortaram a noite. Estava escuro, um escuro denso e assombroso. As lamentações dos carniçais eram altas e cortantes, capazes de gelar o sangue de um homem. Mas Cybelle não temia os mortos, na verdade, os preferia em relação aos vivos. Ela subiu no telhado de uma casa e esperou. Deixou a vala aberta, o cheiro da podridão logo atrairia as criaturas. Ela os viu se aproximando. Andando de quatro, deixaram sua humanidade para trás, seus membros se tornaram alongados, a pele branca como a lua, os dedos como garras enormes e compridas. Os corpos perderam os genitais e os cabelos e as orelhas e os narizes. Seus olhos se tornaram cinzentos e das bocas uma enorme língua escorregava para fora.
Carniçais, mortos-vivos inferiores, melhores apenas a zumbis, mas tão estúpidos quanto. Porém, muito úteis para quem pode dominá-los. Cybelle observou os arredores, mas não viu sinal do corpo-seco. Ele provavelmente só se revelaria em último caso. Como planejado, as criaturas inferiores entraram na vala e começaram a se banquetear. Ela então desceu com facilidade para o chão e parou em frente à vala, estendendo sua mão e proferindo algumas palavras mágicas.
— Ouçam-me! Ataquem agora!
Os corpos caídos de repente se estremeceram e se ergueram, agarrando e segurando os carniçais. Os monstros não se intimidaram, usando suas longas garras para arrancar e decepar. Cybelle fez um gesto amplo e complicado, espalmou diante da vala que instantaneamente foi tomada pelo fogo. As chamas subiram alto e os carniçais gemeram, ardendo em dor e ódio. Os zumbis de Cybelle não se intimidaram e mesmo em chamas, seguraram firme as criaturas. A elfa sentiu um pequeno gosto de justiça no ar. Mesmo sem alma, os corpos das vítimas dos carniçais haviam sido responsáveis por destruí-los.
Ela então sentiu uma presença mágica muito forte e maligna atrás de si e só teve tempo de se virar e usar uma magia de proteção para bloquear um ataque físico direto. Mesmo sem ser ferida, ela foi arremessada alguns metros, pousando graciosamente graças aos seus reflexos de elfa. Diante dela, com um sorriso assustador no rosto, estava o corpo-seco do pastor. Sua aparência era o de um corpo mumificado, parcialmente decomposto, com um estranho tom de bege, a pele seca salientando os ossos. Os olhos brancos e cruéis permaneciam no lugar e uma língua grande e negra serpenteava para fora. O resto de uma corda pendia ao redor do pescoço da criatura, não deixando dúvida de que era o pastor justiçado pelos aldeões.
Mexendo as mãos, Cybelle puxou uma língua de fogo da vala que derretia os carniçais e ateou fogo ao corpo-seco. A criatura se debateu, mas as chamas logo se extinguiram sem grande dificuldade. Enquanto o monstro reagia, ela fugiu, correndo em direção ao centro da vila e à figueira que lhe dava nome. Ele gemeu, guinchou e disparou em seu encalço. Nenhuma magia ou dano físico iria incapacitá-lo permanentemente enquanto ela não banisse seu espírito maligno. Fugindo, ela olhava por cima do ombro para ter certeza de que ele a perseguia.
Chegando ao centro da cidade, ela parou no meio da praça, a apenas alguns metros da figueira. Enquanto o corpo-seco se aproximava, ela fechou os olhos e estendeu as mãos para o chão. Uma ventania anormal começou a chacoalhar a cidade, fazendo a árvore frondosa se balançar, folhas e galhos voando por toda a parte. O monstro se aproximou e se preparou para o bote. Ele era rápido e poderoso e tinha plena consciência disso. Ele até pensou em dizer algumas palavras àquela elfa tola que ousava desafiá-lo, mas tinha raiva e pressa, pois pretendia estender a sua vingança adiante.
Como quase todo homem com poder, o pastor se tornara arrogante no pós-vida. Como já estava morto, se julgava indestrutível, mas Cybelle sabia que mesmo um ser rejeitado pelo inferno podia ser completamente apagado da existência. Impulsivo e descuidado, ele avançou. Cybelle permaneceu imóvel, pronta para o ataque. Quando o corpo-seco projetou sua longa língua, a imagem da elfa piscou por um instante e sumiu. Confuso, ele olhou ao redor e a encontrou em cima da figueira, sobre um dos galhos mais altos. Ela ergueu as mãos e as abaixou falando palavras mágicas. O corpo-seco foi arremessado ao chão, como se atingido por um martelo, e um círculo de fogo surgiu ao seu redor, cheio de marcas e símbolos arcanos.
— Espírito de Jefferson, eu o comando! — disse Cybelle com uma voz portentosa. — Você foi expulso do inferno, negado pelo céu e eu agora vou bani-lo desta existência! Eu condeno seu espírito ao Vazio! Parta, agora!
Ela abaixou as mãos novamente, como se golpeasse a criatura com um terrível malho. Com um som de baque, a ventania tornou-se incontrolável, quase uma tempestade. O corpo-seco caiu de joelhos e após um lamento longo e sofrido, tombou para a frente, inerte. Com um gesto curto, a elfa apontou as duas mãos para o cadáver que então pegou fogo e rapidamente foi reduzido a cinzas. Exausta e completamente coberta de suor, ela desceu da árvore com dificuldade, deu dois passo e então caiu desmaiada.
Acordou com o sol alto ardendo sobre seu rosto. Após alguns segundos de desorientação, lembrou-se onde estava. Uma dor fortíssima martelava em sua cabeça e cada músculo de seu corpo estava dolorido. Após toda a atividade da noite anterior, ela precisaria de um longo dia de descanso e de uma boa dose de chá de ervas analgésicas. Se ergueu com dificuldade para ver o estrago de seu feitiço. A armadilha arcana havia desaparecido e o corpo-seco era apenas um montinho de pó que seria carregado pelo vento. Com certeza o fogo da vala já havia se apagado também e nada restava dos carniçais ou dos zumbis.
Mas para cada magia, especialmente para aquele tipo de magia, havia um preço. Ela deu alguns passos adiante e olhou para trás. A figueira estava morta. Irremediavelmente morta. Nenhum outro mago, bruxa ou mesmo druida poderia trazê-la de volta. A árvore fora consumida e corrompida até o seu cerne. Mesmo se a cortassem e arrancassem as suas raízes, nada mais nasceria lá. Um triste fim para a vila de Figueira, pensou Cybelle.
De volta a Entreposto, ela contou todo o ocorrido ao capitão Matos, que após um pouco de choradeira, insistência e reclamações, finalmente lhe pagou o resto da recompensa. Ela então se arrastou para a hospedaria, preparou e bebeu um pouco de chá e se deixou cair na cama. No dia seguinte procuraria mais um trabalho. Outro dia para sobreviver.
Essa história foi incrível. O estilo da escrita é original e o ritmo dos acontecimentos ficou excelente.
Penso que a situação do bar tenha sido sub-aproveitada para o formato de conto, se limitando apenas a uma crítica social (que considero válida) e uma descrição breve da raça élfica – que não influencia tanto a história. Imagino se um aprofundamento do sistema mágico não poderia ter sido incluído nessa cena. Ainda assim, a cena consegue manter o nível da história e, de forma alguma deixa de ser prazerosa.
Me sinto obrigado a mencionar que o escritor José Abrão acertou a mão na identidade nacional, tanto na linguagem utilizada, como nos elementos presentes (como as lamparinas, a cachaça…) e, especialmente, menciono a escolha de nomes para as criaturas, que nem ficam presos aos referênciais europeus, nem nos nomes totalmente indígenas, que estão distantes da realidade atual e quase sempre causam estranhamento no leitor.
Considero “corpo-seco” como um referencial na literatura fantástica nacional. Espero ver mais trabalhos do José nessa área.