Editado por Rodrigo van Kampen
T
alan sentiu todo seu corpo retesar antes de tossir uma última vez. Sangue e muco foram atirados na mesa, que ele limpou desajeitadamente com um lenço. Sentou-se na cadeira, ofegando.
Encarou suas mãos de pele fina demais e seu primeiro pensamento foi de que não era tão velho. Seus cabelos já estavam grisalhos há alguns anos e sua vista já não era mais a mesma de seus tempos de rapaz, mas mesmo assim… Não era um velho. Não mesmo.
A cada tosse, a cada dor no peito, Talan sabia que não era seu tempo de morrer. Sentia como se seus anos tivessem sido roubados. Algo negro e gelado entrara por seus pés e se alojara em seu peito. Cada gota de sangue expelido funcionava como um relógio macabro, lembrando-o de que não tinha muito tempo. De que não era um velho, mas de que estava marcado para morrer.
O pensamento o fez tossir novamente, mas dessa vez ele tapou a boca com a mão. A mancha carmim escorreu lentamente pela palma até o pulso.
— Majestade — chamou uma voz do outro lado da porta. — Majestade, está tudo bem? Estão esperando vossa presença.
— Estou indo, estou indo — disse Talan, tentando imprimir na voz uma força que não tinha. — Mande-os esperar. Sou o rei deles, afinal.
Um pouco de arrogância real sempre funcionava para acalmar os ânimos de servos suspeitos e preocupados.
Respirou fundo e fechou os olhos antes de levantar-se da cadeira. Limpou a mão no lenço e sentiu o peito arder, como se sua camisa estivesse em chamas.
Era um velho agora, quisesse ou não.
A sala de audiências do Castelo de Arouca tinha uma forma oval. As pinturas feitas diretamente na pedra tinham sido encomendadas por Urmalin, o Belo, umas onze gerações antes de Talan. “Talvez doze”, acrescentou, franzindo a testa.
Acompanhando a curva da parede repleta de ninfas e sátiros eternizados em óleo, havia doze cadeiras de prata. Em cada uma delas deveria se sentar um conselheiro do rei. No entanto, nos últimos anos, somente três delas andavam ocupadas. Talan nunca fora um rei de grandes conferências, e aqueles eram tempos de paz. Não havia necessidade de um excesso de homens barbudos e irritadiços o encarando.
Acenou levemente com a mão quando todos na sala se levantaram e fizeram a reverência tradicional para os monarcas de Euranía: uma genuflexão, a mão esquerda atrás das costas com os dedos entrelaçados e a cabeça baixa. Coisa de seu ancestral, Arbimed, o Casto, se não estava enganado.
Sentou-se na cadeira dourada central. Sempre achara aquela cadeira velha uma coisa dura e um tanto desconfortável, mas agora, com aqueles pulmões cansados e a pele tão fina, parecia um objeto de tortura.
Levantou a cabeça e tentou forçar um semblante calmo. Dois guardas se posicionaram atrás dele em postura de descanso, como de costume, e os outros três ocupantes da sala sentaram-se em suas cadeiras prateadas, tomando o devido cuidado de pular uma cadeira, mantendo assim uma distância entre si. “Os velhacos”, pensou Talan, o esforço para não rir lhe custando uma golfada de ar.
O conselheiro logo à sua frente era Galemíades, um velho — sim, ele era definitivamente mais velho que o próprio Talan. Era especialista em comércio. Quando jovem, tinha viajado por todas as terras de Euranía, Cosmónedes e Supranta. A maioria das vezes como ilegal ou pirata, Talan suspeitava, mas isso certamente o fazia um conselheiro melhor. Sabia os caminhos escuros, as rotas tortas e os tipos a não serem confrontados. Sua voz roufenha normalmente se estendia por horas numa ladainha infinita sobre sedas, carvão e algodão.
Logo a seu lado estava Rasmar, um lorde importante de Cosmónedes. Como a maioria dos cosmonedenhos, Rasmar tinha pele muito branca e cabelos muito loiros. Talan se divertia com seu jeito pomposo e com seu sotaque carregado, e segurava o riso toda vez que Lorde Rasmar tentava dizer palavras como “voluptuosamente” ou “adaptado” em meio a engasgos.
Talan não gostava de ter Rasmar como conselheiro, mas desde o acordo de paz entre Euranía e Cosmónedes selado por seu pai, Tarmed, o Sábio, era um direito de Cosmónedes ter um conselheiro designado em Euranía e vice-versa. Lorde Rasmar fazia valer seu direito e há cinco anos não faltava a uma reunião. Talan pensava no velho Urian, enviado para Cosmónedes alguns anos antes. Não ouvia notícias dele há um bom tempo. Provavelmente tinha morrido de tifo ou de gripe andoriana.
O terceiro membro do Conselho era Brucei, sua filha. Sua pele negra parecia brilhar no salão decorado, e seus cabelos amarelos, pintados de ouro à moda das mulheres da corte, só pareciam confirmar essa impressão. Brucei tinha uma presença imponente no salão. Talan sorriu de leve ao vê-la. Mesmo com um vestido branco de linho leve e os cabelos enfeitados de flores como as moças de sua idade, Brucei não era do tipo que se intimidava. Os outros conselheiros a olhavam nervosos, mas com traços de respeito nos olhos.
Iria completar vinte e um anos dentro de alguns meses, mas era definitivamente a mente mais afiada daquela sala. Brucei, diferente do próprio Talan, tinha um gosto apurado para pergaminhos velhos, mapas mais velhos ainda e raciocínios complexos. Aos três anos, já usava um ábaco com mais habilidade que a maioria dos alunos de matemática do castelão de Arouca. Com cinco, Brucei já sabia ler e era vista tentando desvendar alguns volumes impossíveis da biblioteca. Talan inicialmente rira dos hábitos pouco ortodoxos da filha, mas depois de um tempo passou a incentivá-la. Brucei era como a mãe fora: alerta, séria e extremamente competente.
Pensar em Andeoula fez com que Talan começasse a tossir de leve.
— Está tudo bem, Majestade? — perguntou Galemíades fazendo menção de se levantar.
— Está, está. Fique onde está, Galemíades. Estou com um resfriado, é só.
— Pai, o senhor deveria procurar um curandeiro — falou Brucei. Talan não pôde deixar de admirar sua voz clara e límpida.
— Claro, claro. Vou procurar. Mas primeiro temos coisas pendentes a resolver, não? Caso contrário, por que eu estaria aqui logo pela manhã?
O mau humor real funcionou mais uma vez. Os conselheiros relaxaram e a ladainha começou.
Primeiro foi Galemíades, como de costume. Talan deixou seu olhar vagar pelas figuras nas paredes. Ninguém sabia ao certo qual artista era o responsável por aquela proeza de encher os olhos. As cores eram incríveis. O azul era profundo, o verde era tão vivo… E os vermelhos, os vermelhos pareciam saídos das chamas do próprio fogo. Alguns mestres já tinham dito que aquilo era trabalho que envolvia magia, e Talan não duvidava nem um pouco. Aquele tipo de efeito não era da ordem dos homens.
Algumas vezes, Talan tinha a impressão de que as ninfas se moviam, e olhavam para ele. Algumas árvores pareciam trocar de lugar. A luz mudava do laranja para o amarelo repentinamente. Era realmente um prodígio… Levou a mão ao peito, como que em respeito pela figura que admirava.
— Está de acordo, senhor? — falou Galemíades.
— O quê? — perguntou Talan, repentinamente tragado para a voz desagradável do conselheiro.
— O problema com as docas de Farezias. Devo enviar novos construtores?
— Claro, o que achar melhor, meu caro.
Farezias? Aquilo ficava muito a leste. Tanto a leste quanto era possível em Euranía…
— Meu Pai — começou Brucei pedindo a palavra —, não creio que seja sábio enviar construtores para Farezias. Como sabemos, Farezias está longe do castelo e as estradas para leste andam bastante traiçoeiras nesse tempo chuvoso. O mais adequado seria mandar um mensageiro iniciando um ofício de construção na cidade. Desse modo, todos os homens capazes de manejar um torno se inscreveriam no trabalho e ajudariam na reconstrução das docas. Com isso, além de resolvermos a questão das docas, estaríamos criando trabalho para Farezias e mais tarde poderíamos usar o ofício para construir navios. Com ele, jovens aprendizes poderiam se dedicar e, dentro de alguns anos, teríamos um corpo de construtores ao leste. Poderíamos usá-los para dar conta dos portos de toda a região e, quem sabe, ampliar o porto de Farezias, aumentando assim a rota de comércio para Supranta.
— E certamente para Cosmónedes! — exclamou Lorde Rasmar, não escondendo sua surpresa com o raciocínio da jovem a seu lado.
— Claro que sim, Lorde Rasmar — concordou Brucei num sorriso fino. — Cosmónedes também se beneficiaria dessa rota.
Lorde Rasmar se empolgou ao falar das possibilidades de crescimento da rota em seu sotaque carregado, beirando o incompreensível. No fim de sua ideia, já estava falando comin, a língua oficial de Cosmónedes, sem perceber.
Brucei acrescentou algo em comin, Lorde Rasmar se calou, aparentemente satisfeito, e o velho Galemíades bufou algo como “estrangeiros!”.
Talan levantou a mão e passou a ordem para que o ofício de construtores de Farezias fosse criado.
Sentia a cabeça pesada e fez um esforço absurdo para não tossir. Apertou o pescoço, segurou o peito, mas a sensação era de que tinha um cavalo sentado em cima de seu coração.
Sou um velho, sou um velho agora.
O Conselho prosseguiu e as ninfas das paredes não deram sinais de se mover. Talan concentrava todos os seus esforços em respirar. Nunca antes fora tão consciente do árduo trabalho que era inspirar e expirar. Como o ar gelado do salão saía depois quente e úmido de suas narinas, como seu coração batia com força como que em protesto a cada saída de ar, como suas mãos ficavam frias…
— Pai, pai!
Brucei abandonou seu posto na cadeira de prata e correu até ele. Talan se sentiu escorregar. Era impressão sua ou o salão estava sendo inundado por uma luz azul? Talvez fossem as ninfas… Sim, talvez fosse.
Olhou para a filha ajoelhada a seu lado. Oras, desde quando estava no chão?
Tentou ordenar seus pensamentos, mas não conseguiu. Queria dizer que estava tudo bem, queria dizer a Brucei que ela não se preocupasse, mas tudo que fez foi soltar uma golfada de sangue no chão de pedra do salão.
Talvez no fim ele não fosse Talan, o Velho. Talvez Talan, o Doente ou Talan, o Fraco.
Acordou na cama, o sol já se pondo.
— Você está bem, papai?
Sorriu. Era sua filha. A outra filha. Grinda.
O sorriso logo chegou a seus olhos. Grinda correspondeu, vindo sentar-se na beirada da cama, tocando sua testa de leve. Segurava um cachorrinho marrom no braço esquerdo e seus cabelos estavam trançados, à moda da corte.
— Está se sentindo melhor?
Quis dizer que sim, mas limitou-se a assentir com a cabeça.
— Você vai ficar bem, papai. O senhor sempre fica.
Talan observou os últimos raios do sol refletirem na pele escura de Grinda, dando-lhe uma suavidade que jamais seria possível no rosto da irmã. Grinda era feita de outro material, mais etéreo e menos prático. Gostava de jogos, animais, brincadeiras de fita na corte. Costumava passar grande parte das tardes com ela, andando nos arredores do castelo ou observando os cavaleiros treinarem no pátio.
Sentiria-se afortunado com as filhas que tinha, se não soubesse que era amaldiçoado. Pois era, soubera disso pela própria Outra, a maga mais poderosa de Euranía. Quando Andeoula anunciara a gravidez e o reino todo comemorara o futuro herdeiro, fora a Outra quem lhe trouxera as palavras de má sorte. Ela sabia o que havia no ventre de sua mulher.
Que sorte ele teria, com uma filha para cuidar dos assuntos do reino e outra para cuidar do castelo. Que sorte ele teria, com uma filha para conversar e outra para passear em tardes quentes. Que sorte ele teria, se elas não fossem gêmeas.
A maldição do reino.
Qual delas teria sua coroa quando seu peito finalmente quietasse?
A notícia da doença do rei Talan se espalhou por Euranía como um vento gélido, trazendo apreensão e medo. Camponeses fizeram colheitas mais cedo, viúvas deixaram de se casar novamente. A morte do rei estava vindo e era uma morte suja.
Mortes reais limpas eram mais fáceis. No campo de batalha, uma espada afiada, uma flecha certeira. Um rei tombado. Sem danos. Pouco luto. Mas o povo receava a morte suja que vinha com a doença, a fraqueza do corpo, a lentidão da mente, a incerteza do governo. A doença abria espaço para especulação.
Nas grandes cidades, grupos começavam a se inquietar e nos grandes palácios lordes cochichavam por trás de cálices de vinho. A morte do rei estava vindo. Mas quando? Em semanas? Meses? Anos? E quem governará Euranía?
As brigas em bares começaram. Princesa Brucei. Princesa Grinda. Nenhuma das duas, pois mulher não pode governar. Mas que raio de argumento é esse? Elas são sangue real, afinal. Mas elas são duas… Qual é a mais velha? E por aí se desfilavam argumentos a noite inteira.
A inquietação chegou ao Castelo de Arouca, e curandeiros foram tentar a sorte na cura da doença do rei. Mas Talan rejeitava todos. Com um sorriso fraco, mas rejeitava. Era fato conhecido que o rei depositava sua vida nas mãos da Fé e escolhera a sacerdotisa da noite para guiá-lo. A Outra.
A Outra era um dos mais altos graus do sacerdócio da Fé. Alguém que abdicara de sua própria identidade para servir. Não tinha mais nome, era apenas um instrumento. Seu contraponto era a Excelência, um sacerdote ou sacerdotisa sempre vestido de branco, limitado à Cidadela dos Encantos. Para o Outro, a vida de andarilho, para a Excelência, a opulência. Ponto e contraponto.
O rei Talan, ao contrário de seu pai que procurava apoio na Excelência, atualmente a sacerdotisa Karmina, tinha fé nos poderes mais mundanos do Outro. A Outra era vista com frequência na corte e ajudava o rei com seus ritos de fé. Cuidava de doentes na cidade e fazia rituais na floresta próxima.
Era uma mulher alta, de pele escura com marcas do tempo, que usava um lenço amarrado na cabeça de modo a impedir que seus cabelos fossem vistos, como as viúvas do leste. No entanto, ao contrário das viúvas, suas roupas eram sempre em cores vibrantes: escarlate, verde, amarelo-ouro. Não havia quem a visse andando numa antiga rota de comércio que não soubesse — a Outra. Aquela que trocara o próprio nome pelo poder divino.
— Minha cara, acredito que minha doença não tenha cura. Estou certo? — perguntou Talan. Estava deitado na cama em seu aposento real, com almofadas de penas e apoios macios, mas sentia-se como um pedinte deitado numa rua escura em Arouca.
A Outra perscrutou o olhar do rei e respondeu numa voz clara e límpida, mas também dura:
— Sim, Majestade. Curandeiros não prolongarão sua vida.
Talan fechou os olhos, devagar. No fundo, sabia disso. O que lhe restava eram poucos meses, talvez até poucos dias. Respirou fundo, mesmo que lhe doesse o peito.
— Meu pai recebeu a alcunha de sábio. Era um homem dado à meditação e à filosofia. Costumávamos conversar longas horas em sua sala de estudos ou no terraço. Nunca discutimos questões de sucessão, pois durante boa parte de minha vida, era claro que meu irmão mais velho, Tomebíades, seria rei. Quando ele morreu durante os anos da peste, o trono passou para mim. — Talan tossiu. Falar daquilo trazia um ar gélido para dentro do quarto. — De qualquer maneira, sucessão nunca foi um problema para meu pai. Não, ao invés disso, ele dividia seus pensamentos sobre governar, o significado da vida e os mistérios do mundo. Eu não entendia metade do que ele falava na maior parte do tempo, mas sabia que eram coisas importantes.
Talan começou a tossir com força, e por um instante quase pôde ver seu pai com os cabelos crespos já totalmente brancos, de pé à porta do quarto.
— Certamente o rei Tarmed foi um homem agraciado — disse a Outra, impassível.
— Sim, sim. Quem me dera ter a sabedoria de meu pai. Logo eu, Talan, o Perdido… Sim, seria uma alcunha apropriada. Logo eu tenho que ser atormentado por essa maldição terrível que é um problema de sucessão.
A Outra continuou com seu olhar profundo e sua maneira desprovida de paixão. Suas roupas coloridas contrastavam com seus modos comedidos, quase que milimetricamente calculados.
— Meu pai gostava de viajar frequentemente pelo reino. Eu também, mas tínhamos motivos bem diversos. Ele ia muito à Cidadela dos Encantos ler pergaminhos antigos e ter encontros com a Excelência. Uma vez ele me disse… — hesitou, desviando o olhar da mulher à sua frente. — Ele me disse que a Excelência poderia conferir um pequeno dom especial ao monarca. Um desejo, para ser exato. Um desejo para ser atendido. Então pensei que, se a Excelência tem esse poder, certamente a Outra também poderia concedê-lo.
O olhar de Talan saiu como o de uma criança ansiosa. A Outra, porém, deu uma volta lenta pelo quarto antes de encarar seu rei e soberano.
— O desejo de Saman. Ah sim, uma tradição bastante longa que remonta aos tempos mais antigos dessa terra. Todo membro da realeza de Euranía, descendente de Saman, a Acolhida, tem direito a um desejo da Fé.
— Eu sei que minha esposa uma vez a procurou.
Talan segurou a respiração. Andeoula nunca fora devota da Fé, mas quando descobriu que estava grávida procurou os serviços e conselhos da Outra. Ela nunca contara tal fato ao marido, que apenas sabia do ocorrido por conta dos guardas do palácio que seguiam e protegiam a rainha.
— Sua esposa era descendente de Saman, não pela linhagem do filho mais velho, Tamanan, o Legítimo, mas pela do filho do meio, Otorin.
O rei tossiu mais uma vez, demonstrando impaciência. Sabia disso. As famílias nobres de Euranía eram todas ligadas pelo sangue de alguma forma, e algumas delas descendiam da própria família real. Andeoula, dos Umbacais da Planícia, fora uma delas, e por esse motivo a mãe de Talan, a rainha-mãe Brecei, havia a apontado como a mais apta candidata a consorte.
— Ela fez um desejo, não fez? — E novamente a expressão de Talan não era a de um rei, mas de uma criança com brinquedos demais. — Qual foi o desejo dela?
— Que outro senão aquele de toda mulher grávida, Majestade?
Não houvera rispidez na voz da Outra, mas Talan sentiu um toque duro e seco, quase material, em seu corpo. Soube então que não deveria perguntar mais nada do assunto.
— Eu poderia desejar que você me curasse? — Não soou monarca nem criança, apenas velho.
— Não, Majestade — respondeu a Outra, devagar. — Não posso curar doenças que já não possuem curas. Não posso lhe dar poderes, nem decidir guerras. Não posso fazer nada que interfira no futuro.
— Mas você não vê o futuro?
Pela primeira vez, Talan viu a Outra rir.
— Veja bem, majestade, o futuro não é uma visão plena e límpida. O futuro é mutável, como um rio traiçoeiro. A cada momento, enxergamos um aspecto seu. Profetas verdadeiros são extremamente raros, senhor, e aqueles que possuem profecias que se cumpram então… Um a cada fim de era. A Fé não almeja nada disso. Nem mesmo seu Outro lado.
— Então você não pode me dizer qual das minhas filhas será a futura soberana de Euranía…
— Não, Majestade, pois não posso ver além das possibilidades existentes. Se o senhor não tomou essa decisão ainda, como saberei o futuro? A cada decisão tomada, o rio se torna mais estreito.
Talan tentou ajeitar o travesseiro. De repente, sentia um enorme desconforto no peito, mas de uma natureza diferente da doença. O peso da sucessão. Que seria dele? Talan, o Indeciso?
— Então, que desejo pode ser concedido?
— A sabedoria, a aceitação e a contemplação. São as dádivas que posso lhe conceder, Majestade.
— Tenho duas filhas maravilhosas, ó Senhora. Se fosse um moleiro ou um dono de taverna, poderia dizer que era o homem mais feliz do mundo. Mas sou um rei e pode haver apenas um herdeiro. Por que foi me dada a maldição da escolha? Que afronta fiz aos deuses para tal?
A Outra permaneceu em seu silêncio habitual.
— Eu desejo ver a alma de minhas filhas. Ver o que há por trás daqueles lindos olhos idênticos. Enxergar através delas e então saber qual é mais apta ao trono do Castelo de Auroca.
— Majestade… — começou a Outra, perturbada. Apertava as mãos, movia-se de forma inquieta. — Esse desejo… Possivelmente o senhor não haveria realmente de querê-lo. Contemplar a alma de alguém… Poucos homens e mulheres estão preparados para tal. Homens definharam ao olhar dentro da alma de outros homens. Mulheres enlouqueceram ao vislumbrar o verdadeiro ser de outras mulheres.
— Já estou definhando — falou Talan, amargo, erguendo um lenço ensopado de sangue. — Esse é meu desejo. E, como monarca de Euranía, tenho esse direito.
Falou como o rei que era. A voz retumbando no aposento.
— Assim será, meu soberano — aquiesceu a Outra, retornando à sua retidão. — Antes de sua morte, olhará nos olhos de suas filhas e irá vislumbrar suas almas. Pois assim disse a Fé.
A Outra acendeu uma vela cor de sangue, apenas para apagá-la depois com um sopro leve.
O verão em Arouca veio mais quente que de costume. Para o rei, não havia qualquer conforto. A doença o obrigava a ficar deitado e, mesmo com água fresca trazida a cada volta de hora, Talan suava e se agitava nas almofadas de seda. A Outra trazia-lhe folhas de hortelã e outras ervas refrescantes, mas elas pouco melhoravam-lhe a condição. Quando não tinha acessos de tosse que pareciam perfurar seus pulmões como facas, suava e sentia espasmos com os efeitos do calor. Era uma morte ingrata e lenta.
Os conselheiros estavam agitados. Vinham frequentemente aos aposentos do rei e, mesmo que não dissessem nada sobre o assunto, Talan via a questão da sucessão em seus olhos. Até mesmo Galemíades, sempre dado a falar, ficava mais quieto. Talan não era ingênuo, sabia que nos bastidores estavam tramando seus pequenos jogos de poder. Escutava conversas atravessadas que lhe eram trazidas pelos servos: nos cantos escuros do Castelo, se falava na filha a ser apoiada pelo conselho. Talan se encolhia na cama toda vez que pensava no assunto. Suas filhas, alvos da malícia de Rasmar, Galemíades e seus aliados políticos.
— Papai, o senhor não pode continuar assim, tem que procurar ajuda!
Talan sorriu. Gostava quando Brucei lhe chamava de “papai”. Fazia-o se lembrar da garotinha enfiada em livros que ela um dia fora.
— Vá até o Templo de Kian! Eles têm os melhores curandeiros… Conheci um rapaz chamado Malerk que dizem ser um curandeiro exímio. Podemos procurá-lo, papai! O senhor não precisa morrer!
A jovem se jogou, exausta, na cadeira ao lado da cama do pai. Talan a fitou por alguns segundos. Brucei tinha uma aparência cansada, olheiras abaixo dos olhos e seus cabelos tinham sido trançados com pressa e descuido. Diferente da irmã, gostava de cuidar pessoalmente de seus trajes e adornos.
— A Outra me disse que não há cura, Brucei — falou Talan, devagar. — É só uma questão de tempo.
A jovem ficou lívida:
— Está depositando tudo nas mãos da Fé, papai? Como pode se deixar morrer desse jeito?
A expressão de Talan foi rígida, apesar da fraqueza em seu semblante:
— E onde mais eu depositaria minha vida, filha? Nunca pensei que você fosse uma daquelas a rejeitar a Fé…
— Não é isso, papai — emendou a garota numa voz mais calma. — Só não quero que o senhor morra.
— Tudo que vive um dia morre. É uma pena que às vezes seja cedo demais…
Lembrou-se do pai e das longas conversas que tivera com ele nos terraços do castelo. Quando as tardes quentes eram bem-vindas e o rei Tarmed ria até seus olhos brilharem.
— Um soberano deve estar com o coração no lugar certo.
— O que disse, papai?
Era Brucei arrancando-o da memória. Estranho, pois por um momento Talan poderia jurar que era de novo um rapazola tentando acompanhar os pensamentos do pai.
— Nada, minha querida. Delírios de uma mente doente. Venha cá, sente-se aqui, conte-me o que tem feito.
— A situação não está boa. O conselho está agindo…
Não era aquilo que Talan tinha em mente, mas Brucei sempre tivera aquele dom de desviar todas as conversas para política. Era mais esperta que aqueles dois do conselho, e por uma boa vantagem. Não era à toa. Tinha sido Excelsior no Templo de Kian, formada em Alquimia e Ciências da Natureza. Fora convidada a se iniciar nos ciclos mais estritos do templo, mas declinara para voltar à corte. Se ao menos ela tivesse ficado por lá e feito os votos, pensava Talan, tudo teria sido mais fácil.
Mas Brucei estava ali, e Talan tentava olhar dentro de seus olhos e não via nada. Apenas os olhos de sempre, que lembravam os de sua própria mãe, a rainha matrona.
— E sua irmã Grinda? Não vem me ver?
— Oh — fez Brucei, ligeiramente desapontada com o desinteresse do pai. — Está no terraço recebendo os convidados. Muita gente tem vindo prestar homenagem.
— É como se eu já estivesse morto.
— Não diga isso. O senhor é o rei. É natural que seja assim. Devia descer para recebê-los. Eles ficariam felizes em ver seu rei.
Talan sorriu. Brucei era diplomática, tomava decisões com clareza e objetividade.
— Talvez numa outra ocasião, filha. Agora, preciso dormir.
A cada vez que recebia uma visita da Outra, Talan dizia a mesma coisa: seu desejo não fora atendido. Olhava nos olhos das filhas e não via nada. Chamava-as todos os dias na esperança de ter uma revelação súbita, mas nada acontecia. Apenas entretia-se nas histórias do Castelo contadas pelas duas.
— Para que o desejo seja realizado, Majestade, é preciso que ele esteja alojado dentro de seu coração e mente. É preciso que realmente se deseje aquilo que está sendo pedido. Nenhuma paixão ou preocupação pode lhe estar a obscurecer a vontade.
— Mas eu desejo verdadeiramente que ele se realize!
— Não de uma forma pura. Limpe a mente, Majestade. Tenha paciência. Seu pedido será concedido pela Fé antes de sua morte.
Aquelas conversas deixavam Talan à beira da insanidade. O calor também não ajudava. Passou a agir de forma violenta. Atirava longe os plastros de hortelã que lhe colocavam sobre o peito para refrescar, rasgava as almofadas, atirava taças de água fresca na parede. Talvez devesse ser Talan, o Louco, ou Talan, o Enfurecido.
O Conselho veio lhe visitar depois de um dia particularmente agitado. Talan tinha se recusado a tomar banho de ervas refrescantes e ficara gritando por horas na cama, até que as aias finalmente desistiram dele.
Quando os dois homens entraram pela porta, Talan soube imediatamente que vinham falar da sucessão. Talvez estivessem com medo de que ele tivesse enlouquecido.
— Certamente a princesa Brucei é a mais indicada ao trono, Majestade — falou Galemíades, sem rodeios, logo depois de se apresentar. — Ela é fina, diplomática e com uma formação sólida. Demonstra um trabalho impecável junto ao Conselho e tem resolvido todos os assuntos do Castelo durante sua ausência, senhor. Entraria para a história das monarcas mulheres de Euranía como uma rainha forte e resoluta.
— Cosmónedes apoiaria sem dúvida — complementou Lorde Rasmar. — Certamente a princesa Brucei nasceu com o quê da soberania. O povo sabe de suas qualidades, certamente passaria a amá-la como merece.
— Inclusive, o senhor pode fazer uma nomeação oficial. — Galemíades parecia ansioso e tentava não olhar para os lençóis manchados de sangue em que o rei se deitava. — Assinar alguns pergaminhos timbrados, fazer uma declaração, nada complicado. E o senhor poderia inclusive presidir a cerimônia de coroação de sua própria filha, e os…
— O que está dizendo, Galemíades? Está me dizendo para renunciar à coroa? Nenhum de meus antepassados renunciou à coroa! Vocês estão querendo o quê, que eu seja Talan, o Resignado?
— Certamente que não, Majestade — emendou Lorde Rasmar com seu jeito pomposo —, só pensamos que…
— Pensaram errado. Agora saiam dos meus aposentos! A decisão final cabe ao rei e a mais ninguém!
Os dois homens foram empurrados pelos guardas para o lado de fora, e Talan foi deixado sozinho em seus aposentos que começavam a exalar o cheiro podre da morte.
Ao rei e a mais ninguém. Ao rei e a mais ninguém. Ao rei e a mais ninguém.
Foi o que entoou até dormir.
Acordou com vozes exaltadas do outro lado da porta. Por um momento pensou que fossem Galemíades e Lorde Rasmar novamente, mas logo percebeu que eram vozes femininas. Reconheceria aquelas vozes em qualquer lugar. Grinda e Brucei.
— Você não pode deixar que ele aceite morrer desse jeito, Grinda!
— Ele vai morrer. A Outra mesmo disse.
— Sempre existe um recurso. Sempre existe.
— Temos que aceitar e fazer o que pudermos para que haja paz.
As vozes pararam e houve um leve bater na porta. Pouco tempo depois, Grinda entrou no aposento.
Talan sorriu de leve. Ela tinha passado um óleo em suas tranças que as deixaram douradas como ouro. A mãe dela, Andeoula, sua doce Andeoula, também fazia isso.
— Venha, minha querida, sente-se aqui perto de seu pai.
Grinda tinha um aspecto tranquilo, mas seu semblante era triste. Há alguns meses Talan não se olhava no espelho, mas imaginava pelas mãos cadavéricas e pela pele retesada que deveria estar se decompondo em vida. Talan, o Alquebrado.
— Desculpe não ter vindo visitá-lo ontem, mas é que eu não estava no Castelo.
— Onde estava, querida?
— Estava com Bargacia na cidade.
Ah sim, o jovem capitação Klaus Bargacia. Talan sabia que ele reunia uma afeição devotada por Grinda. Sempre que podia, vinha até Arouca e passava horas com ela. Levava-a para passeios e caminhadas, os olhos sempre brilhando quando ela chegava. Era assim ser jovem, Talan tentou se lembrar, cheio de vida e esperanças. Bargacia seria um bom rei-consorte. Era filho mais novo de uma família nobre em Dasmenes, uma importante cidade portuária. Talvez brigasse com as famílias mais tradicionais de Arouca, mas Talan achou que talvez não fosse um empecilho tão grande se ele…
— Fui a um funeral, papai. De uma parteira muito querida em Arouca, chamada Tolina. — A voz de Grinda saíra séria, e a moça mantinha os olhos baixos.
Aquilo era o tipo de coisa que próprio Talan faria, caso não fosse proibido que reis atendessem a funerais. Mas nos seus dias de saúde, viajava pelo reino. Gostava de andar pelas ruas das cidades, de conhecer as personagens locais.
— Me disseram que foi ela quem fez meu nascimento. Quer dizer, o de Brucei e eu.
A memória de Talan deu algumas voltas, e ele visualizou o rosto enrugado da velha que anunciara para ele, em voz baixa, que eram mesmo duas crianças nascidas.
— É verdade, papai?
— É sim, minha filha. Foi ela mesma. — A voz de Talan saiu ainda mais quebrada do que de costume.
— É estranho, não é, papai? Que todos relacionados a meu nascimento estejam de fato indo conhecer o outro lado da vida…
Sempre que vinha até seu quarto, Grinda lhe falava sobre a morte. Diferente de Brucei, que sempre negava sua doença e procurava mencionar formas improváveis de cura, Grinda trazia em si aceitação. Talan apreciava aquela postura, que de certa forma não o fazia triste. Pelo contrário, fazia-o mais lúcido. Era o rei de Euranía e estava à beira da morte. Quando Grinda estava no quarto, ele esquecia-se dos títulos e das convenções, lembrava-se das verdadeiras atribuições do cargo. Da responsabilidade e do significado.
— Meu pai dizia que não era exatamente um outro lado — começou ele, pedindo que a filha se aproximasse mais —, mas apenas uma parte desse lado que não enxergamos.
Grinda deu um sorriso fraco, e Talan desejou intensamente que pudesse ver por detrás dos olhos da filha. Que seu desejo fosse concedido naquele exato momento. Queria que a alma emergisse da doce Grinda de cabelos dourados e que ele pudesse conhecer em seu coração sua verdade. Que pudesse escolher.
Mas tudo o que viu foram lágrimas. Lágrimas cintilantes, mas apenas lágrimas.
Talan sentiu que ia morrer numa manhã especialmente quente, já no final do verão. Tinha sonhado com sua mãe, vestida com os trajes de rainha-mãe, descendo as escadas do Castelo. Sonhou também com Andeoula, as mesmas feições de quando a conhecera no baile oficial do noivado real, uma adolescente segura e de sorriso fácil. Ela lhe dizia para que morresse em paz, para que não desejasse mais nada em seu coração. Quando Talan tentou chegar mais perto, sua figura se desfez numa névoa branca que, ao se dissipar, revelou o jardim favorito do pai, na torre alta leste.
— O coração do reino, meu filho. Pense apenas no coração do reino.
Acordou chorando em seus aposentos sentindo o peito doer mais que nunca. A febre ardia alta, a tosse vinha forte e não havia nada que contesse o sangue. A Outra foi chamada e começou a entoar preces na língua antiga. Os conselheiros foram chamados, assim como o castelão de Arouca e as duas princesas. Era a hora, Talan sabia. Iria abraçar a morte enfim.
Alguma coisa no quarto lhe cheirava à sua mãe e Talan sentia-se tranquilo, quase desapegado de tudo, a voz da Outra agora apenas um pano de fundo. Sentia-se leve e o peito doía cada vez menos, apesar de saber que sua condição física lhe mostrava o contrário. A morte era fresca como a folha de hortelã e o orvalho recém-colhido em uma flor.
Quando as filhas se puseram em volta de seu leito, sorriu, devagar. Já tinha esquecido o desejo que fizera, as promessas, as inquietudes. Era a hora da sucessão, sabia, a última proclamação do rei. Em seu coração, era como se toda sua vida tivesse caminhado apenas para aquele momento. O cheiro era do perfume de lírios da rainha-mãe, afinal. Era um cheiro bom. Sorriu.
— Eu, Talan, rei e protetor de Euranía — falou com dificuldade, cuspindo sangue sem se preocupar em abafá-lo com um lenço. — Coloquem aí os títulos necessários… — Fez um sinal com a mão, apressado. — Nomeio minha filha legítima, Grinda de Lumamenã, como minha sucessora.
Uma forte luz dourada o cegou. Olhou para Grinda e viu dentro dela. Sentiu que via a si mesmo, naquela luz inocente, quase infantil. Viu pássaros e passeios. Viu a si jovem e desprecavido, a alma de uma criatura ansiosa e incauta.
E Talan encarou a alma de Brucei. Uma vastidão caleidoscópica, uma miríade de sons. Até que tudo se condensou num único ponto sólido bem diante de seus olhos. Sentiu-se arrancado de si e atirado a um vazio seco e avassalador.
Ouviu uma discussão acalorada. Não, eram gritos. Portas batendo e taças se quebrando.
— Você não devia ter feito isso, papai — disse Brucei, firme.
Quando deu por si, Talan não mais respirava. Sua última visão, os olhos da filha. Não conseguiu pedir que ela o perdoasse pela escuridão.
Grinda se atirou aos seus pés, clamando o nome da irmã, mas Talan já não mais enxergava. Estava afogado, agora não em sangue, mas em algo muito mais viscoso e terrível, que agora escorria por seu corpo alquebrado. Ao invés de uma sucessão atribulada, desencadeara uma disputa violenta.
— Ah.. ah… — Tentou dizer alguma coisa, qualquer coisa. Dizer que se afundar naquela visão tinha lhe tirado a sanidade. A alma alegre e comprometida de uma filha. A alma profunda e madura da outra. Um combate desleal pelo coração do reino. — Aaaah — ele gemeu, no que os servos seguraram seus braços negros, agora tão fracos, que entravam num espasmo descontrolado.
Em menos de um minuto, Talan, o Último, abandonou a terra.
Sombras escuras espreitavam.