Editado por Sol Coelho
Quando abriu a boca da paciente para examiná-la, a doutora França ficou em choque. Agradeceu silenciosamente pelo fato de a menina não poder ver seu rosto naquele momento, pois sabia que seu queixo tinha caído e seus olhos deviam estar do tamanho de dois planetas.
— Você pode abrir a boca um pouquinho mais pra mim, querida?
— Anhmmm — foi a resposta que recebeu, enquanto a boca se abria ainda mais.
Da mesinha bamba ao seu lado, ela pegou um abaixador de língua de madeira, daqueles que quando as crianças veem, pensam em picolé, e o introduziu cuidadosamente na boca da menina. Ela olhava intensamente para o fenômeno à sua frente, sabendo que o que via era real e, mesmo assim, não podendo acreditar.
Ali, dentro da boca de sua jovem paciente, sobre a língua e o palato duro, uma fina camada esverdeada se proliferava. Não era apenas a cor sobre as papilas gustativas que a alarmavam: ao raspar levemente a língua esticada da menina, o que saiu definitivamente era musgo — do tipo que cresce em árvores e fachadas de prédios abandonados —, exigindo competências que iam além das que a doutora França recebera em sua vida. Como diabos a menina estava com musgo crescendo dentro da boca? Engolindo em seco, e quase sentindo o musgo em sua própria língua, ela falou:
— Pode fechar a boca agora. — Tentava sorrir um largo sorriso para a menina de olhar inquiridor, mas a exaustão da madrugada já pesava em seu rosto.
— Tá tudo bem comigo, doutora?
— Você está sentindo algum desconforto? Febre ou enjoo?
— Não…
A doutora França olhou brevemente para o abaixador de língua que continha o musgo raspado.
Aquilo era musgo mesmo?, ela pensava. Não podia ser…
— Olha, eu vou precisar de uma ajudinha aqui… enquanto isso, você pode chamar a sua… — ela parou por um instante, pensando em quem havia entrado junto com a menina para a consulta. Sacudiu a cabeça e olhou novamente para a paciente. Os grandes olhos castanhos da garota a encaravam, inocentemente. Ela parecia ter sido criada protegida do mundo, um privilégio que França não estava acostumada a ver, e que ela mesma não havia tido. Sentiu uma pontada de pena. Fosse o que fosse aquilo, não era nada bom.
— Doutora?
— Onde está a sua… Hmm… — A médica parou novamente para pensar. Quem havia entrado com a menina mesmo? Ela simplesmente não conseguia se lembrar, mas com certeza a garota tinha algum adulto responsável. Por mais sobrecarregadas que as enfermeiras da triagem estivessem, elas não poderiam admiti-la na consulta sem acompanhante. — Ahem, a sua mãe?
A menina olhou-a nos olhos e respondeu, sem delongas:
— Eu vim sozinha.
— Quantos anos você tem mesmo?
— Tenho treze, doutora.
— Mas como você passou pelas enfermeiras sozinha? Isso não pode. — Ela não usava um tom acusatório, estava apenas preocupada.
A menina pareceu confusa.
— Oh… Eu… não sinto nada de diferente, mas isso na minha língua…
França sacudiu novamente a cabeça.
— Espere um minuto. — Ela puxou a prancheta que a enfermeira havia entregado com as informações da paciente e viu uma folha em branco. Ficou chocada. A que ponto eles haviam chegado lá na frente? — Qual é mesmo seu nome?
— Tuane.
A médica encarou-a por um momento. Podia jurar que até aquele segundo, ela não sabia o nome da paciente. Mas isso era absurdo… O cansaço do plantão devia estar finalmente mostrando suas garras e embaralhando os pensamentos dela. À sua frente, Tuane puxou um celular com a tela quebrada de um bolso da saia jeans e começou a se distrair em alguma rede social. Os cabelos longos e cacheados escondiam-lhe o rosto moreno e tocavam-lhe os joelhos quando ela se inclinava.
França baixou os olhos para o formulário de admissão e piscou; podia jurar que não tinha nada escrito nos dados da paciente, mas imediatamente as informações surgiram na sua frente. Também constava que Tuane Moara Moura da Silva estava, sim, acompanhada por um responsável… era apenas o nome e o rosto da pessoa que simplesmente escapava à memória toda vez que França tirava os olhos da ficha dela.
— Eu vou chamar uma enfermeira e um colega meu pra ajudarem a gente aqui. Pode ser, Tuane?
— Tudo bem. — A garota deu de ombros. A médica ligou para a estação das enfermeiras, pediu para que chamassem o outro médico de plantão e voltou-se novamente para sua paciente. Sabia que isso atrasaria ainda mais os atendimentos, mas precisava de uma segunda opinião para ter certeza de que não estava ficando louca.
— Você viajou recentemente, Tuane?
A garota pensou por um momento antes de responder.
— Mais ou menos.
França estreitou os olhos. Sentia que ela não estava contando toda a verdade e isso era um problema.
— Como assim “mais ou menos”? Você viajou ou não?
— Meu corpo não viajou, só minha mente.
— Seu corpo não… — França sacudiu a cabeça, como se tentasse espantar uma neblina que se formava ao seu redor. — Você quer dizer um sonho? Você sonhou com uma viagem?
A menina ponderou por um momento.
— Não, um sonho não. Um sonho é pra dentro. Eu fui pra fora.
A médica continuava tentando entender o que ela dizia, mas aquela neblina só parecia ficar mais densa em sua mente.
— Tuane, a sua família por acaso é religiosa? — ela perguntou, considerando a possibilidade de a garota ser fruto de alguma doutrinação para falar aquelas coisas.
Tuane sacudiu os ombros, indiferente.
— Tipo isso. — Ela olhou ao redor. — É um lugar bem vazio esse consultório, né?
— É, sim… mais fácil pra limpeza, sabe.
— E não tem janela…
França olhou ao redor também. Havia sido alocada naquele hospital há dois anos e nunca dera pela falta de uma janela no consultório. Estava tão acostumada com salas sem janelas que nem se lembrava delas.
— Sua família é legal com você? — França continuou o interrogatório, ainda esperando pela chegada da enfermeira com o doutor Roberto.
— Somos familiais, não família — explicou a menina, como se isso tivesse que ser óbvio para a médica. — Nos encontramos quando é a estação certa, comungamos e seguimos nossos caminhos.
França levantou uma sobrancelha. Ela começava a considerar a necessidade de ativar uma assistente social e um atendimento psiquiátrico. Isso ia levar ainda mais tempo, e a assistente social provavelmente só chegaria de manhã… talvez tivesse sido a própria Tuane quem colocara o musgo na boca para ser trazida para o hospital por… pela… quem era mesmo que estava com a menina?
— Você acha que esse musgo na minha língua é sério?
França tentou conter sua surpresa.
— Quem falou em musgo pra você?
— Eu olhei no espelho, ué. É musgo, não é mesmo? Igual ao de planta?
— Nós precisamos examinar uma amostra para termos absoluta certeza do que se trata.
— Mas é musgo… não é? — Tuane insistia, ainda sentada na maca de exame, as pernas rechonchudas balançando impacientemente.
— Ao que tudo indica… muito provavelmente.
A menina suspirou, como se não estivesse nada além do que resignada à anomalia médica. Sem surpresas.
— Meu tempo aqui está acabando.
À menção de tempo, França olhou reflexivamente para seu relógio de pulso. Eram três da manhã em ponto. Ela pensou que isso não devia significar nada.
— Temos o tempo que for necessário pra te ajudar, Tuane. Já, já a enfermeira chega com o meu colega, ok?
Mas Tuane não estava mais tranquila como antes, e agora olhava ao redor da sala, procurando por algo que França sentia que não estava ali.
— Não… Nós realmente não temos muito tempo. — Ela finalmente fez menção de pular da maca de exame, o que fez com que França também se levantasse da cadeira. Tuane andou ao redor da sala, olhando para as paredes brancas, manchadas pela infiltração do último inverno recifense, enquanto a médica apenas a observava. — Eu sou Musgo, sabe?
A médica franziu o cenho, mas disse:
— Claro.
— E Musgo não tem muito tempo embaixo do sol… achei que teria mais, que seria especial…, mas acho que me enganei.
Tuane virou-se para a médica. Dessa vez, estava diferente. Os olhos castanhos estavam cobertos por uma fina película branca que ofuscava o seu brilho, e os lábios outrora escuros eram da cor das cinzas de uma fogueira. Suaves linhas verdes de musgo cresciam para fora de sua boca, em diferentes direções do rosto.
França não gritou. Algo no fundo de sua mente dizia que ela devia gritar e correr por ajuda, ou socorrer a menina, chamar as enfermeiras, interná-la urgentemente…, mas algo a impedia de sequer entrar em pânico. Em poucos segundos, ela nem lembrava desses pensamentos.
O consultório, geralmente abafado, ficou frio.
— Me disseram que aqui no hospital eu ia conseguir ajuda — continuou Tuane. — Achei que eles estavam errados. Pra variar, me enganei novamente, não é mesmo? — Ela sorria para a médica, que voltara a se sentar placidamente em sua cadeira. — Você estava aqui esse tempo todo.
— Desculpe, eu não entendi — França respondeu calmamente. — Somos um hospital público, é claro que íamos ajudar. Eu estando aqui ou não, iríamos tentar te ajudar.
— Não, tinha que ser você. Só você pode me ajudar, veja bem. — Tuane continuava a andar lentamente em círculos pela sala, às vezes encarando as paredes, às vezes desviando o olhar para sua médica. Ocasionalmente, tocava uma parede com a ponta dos dedos.
— Sou só uma clínica geral.
Tuane parou de andar e virou-se completamente para França, sorrindo um sorriso largo e sincero, como se não acreditasse no que ouvia.
— Mas você também é Musgo. Só que Musgo dessa Terra, não é mesmo? — Ela pausou e andou até França, estendendo uma mão cheia de linhas esverdeadas, que antes não estavam ali, para acariciar o rosto da médica. — Você é feita da mesma coisa que eu. E somos raras. Tanto aqui quanto na minha Terra. Os outros tipos têm aos montes, mas de nós, de Musgo, não há muitas.
Quando Tuane voltou a se afastar, França tossiu poeira de terra, cheia de drosófilas e folhas minúsculas que se contorceram pelo ar por um longo tempo antes de caírem no chão de terra dura e escura que substituíra o ladrilho branco do consultório. A médica não lembrava quando a mudança havia ocorrido, mas devia ter sido ao mesmo tempo que a neblina — que saíra de sua mente e agora permeava a sala, dando às lâmpadas fluorescentes um ar misterioso.
— Você vai me ajudar agora, tudo bem? — disse Tuane, em pé atrás da maca aonde havia se sentado poucos minutos atrás. Agora ela era quem tinha o tom médico que França usava com seus pacientes. A doutora acenou com a cabeça e finalmente se levantou da cadeira.
— O que quer que eu faça?
— Você pode vir aqui e deitar-se, por favor. Vai ser rápido.
Ela deu alguns passos até a maca, tomando cuidado para não tropeçar no chão irregular, e deitou-se como instruído.
— Prometo que não vai doer quase nada. — Tuane aproximou-se e França encarou o rosto da menina: agora, ela parecia uma senhora de certa idade, não mais uma garota de treze anos de joelhos redondos e olhar desinteressado. No fundo de sua mente, França havia voltado a entrar em pânico. Um grito tentava chegar em sua garganta, mas não conseguia.
— O que você vai fazer?
— Preciso chegar em casa o mais rápido possível, e o caminho que fiz da última vez foi longo e deteriorou meu corpo aqui, entende?
— Acho que sim…
— Você vai ser meu atalho, doutora.
— Tudo bem — a resposta veio aos lábios automaticamente. O pânico interno que queria explodir dentro dela parecia estar sendo contido numa pequena bolha em algum lugar de seu ser, um lugar que ela não conseguia alcançar, por mais que tentasse.
— Pronta? — Tuane perguntou, quando um vento forte bateu e dissipou a neblina que se acumulava no pequeno espaço.
— Pronta.
— Não vai doer quase nada — Tuane repetiu, segundos antes de enfiar suas garras negras nas entranhas da mulher, que se contorceu em choque, mas não fez menção de fugir.
A menina chafurdou o abdômen até cortar fora o primeiro item de seu interesse: o órgão escuro, pequeno e escorregadio. Ao esfregá-lo na palma das mãos, removendo o excesso de sangue, França podia ver que uma leve camada de musgo o envolvia.
— Está vendo, doutora? Eu te falei. Você é Musgo dessa Terra. Sabe que órgão é esse?
— O baço.
— Isso. Todo seu ódio e tristeza aqui, meus agora.
— É possível viver sem esse órgão — França cuspiu o fato como se não estivesse sangrando sobre a mesa, o olhar vazio fixo no pequeno baço.
Tuane voltou-se para ela e sorriu gentilmente. Não parou. Rasgou a caixa torácica da mulher calmamente, remexeu no vão ensanguentado até conseguir acesso ao próximo item que precisava, cortou a pleura completamente, como quem descasca uma laranja, e visualizou o que queria: o pulmão. Quebrou ossos no caminho até trazer os dois órgãos para seu peito, num abraço apertado de alívio. Eles ainda sem contraíram uma última vez, expelindo o resto de ar que havia dentro deles. Sobre a maca, a doutora França agonizava em silêncio, cuspindo sangue pela boca e convulsionando. Novamente, Tuane removeu o excesso de sangue e revelou que os pulmões de França eram também revestidos de musgo esverdeado.
— Eles tinham razão — murmurou a menina, impressionada. — Você tem os pulmões mais puros dessa Terra. — Ela inspirou profundamente sobre os órgãos. — O ar neles também é Musgo.
França meneou a cabeça, como se agradecesse o comentário, e Tuane sorriu mais uma vez, acariciando os cabelos ensopados de suor da médica.
Atrás de si, um portal se abriu como um rasgo na parede perfeitamente branca, de onde sons de insetos crepusculares podiam ser ouvidos.
Tuane virou-se para o portal, satisfeita.
— Meu tempo nessa terra acabou, afinal — ela disse, encarando com olhos marejados o caminho para casa. — Espero não ter sido em vão. Acredito que não tenha sido. Levo comigo conhecimento, doutora, que antes não tínhamos. O futuro nos será bom.
Ela olhou uma última vez para o corpo eviscerado da médica estendido na maca, e precisou dar apenas um passo para ser engolida por uma luz branca que inundou todo o ambiente.
Quando a luz se apagou, o portal, a neblina, a terra irregular e a paciente com musgo na língua haviam desaparecido como se nunca tivessem existido. Só o que restava era o corpo da doutora França estirado na maca de exames, esperando pacientemente ser encontrado.