Editado por Fernanda Miranda
ANO 2057
DISTRITO 25 DE MARÇO – MERCADO CENTRAL – SÃO PAULO
Ohomem de feições indígenas corria desesperado através dos passantespreocupados em gastar seus créditos com as novidades contrabandeadaspelas ruas do distrito comercial. Desesperado em sua fuga, chutava algumcachorro vira-lata, empurrava alguém ou algum dróide.
Atrás dele, com uma desvantagem visível, seguia um senhor negro de meiaidade, correndo como um maratonista e carregando uma pistola Bahamuth350.
“Tes! Precisamos pegar este safado antes que ele escape do campo devisão”, falava o homem. O disfarce do policial Franklin havia ido para oespaço e não havia tempo para discrição. Uma semana de tocaia jogadapelo ralo em minutos.
Ele estivera a um passo de encontrar a sede da seita de terroristasfundamentalistas denominados “Únicos”, que, após passarem de ataques aempresas de equipamentos eletrônicos e postagens de ódio em redessociais para ataques mais agressivos, eram agora considerados ameaçapública número um. Porém nunca haviam sido encontrados, como se fosseminvisíveis. Ninguém era localizado, nenhum suspeito avistado, ninguémpreso. Todas as Agências Governamentais haviam procurado, em vão. Foi aíque Franklin assumiu o caso, com a pressa do fim do mundo.
Estou calculando uma possível rota Spin, falava seu parceiro virtual,Tes, uma Inteligência Artificial que se conectava à consciência dopolicial via satélite. Muito útil para o policial e, principalmente,para a Divisão Quântica, também chamada Polícia Fantasma.
O capitão está solicitando uma chamada.
“Ele sempre solicita uma chamada nos momentos inoportunos. Ignore!”
Ele insiste.
“Fala para ele que estou fora de área. Você sabe que a conexão deixa osinal ruim.”
O policial não estava conseguindo mais correr devido ao cansaço. Com aspernas trêmulas e respirando com dificuldade, falou: “Preciso de outraconexão. O coração do homem não vai aguentar e eu não quero morrer denovo!”
Calibrando possíveis pontos mais próximos.
“Rápido! Estamos ficando para trás!”
Encontrei. Conexão Quântica. Spin! Estranhamente, dentro das pupilasdo homem, um círculo azul girou e desapareceu. O senhor parou confuso,olhando ao redor, como se não soubesse como havia ido parar ali. Apistola desmaterializou-se.
O indígena corria sem parar. Alvarado era seu nome, um renomado erespeitado engenheiro cibernético, referência na instalação dosobrigatórios e indispensáveis implantes de neurofones na nuca. Então, danoite para o dia, abandonara seu trabalho e tornara-se um criminosoprocurado, inteligente e perigoso. Apenas nos últimos meses, explodiratrês fábricas de implantes e destruíra quatro Centros de Atualização deBanco de Dados de Usuários, isso sem contar nas postagens de ódio e asameaças de falsos atentados. Dias e noites, trocando de IP, dormindo emalbergues e hostels com sinal ruim, conectando-se apenas pela Deep Webem obsoletos e ilegais tablets e iphones, usando equipamentosnão-rastreáveis, falsificando créditos monetários para comprar aquilo de que necessitava. Sempre um passo à frente das autoridades. Planejaraalgo grande para seu próximo ataque: explodir o edifício-sede da Centralde Dados, o que causaria uma desconexão em massa. Foi por um lance desorte que havia reparado que o homem que agora o perseguia era umpolicial disfarçado. Por um detalhe imperceptível para outros. Mas nãopara ele. Passou por uma vendedora sorridente e simpática, que vendiacamisas de tecido autorregulalável. Para criar mais um obstáculo paraseu algoz, Alvarado empurrou-a, jogando a banca no chão.
Antes que a mulher pudesse se arrumar, dentro de suas pupilas um círculoazul se fez. Uma pistola materializou-se em sua mão.
“Tes!”, a mulher falou. “Onde está aquele traste?” A consciência agoraera a de Franklin, que olhava ao redor como um predador tentando farejara presa. A Polícia Fantasma era um departamento secreto. Os membros daPolícia Fantasma eram policiais que aceitaram abrir mão de seus corposfísicos e transformarem-se em informação.
Acabou de seguir à direita, para fora do Distrito.
“Você demorou com a conexão!” A mulher levantou-se e começou a correr.“Me dê acesso às memórias dela. Preciso descobrir se ela viu algo…” Osimplantes não eram apenas conexões remotas de neurofone. Serviam comoidentidade, conta bancária, acesso a redes sociais, banco de dados,enfim, toda a vida de uma pessoa estava, literalmente, ligada aoimplante.
“Eu já pratiquei tiro…” a consciência de Franklin hesitou. “Não, ela jápraticou tiro!” O conectado não se lembrava de nada do ocorrido durantea conexão spin, mas havia um efeito colateral para o policial. Um poucoda sua personalidade se perdia a cada conexão, absorvendo algo daquelecom quem se conectava.
Uma memória passou pela mente de Franklin.
Conversando com o capitão, em sua primeira ligação post mortem, no diaem que acordava na Polícia Fantasma. Na época, ainda se acostumava com aideia de que seu corpo físico era apenas âncora, em estado de animaçãosuspensa, escondido em algum cômodo secreto da Divisão Quântica, tendo aatividade cerebral mantida por aparelhos .
“Lembre-se, somos policiais. Não justiceiros. Não se trata de os finsjustificam os meios, mas sim de fazer o que for preciso”, dizia ocapitão.
“E qual é a diferença?”, perguntava um Franklin ainda confuso.
“No momento certo, você entenderá”, respondia o capitão, enquanto alembrança se apagava.
Ela é sua segunda conexão hoje, pontuou Tes, lembrando a Franklin queo processo poderia ser feito no arco de até sete metros e apenas cincovezes por semana, para não arriscar as memórias do agente.
“Obrigado por me lembrar, Tes!” Com a mão firme da vendedora, Franklinmirou e atirou em Alvarado, que desviou, mas tropeçou, o que diminuiu emalguns metros a vantagem do fugitivo.
“Segunda conexão em um mesmo dia.” O ex-engenheiro havia acabado deatravessar a rua e o semáforo de abrir. “Ele é bom! Mas eu sou maisesperto!”. Descobrira que o implante do neurofone na nuca das pessoasdeixava-as suscetíveis a determinadas ondas. Os executivos nãoacreditavam naquilo que ele falava. Achavam que ele estava paranóico. Oimplante tornava a vida bem mais fácil. Graças a ele, diversasburocracias dos séculos anteriores haviam sido abolidas. Aparelhos deneurofone grandes, que se perdiam, quebravam ou eram roubados, nãoexistiam mais. Identidades e demais documentos, dinheiro e cartões decrédito e débito, tudo substituído por um Implante Único, registrado emonitorado pelo Governo e pelas Megacorporações. Mas as vozes deramatenção a ele. Descobriu-as enquanto pesquisava novas e mais profundasconexões para o implante. Sozinho. Depois de descobrir essa verdade, oGoverno e aqueles que se diziam seus chefes passaram a perseguí-lo.Tentaram até matá-lo enquanto ainda estava em seu antigo emprego elevava alguns implantes. Não se lembrava quando, mas retirara seuimplante, e se adaptava àquele novo e estranho mundo com equipamentocontrabandeado na Deep Web. As vozes continuaram com ele, mostrando-lhea verdade e guiando-o até aquele momento, em que fugia para um localseguro.
As pessoas próximas assustaram-se com o disparo e começaram a correrpara todos os lados. Olhavam a mulher com a arma em mãos atirando em umhomem desesperado. Ignorando todos, o policial mantinha a arma em riste,fazendo mira. Alguns, mais valentes, avançaram contra avendedora-Franklin.
“Eu sou policial!”, ele gritou, mas, quando percebeu, um homem musculosojá o havia segurado. Tentou se desvencilhar, mas aquele corpo não tinhaforça suficiente. Outros também vieram e tentavam arrancar-lhe a armadas mãos. Não acreditavam em seus argumentos. As memórias da mulher semisturavam às suas, devido ao stress. Era difícil para Franklin escapare se concentrar na perseguição. Conseguiu, não sem esforço, pronunciar aúnica palavra que lhe veio à mente: “Tes!”
Calculando conexão mais próxima. A vendedora fazia força, o queassustava os três homens que, agora, tentavam contê-la.
“Chamem a Polícia!” alguém gritou.
Conexão encontrada. Spin! No mesmo instante, o círculo azul naspupilas da mulher desapareceu. Assim como a pistola. Anos antes,enquanto a Divisão Quântica testava as aplicações do teletransporte,descobrira-se que, além da consciência, apenas matéria inorgânicapoderia ser teletransportada sem o risco de se rearranjar.
A mulher, confusa, ficou lá contida pelos homens, que chamavam apolícia.
A alguns metros, um motorista de aplicativo esperava sua passageira.Comia um grande hambúrguer com bocadas vorazes. Círculos azuis giraramem suas pupilas. Franklin chegou a sentir o gosto da carne sintéticadescendo sua garganta. Teve dificuldades em sair do carro, devido aotamanho do motorista.
“Mas quê?” Olhou-se Franklin. “Qual foi o critério para essa porcaria deconexão, Tes?” Conseguiu ver Alvarado descendo uma escadaria. Largou osanduíche e a passageira que acabava de chegar, pegou sua pistola que sematerializara a pouco e correu. Um vira-latas que passava abocanhou amaior parte do lanche que caíra no chão.
A versão do dispositivo dela está com vírus.
“Avise alguém na Divisão de Segurança Digital sobre ela. Porcaria desedentarismo! Marque uma consulta com um nutricionista para ele!Polícia!”, Franklin gritou, para dissipar a multidão.
Parou de repente. Uma nova lembrança.
Viu a si mesmo correndo atrás de um criminoso.
Não conseguia ver o rosto do homem.
Até que viu o que estava preso a ele.
E a lembrança se foi.
Mesmo ofegante, Alvarado corria mais intensamente e se distanciava.“Este agente é louco! Três conexões em poucas horas! Será que aindaexiste algo da personalidade dele?”
“Droga! Esse cara não se cansa?” E o policial corria com raiva. “Tes,precisamos diminuir a distância.”
Acredito que tenha conseguido algo que responda a sua solicitação, masdevo lembrá-lo de que tem apenas mais duas conexões. Se tiver deconectar, têm de ser neste exato instante.
“Apenas faça!”, gritou o cansado policial, se perguntando porque nãoterminara de comer o hambúrguer.
Conexão sincronizada. Spin! No instante seguinte, Franklin viu-se emmovimento. Estava no corpo de uma jovem ciclista asiática. Ideogramassurgiram na mente de Franklin. Aulas de tai-chi e de atletismo foramacessadas na hora. “É isso aí!”, bradou ele, pedalando rapidamente. Nãopercebeu, mas naquele instante esqueceu a cor dos olhos de sua mãe.
Alvarado fugiu por um beco, mas com a bicicleta e o preparo físico desua nova conectada, Franklin alcançou-o rapidamente. Saltou da bicicletae lançou-se sobre o homem, que caiu. Depois, habilmente, ergueu apistola materializada.
“Parado! Polícia! Você está preso!”
“Acha que consegue?”, indagou o homem, com as mãos para o alto.
“Uma novidade, seu imprestável!”, disse a asiática. “Acabei de fazerisso!”
“Não tenho medo de você. Não pode me possuir, Policial Fantasma!”
As palavras do homem assustaram Franklin. A Divisão Quântica erasigilosa. E por que ele falava com tanta propriedade?
“Sabemos o que vocês e este governo estão fazendo. O corpo é meu. Amente é minha. Arranquei meu implante e retirarei de quem mais desejar.Se quiser, posso lhe dar a paz que não conseguiu em vida.”
“Calado! Você fala coisas sem sentido! E está sendo preso por terrorismoe assassinato.” As palavras do homem mais irritavam que confundiamFranklin. “Tes, verifique o banco de dados do implante dele.”
“Você nem se lembra, não é?”, falou Alvarado, com calma. “Qual suamotivação? Por que você faz o que faz?”. As palavras entravam na mentede Franklin, mexiam com algo dentro de seu ser. De alguma forma, sentiaalgo de verdadeiro nelas. Quem ele era realmente? O que fazia? Por quefazia? As lembranças da mulher se misturavam às de Franklin, à medidaque ia se irritando. Aquilo deveria acabar logo, para o bem da sanidadedo policial.
“Tes! Me conecta nele para podermos acabar com isso!”
Não consigo detectar o implante. Nem mesmo sua localização geográfica.É como se ele fosse um fantasma.
“O quê? Do você está falando? Isso é impossível! Tente novamente!”
Algo diferente do que eles esperava aconteceu. A voz de Tes sumiu. Aconsciência de Franklin pareceu sumir e sua mão tremeu. A nuca deAlvarado doeu, como se sofresse um choque elétrico. Entrelaçamentoquântico.
“Tes…?”
O instante de hesitação do policial custou-lhe caro. Rapidamente, ohomem retirou de um dos bolsos uma pequena bola e a jogou naciclista-Franklin.
Instintivo, o policial sacou a arma e atirou. Tarde demais percebeu quese tratava de uma micro-granada. A bola explodiu, lançando seu corpo aochão, mortalmente ferido.
“Tes, aciona o seguro para a família dela…” O policial começou asentir aquilo novamente: A morte aproximando-se. Não adiantava pedir umaambulância. O sangue dela esvaía-se aos borbotões. Assim como asmemórias de Franklin…
Fora assim, anos atrás. A memória de Franklin indo e vindo…
A explosão.
Um homem com diversas micro-granadas amarradas em seu corpo dizia: “Ocorpo é meu. A mente é minha!”.
À beira da morte, aceitara fazer parte da Divisão Quântica, para fazer ajustiça valer.
O risco de sua memória se perder…
Fazer o que fosse preciso…
Agora entendia.
Com a única coisa que lhe restava, sua vontade, conseguiu dizer:
“Tes, ainda tenho uma conexão…”
Não consigo encontrar ninguém próximo.
“Tem que ter alguém… Qualquer um…”
E há.
“Então faça…”
Há um risco. Alta probabilidade de perda de grande parte da memória.
“Não me importa, apenas faça!” O círculo azul foi se apagando, junto comas pupilas que perdiam o brilho.
Conexão encontrada. Spin!
Alvarado corria. Também se ferira com a explosão, mas nada que um banhoregenerativo não resolvesse. Já acontecera antes. As vozes diziam queestava no caminho certo. Poderia descansar. Finalmente.
O mundo deveria saber da verdade, mas o governo não falava nada.
Naquele momento, as vozes ficaram em silêncio.
Nada. Sua mente estava em silêncio. Como há muito não estava. Apenas elee mais ninguém.
Sentia-se cansado e sozinho.
Passou a mão na nuca. Sentiu algo com a ponta dos dedos. Metálico.Circular. Apertou seu implante e ouviu as vozes e além delas. Então,sentiu. Ao sentir, entendeu. As lembranças fragmentadas. Corrompidas.Por um momento, lembrou-se de seu passado. O verdadeiro. Um homem comuma bomba. Era ele. Sempre fora ele. Alguém armado tentando conversar.Um policial. As palavras do homem, mexendo com ele. As palavras vindasda boca do próprio Alvarado: “O corpo é meu. A mente é minha.” Contudo,já não eram mais.
Antes disso, Alvarado pesquisava em frequências profundas, quandoencontrou algo novo. Era orgulhoso e vaidoso. O melhor e mais arrogantedos cientistas. Não apenas porque fora aquele que mais pesquisara sobreas relações sinápticas presentes nos implantes, como também aquele quemais as implementara e inovara. Buscava ser o melhor. Melhor até do que elemesmo. A curiosidade e a arrogância foram seus erros. Ao encontraraquela nova conexão, acreditou que poderiacontrolá-la. Na verdade, a conexão era um vírus novo e potente, capaz depassar imperceptível por qualquer firewall. O vírus corrompeu seu bancode memória. Modificou, alterou e corrompeu suas lembranças. As vozeseram o vírus o infectando cada vez mais, tomando conta de seuspensamentos.
Então, tudo veio…
Um policial. Obstinado, incansável. Alvarado segurava as granadas, masvia nelas implantes de neurofone. Soltou as granadas no homem. Asgranadas explodindo. Ao acordar, descobriu que matara o homem naexplosão. Seu implante neurofone danificado. O vírus o fez acreditar quehavia arrancado o implante. Os lapsos de memória. As vozes. Todo o ciclode mensagens de ódio e ataques ao Governo e à empresa em que ele mesmotrabalhou e ajudou a crescer. Por algum motivo, tudo lhe veio à tonaagora. Talvez, devido à tentativa frustrada de Tes de se conectar a ele.Talvez por que, mesmo não o encontrando, de alguma maneira a IA o fezver o mundo além do vírus, como alguém que, em meio à escuridão, vê umponto luminoso.
E então, acabou. A escuridão retornou. Mais potente e mais agressivo, ovírus voltou a tomar conta de sua psique. As vozes retornaram como umamultidão.
Levantou-se calmamente e saiu andando. Trôpego e confuso, mas calmo.Como se saísse de uma ressaca de Fada Neón.
O plano deveria continuar.
Antes de sair do beco, porém, sentiu algo puxando-o com força pelaperna. Lançando-o contra uma parede.
Ao recompor-se, encostou-se nela, num misto de medo e assombro. Umassustador cachorro da raça pastor alemão rosnava para ele e latiafurioso. Seu medo não era nem pelo animal, mas por reparar que, enquantoa coleira implante brilhava no pescoço do cachorro, dentro de suaspupilas, círculos azuis giravam incessantes.