Editado por Laís Helena Serra Ramalho
Dedicado a Maurício Zamberlan, um dos meus melhores “Vinicius” e seu abraço, forte como um lar.
Caso me fosse pedido em algum momento para pensar em Áquila, sei exatamente qual seria a primeira imagem que me viria à mente: meu amigo deitado no sofá de meu apartamento em jeans rasgados, sorrindo ao afastar de cima dos olhos verdes — destacados por sua pele tom de oliva — os cabelos escuros e ondulados. Era mais do que bonito, era fascinante. Sua voz cristalina sempre se mostrava firme e relaxada, e ele era cirúrgico no que dizia, fosse para fazer sentir-se especial o mais comum dos homens, fosse para deleitar-se em comentários ferinos que o faziam, mesmo com a altura mediana, parecer a mais ameaçadora das criaturas.
Estar ao lado de Áquila era como estar em um filme em que ele era o astro principal. Sua capacidade quase sobrenatural de fazer-se admirado, desejado e temido nunca cessava de me surpreender. E, ainda que meu amigo não verbalizasse, eu sabia que gostava da atenção e se divertia com isso; o fazia rir. Tamanho magnetismo era algo que se via apenas em grandes estrelas da música e cinema.
Por isso, o que via me preocupava. Eu o observava enquanto beliscávamos uma porção de batatas fritas com queijo e pastrami, certo de que alguém com seu tom de pele não deveria ser capaz de ficar tão pálido. O cansaço se evidenciava nas olheiras fundas e no tanto que emagrecera. Ainda assim, continuava bonito: parecia um vampiro de seriado adolescente, sorrindo de maneira sóbria e bebendo seu suco de morango. Alguém que o conhecesse menos do que eu, não julgaria que seu aspecto fosse mais do que uma ressaca ou resfriado.
Às vezes as pessoas gostavam de parecerem fragilizadas, fosse para comprovar quão produtivas estavam se obrigando a ser, fosse em busca de atenção e cuidado. Eu havia visto o bastante disso em meu último relacionamento. Porém, por mais dramático que Áqui pudesse ser, ele não se prestaria a definhar para testar a adoração de seus amigos e tampouco precisava disso. Seu atual estado não era por charme e isso só alimentava meus receios. Ele pediria ajuda se algo estivesse acontecendo… certo?
Era de se esperar que alguém tão teatral escondesse as verdades sobre si, mas quem conhecia Áquila sabia que todos os sentimentos e atitudes expressos ou inspirados por ele eram genuínos. Não fosse por seu apoio e inspiração, desde quando nos conhecemos, ainda recém-chegados à faculdade, eu provavelmente teria desistido do curso de publicidade muito antes de me formar.
O problema com pessoas que parecem filmes é que, às vezes, sabemos o que esperar do desfecho da trama. Meu amigo era como uma versão masculina de um clichê muito explorado no cinema: a garota de espírito livre e cheia de admiradores, que um dia é assassinada ou desaparece, deixando para trás uma trilha de destruição e segredos. Bem, talvez falar sobre Áquila faça minha tendência a descrições cheias de floreio se exacerbar, mas é inevitável. Era meu melhor amigo e a pessoa que eu mais amava no mundo.
— Eu amo essas batatas! Parece que eu não como nada tão gostoso há eras!
O comentário me fez parar de especular mentalmente sobre seu estado.
— A melhor parte é que a firma onde trabalho quem fez a publicidade daqui e o gerente me adora. Sempre ganho um desconto — me gabei.
— Claro que adora! Ele tem o melhor publicitário do estado de São Paulo, talvez do Brasil todinho. É o mínimo esperado. — Áquila disse aquilo como se não fosse nada demais.
Era difícil para mim levar elogios a sério. Eu havia me formado no topo da classe e sempre tentara ser excelente em tudo o que executei, mas, o tempo todo, havia algo dentro de mim dizendo que ainda não era o bastante. Apesar disso, era bom ouvir a validação de um amigo. Os elogios de Áqui eram os mais capazes de me atingir.
— Me desculpe por ter sumido esses dias, eu tenho trabalhado feito um maluco — justifiquei. — Como você tem estado? De verdade!
Áquila me encarou por um momento, certamente decidindo se seria franco ou apenas fugiria do assunto. Ele estava prestes a dizer algo quando meu celular começou a tocar. O nome de minha ex-namorada piscava na tela. Bufei e recusei a chamada, ciente de que havia perdido minha chance de fazê-lo se abrir.
— Nós podemos falar sobre mim depois — esquivou-se Áquila. — Quero saber de você. Sabe, se jogar no trabalho para não pensar num término de namoro é normal, mas eu tenho sugestões mais… divertidas. — Deu de ombros num tom sugestivo.
— Não dava mais pra continuar. A Mariah é linda e inteligente à beça, mas era incapaz de entender que eu preciso trabalhar e ter amigos, além de apreciar alguma solidão pro bem da minha cabeça. Toda a carência dela era exaustiva — desabafei.
— Me chama de NASA e me dá espaço — zombou. — Se serve de consolo, você pode encontrar uma namorada que entenda isso. Claro que quando ela se apaixonar não vai querer sair do seu lado, mas ainda assim… — Levantou as mãos como quem diz “melhor do que nada”.
— ´Talvez eu devesse ser solteiro para sempre, igual você.
— Nem que quisesse — riu. — Você é bom em fazer com que as pessoas se sintam amadas. Presta atenção em detalhes, se importa em ouvir. Pode soar como pouca coisa, mas é mais raro do que parece, Vini.
Fiquei sem graça, mas contente com o elogio.
— E eu não gosto muito da Mariah — continuou Áquila. — Tem algo de esquisito com essa menina e não é só essa necessidade patológica por atenção. Todo mundo escuta as histórias de como ela passa por cima de qualquer um pra conseguir o que quer na faculdade.
— São só histórias — justifiquei. Mariah podia ser difícil às vezes, mas nunca provaram nada de ruim sobre ela. Se fôssemos julgados por nossa reputação, eu seria o namorado enrustido de Áquila. — Além disso, você também sempre dava um jeito de conseguir o que queria enquanto estudava lá.
— É, mas porque eu sei pedir com jeitinho. — Deu uma piscadela. — Sério, como conhecedor da alma humana, te digo que aquela garota provavelmente as come no almoço.
— Certeza que isso não tem a ver com ela ser a única que não acha que você é o próprio Deus Sol reencarnado? — inquiri em tom de brincadeira.
A verdade é que Mariah morria de ciúmes de Áquila. Em parte por ele ser o centro das atenções onde fosse e, mesmo estando em todas as festas possíveis, ainda conseguir se destacar academicamente, uma dificuldade recorrente para ela. Não que fosse má aluna; era competente, mas infelizmente lhe faltava o que Áqui esbanjava: carisma. O restante do ressentimento surgira por nossa amizade, mais íntima que qualquer outra que ela já tivesse testemunhado ou cultivado.
A maioria das pessoas achava que Áqui e eu tínhamos um caso ou coisa parecida. Isso nunca incomodou nenhum de nós dois. Ele provava que as especulações não eram verdadeiras, beijando qualquer garota ou garoto que quisesse tirar a prova. Eu não me via compelido a fazer o mesmo; simplesmente não me sentia ameaçado por quaisquer dúvidas que as pessoas pudessem vir a ter acerca de minha sexualidade. As garotas que se dispunham a me conhecer podiam confirmar meu interesse por mulheres e acabavam achando um ponto positivo que eu tivesse um amigo tão próximo e não ligasse para o que pudessem inventar sobre isso.
— Talvez tenha — Áquila admitiu. — Eu odeio soar intolerante com a religião alheia, mas quão cego alguém tem de ser para não reconhecer que sou um perfeito faraó? — Ficou de perfil com uma batata frita na boca, imitando uma gravura egípcia.
Comemos e conversamos por mais algum tempo. Chegado o momento de partirmos, paguei a conta, sabendo que um Áquila grato seria mais suscetível a me conceder o que pediria.
— Áqui, posso dormir na sua casa hoje?
— Ah, Vini… minha casa tá o caos. — Fez uma careta. — Parece uma cidade pós-tornado misturada com aquela vez em que você decidiu descolorir o cabelo para os jogos universitários.
Uma vez. Eu tentei pintar meu cabelo uma vez e ele nunca ia me deixar esquecer aquele desastre capilar que havia me encorajado cometer.
— Além disso, você não tem que trabalhar amanhã?
— Não importa. Estamos há tempo demais sem nos ver. Vem pra minha casa, então. Podemos beber alguma coisa e você fica por lá depois que eu for para o trabalho. Por favor, vai! Caso contrário, talvez eu faça algo estúpido, como ligar para minha ex, acreditar que ela mudou e nós devemos tentar de novo. Seria totalmente sua culpa.
Tentei imitar a cara que ele próprio fazia quando queria me convencer de algo.
— Uau! Chantagem! Muito refinado da sua parte! — Fingiu indignação, mas logo se deu por vencido. — O que você me pede chorando que eu não faço cantando? — disse, atualizando o ditado popular à sua personalidade. — Vou tomar aquela sua camisa de flanela como refém amanhã em protesto às suas artimanhas de me fazer dormir fora de casa sem levar uma troca de roupa..
Era uma tarde ensolarada. Eu sentia a relva sob meus pés e o cheiro adocicado das flores coloridas que se espalhavam pelo gramado. Alguns metros adiante, um grupo de pessoas vestidas de preto formava um círculo frente a uma árvore frondosa. Corri até eles, sorridente, mas, ao me aproximar, notei que choravam. Sob a sombra da árvore jazia Áquila em um caixão. Usava suas roupas costumeiras, mas todas as peças eram vermelho-escuras. Ele realmente sabia entregar uma performance.
Tentei acalmar as pessoas.
— Ele é um ator, não se desesperem. Áquila, levanta! Eles estão preocupados.
Áqui sentou-se, surpreendendo os espectadores, e riu largamente. Grossas gotas caíram do céu. Encharcaram minha roupa e meus cabelos. Aqueles que velavam seu corpo correram, e eu me adiantei para ajudar meu amigo a sair do caixão.
Antes que Áquila pudesse tomar minha mão, porém, algo surgiu às suas costas. Tentei gritar, mas minha voz não saía. Corri em sua direção, querendo alertá-lo, mas, ainda que desse tudo de mim, meu suor quente misturando-se à chuva fria, a distância entre nós não diminuía.
O vulto saído das sombras tomou forma, revelando-se um homem velho de pele muito branca com uma barba longa e desgrenhada, trajado formalmente com paletó, terno e gravata pretos. Sacou uma faca e cortou a garganta de Áqui, fazendo o sangue quente e pegajoso jorrar e invadir minha boca escancarada pelo choque.
Acordei num sobressalto, ainda com o gosto de ferro na língua. Um relâmpago iluminou o quarto e pude jurar que ali, aos pés da cama, estava o homem de meu sonho, segurando a faca e sorrindo perversamente. Gritei e pulei da cama em busca do interruptor sem nem ao menos pensar. A escuridão persistiu. A energia devia ter acabado por causa da chuva.
Outro relâmpago revelou a parede vazia. Peguei meu celular sob o travesseiro e acendi a lanterna, suando frio. Olhei para os lados, tremendo e com o coração na garganta, mas, assim como havia surgido, o homem desaparecera. Havia sido um pesadelo macabro. No entanto, com toda a bebida, aliada ao que eu ouvira de Áqui naquela noite, não totalmente absurdo. Áquila se moveu sonolento e perguntou com a voz embargada:
— Tá tudo bem, Vi?
Apenas balancei a cabeça positivamente e retomei meu lugar na cama, tentando recuperar o fôlego. Visando me acalmar, revisitei mentalmente o que transcorreu depois que eu e Áquila saímos da hamburgueria.
Chegamos a meu apartamento e conversamos enquanto secávamos o conteúdo de algumas garrafas de vinho. Passado algum tempo, estávamos ambos jogados no tapete da sala, bêbados e gargalhando enquanto relembrávamos histórias de nossa época na faculdade. Não havíamos nos formado há muitos anos, mas já parecia outra vida.
— Você sente saudade da faculdade? — Áquila perguntara.
Tinha acabado de recuperar o ar depois de rir largamente por lembrar-se de uma aventura envolvendo uma pistola de plástico cheia de bebida e uma bola de praia numa festa de boas-vindas aos novos alunos.
— Nem por um segundo. Eu detestava aquele lugar: pessoas pretensiosas, constantes brigas de ego, trabalhos em grupo… se não fosse você talvez eu tivesse acabado numa camisa de força antes do fim do segundo termo — admiti. — Você sente?
Embora ambos tivéssemos cursado publicidade, Áqui pegara todas as matérias de artes que a universidade permitia. Era nítido que sua carreira não seria como a de nenhum dos outros em nossa turma. Seu estrelato era inevitável, como ele mesmo dizia.
— De algumas coisas, mas acredito que o melhor momento da minha vida é agora e as coisas só vão ficar cada vez melhores. Sem dúvida sou a melhor versão de mim, mais esperto, mais sábio, mais forte…
A voz de Áquila vacilou e virei meu rosto em sua direção. Meu coração se partiu no mesmo instante. Ele chorava em silêncio, lágrimas rolando por seu rosto… Me aproximei e abracei meu amigo, ainda sem compreender o que estava havendo.
— Áqui… fale comigo. Por favor. Eu sei que tem algo errado. Você tá doente? É problema com droga, com algum homem, alguma mulher? Me diz, pelo amor de Deus, eu tô aqui com você. Pra tudo, eu juro!
Nenhum de nós disse nada por um momento. Então Áquila respirou fundo e começou a falar:
— Tô muito feliz de estar aqui com você hoje, Vini. E não percebi quando começou exatamente, mas tenho me sentido tão… cansado. É como se eu estivesse distante de tudo, com alguma coisa me puxando pra baixo o tempo todo. Não sinto vontade de sair de casa, de ver as pessoas, não consigo comer.
Diante daquela confissão, eu só conseguia me culpar por não ter estado presente o suficiente.
— Hoje foi a primeira vez em muito tempo que me senti bem de verdade — ele confessou, ainda seguro em meu abraço. — Também não tenho conseguido dormir. Toda noite tenho tido o mesmo pesadelo: um homem barbudo de preto, usando uma cartola, vem me buscar, e eu não consigo fugir. Ele se move pelas sombras e sempre me alcança. Eu tô exausto, Vini.
Era assustador vê-lo tão fragilizado. Tentei transmitir-lhe a certeza de que podia contar comigo e que lidaríamos juntos com o que quer que fosse que o estava fazendo se sentir assim.
Depois de um tempo, Áquila se acalmou e recobrou sua postura.
— Obrigado. Eu precisava disso mais do que imaginava. — Deu uma risada rouca.
Levantou-se e anunciou que tomaria um banho. Foi quando uma chuva começou a cair como se alguém nos céus estivesse disposto a derrubar a cidade com água e raios.
— Você é minha família, Vini. Obrigado por me lembrar que eu não estou sozinho.
— Você nunca esteve, e nunca estará — lhe assegurei. — Você é minha família também.
Depois que ele se retirou, meditei enquanto apreciava a vista da cidade castigada pela tempestade. Qualquer ajuda que Áquila precisasse ele teria, não só de mim. Parecia absurdo pensar que alguém como ele pudesse se sentir solitário, mas este era só um lembrete de que qualquer pessoa, até mesmo uma explosão de energia e carisma como Áqui, estava à mercê de tais sofrimentos. Ninguém era imune à possibilidade de ter a própria mente trabalhando contra si.
Se eu o tivesse esperado pedir ajuda, talvez… preferi nem pensar. O importante era que o buscara a tempo. Às vezes, para se dar o primeiro passo em direção a uma melhora bastava que outro alguém se importasse o bastante.
Deitamos lado a lado na espaçosa cama de casal no meu quarto, protegidos do frio pelas cobertas. A última coisa da qual me lembrava era Áquila cantando uma canção de ninar em inglês e, antes que eu pudesse pontuar que a letra não fazia sentido, adormeci, assim como fiz novamente quando o terror do pesadelo me abandonou.
Despertei pela manhã com o cheiro de café fresco. Enrolado em uma das cobertas, caminhei até a cozinha, onde me deparei com um Áquila sorridente e cheio de energia colocando o café sobre uma mesa fartamente servida: cupcakes, suco de laranja, cereal, pães, panquecas, torradas, geléia de amora, ovos, bacon, queijo, peito de peru… Minha geladeira provavelmente não conhecia metade desses itens; era raro que eu tomasse café da manhã em casa. Áquila havia não só preparado a dita refeição mais importante do dia, mas também se dado ao trabalho de comprar tudo aquilo. Debaixo de chuva, visto que o dia continuava tão escuro e molhado quanto a madrugada.
Algumas pessoas me faziam questionar meu agnosticismo, porque só podem ter sido criadas por Deus mesmo.
— Bom dia, flor do dia — brincou, me recebendo com seu costumeiro abraço. Já estava totalmente vestido com as roupas que pegara emprestadas de mim, a camisa de flanela azul e preta amarrada à cintura. — Eu já ia te chamar. A ressaca bateu forte aí?
— Por que eu continuo deixando você me levar para beber até eu desmaiar e…. Ah, pera… eu quem te trouxe pra beber. Droga, você já foi uma má influência melhor.
— Eu estou lisonjeado. Ou ofendido. Ah, me deixa tomar café primeiro, depois tomo decisões — respondeu, sorrindo e sentando-se à mesa.
Olhei meu celular. Cinco chamadas perdidas de Mariah, três da noite anterior… criei uma nota mental lembrando-me de ligar para ela depois do almoço. Podíamos ser amigos, apesar de tudo. Não havia porque fomentar qualquer animosidade pelo fim do namoro: ontem só não foi o melhor momento para conversarmos.
— Por que você tá todo arrumado? — Questionei. O café era um alívio em minha boca e eu estava pronto para me empanturrar diante da mesa tão variada.
— Eu estou indo para casa assim que terminar de comer — Áquila explicou.
— Não! Fica aí — protestei. — Eu aviso que vou trabalhar em casa hoje e ficamos aqui sem fazer nada.
Quando Áqui falou sobre ir embora, uma sensação ruim me veio à boca do estômago e não parecia ter a ver com a ressaca. Lembrei-me de minha mãe. Tanto ela quanto meu pai eram adeptos de coisas como “observar os sinais” ou “ouvir a intuição”. Eu já vira minha mãe ter seus pressentimentos e saber adiantar quando algum amigo ou parente próximo tinha problemas ou corria algum risco.
Eu não levava nada disso muito a sério. Talvez por teimosia. Para alguém que gosta de planejar e controlar coisas, a ideia de seguir instintos sem quaisquer fundamentos era, no mínimo, incômoda. Muitas vezes era Áquila a me incentivar agir com o coração. Sempre obtive bons resultados destes saltos de fé, mas temia demais apoiar-me em algo que não podia ser explicado.
Embora Áqui fosse a espontaneidade encarnada, desta vez optou por seguir o caminho da responsabilidade.
— Desculpe, mas preciso me preparar para um teste importante. Você pode estar falando com o próximo galã da novela das sete — disse, fazendo uma reverência. — Pela primeira vez em semanas eu consegui dormir realmente bem. Tô com energia pra escrever, dirigir, produzir e atuar numa peça sozinho! — Ele ria com sua refulgência natural.
— Você realmente está se sentindo bem? — quis confirmar.
— Completamente. Eu realmente estava muito mal nesses dias, mas depois de desabafar ontem à noite foi como se todo o peso simplesmente desaparecesse de mim. Talvez eu só precisasse do meu melhor amigo. — Deu uma piscadela.
Eu tinha certeza de que ele precisaria de mais do que isso, mas optei por não discutir. Depois de comermos fartamente, Áquila se despediu de mim com um longo abraço.
— Eu te amo muito, Vini. Você é o melhor amigo que alguém poderia ter e a pessoa na qual eu sei que posso confiar. Obrigado por tudo, mais uma vez.
Fiquei embaraçado, mas com o coração aquecido. Era esse tipo de declaração que fazia com que as pessoas estivessem dispostas a levantar um carro por ele. Mais do que isso: fazia a pessoa ter a certeza de que era capaz de levantar o maldito carro.
— Te amo também, meu irmão. Mais tarde nos falamos. — Dei-lhe um beijo na testa.
Depois do que ouvi na noite passada, eu sabia que a situação era séria e exigiria mais do que uma noite dos brothers. Por enquanto, me consolei em ver que até seu aspecto físico estava melhor após uma boa noite de sono.
Depois que Áquila saiu, voltei para o quarto e me vesti para ir ao escritório. A ressaca já não tinha mais a mesma força depois do café e a única desculpa que eu teria para ignorar meus prazos acabava de sair pela porta vestindo minha camisa xadrez.
Passei o dia inquieto e ansioso. Como era possível chover o dia inteiro? Usei o máximo de meu autocontrole para conseguir fazer algo produtivo no trabalho.
Sem mais nem menos, enquanto analisava o pedido de um cliente, senti um frio na espinha e meu coração acelerar. Minhas mãos tremiam e eu sentia meu corpo inteiro me alertar de que algo estava errado. Minha ansiedade não parecia ter fundamento, mas, agindo de maneira incomum, optei por seguir meus instintos.
Peguei meu celular e ignorei mais uma chamada perdida de Mariah, usando a discagem rápida para ligar para Áquila. Cada toque apenas aumentava minha sensação de que algo terrível estava para acontecer. Meu desconforto era físico e, ainda que nada lógico pudesse explicá-lo, agi em busca daquilo que supus poder apaziguar meus sentimentos.
Nesse momento, um raio caiu e, junto com ele, toda a energia elétrica do prédio. Me lembrei do que havia visto ao acordar na madrugada e corri para as escadas, buscando a saída. Eu estava certo, como nunca estivera antes, da iminência de uma tragédia. Deixei de lado a insistência nas chamadas sem resposta para Áquila e disquei o número da emergência.
— Eu preciso de ajuda! Alguém vai matar meu irmão!
Era irônico que fosse uma tarde tão ensolarada quando eu me sentia o mais triste e desolado como nunca em toda a minha vida. Áquila não tinha nenhuma família imediata, então eu havia ficado responsável pelos arranjos póstumos. Já havíamos tido conversas sobre isso e ambos sabíamos exatamente o que o outro desejava que fosse feito após sua morte. Áqui havia sido enfático em dizer que confiaria em mim para lidar com o que fosse.
Talvez a cidade tivesse se saído melhor decretando feriado naquele dia. O número de pessoas presentes era assombroso. Ex-colegas de classe, companheiros de trabalho da música e do teatro, amigos, alguns parentes distantes, donos de bares, conhecidos e pessoas que só poderiam ser descritas como fãs: todos estavam lá. Lamentavam, choravam, faziam brindes, agradecimentos e homenagens em nome de Áquila, capturando para os rituais de sua morte um pouco do espetáculo que ele foi em vida. Todas aquelas pessoas tinham alguma memória alegre, uma história maluca ou algo pelo qual eram gratos a ele. Seria belo, se não fosse trágico.
Tudo o que eu tinha, por minha vez, era um imenso vazio, alternado com momentos de terror. Em minha mente, se repetiam os recortes dos momentos que vivi nos dias anteriores.
De nada adiantou minha corrida desesperada até meu melhor amigo. Quando cheguei à casa de Áquila, um carro da polícia já estava parado em frente ao portão e outros se aproximavam. Corri em direção à casa. A porta arrombada me permitiu ver a imagem mais terrível de toda a minha vida: Áquila estendido no tapete, seus olhos opacos e a pele pálida como eu jamais havia visto. O chão estava encharcado por uma quantidade de sangue que me pareceu absurda.
Era como se eu tivesse saído de meu corpo e estivesse testemunhando um pesadelo. Não era real. Não podia ser real. Me vi gritar e me debater. Alguém precisava fazer algo, tinham de salvá-lo, ele havia perdido muito sangue. Eu tentava abraçá-lo e, enquanto os policiais buscavam me conter, minhas roupas absorviam a vida de meu melhor amigo, manchando-se para sempre. Eu não era capaz de compreender que Áquila não iria se levantar, que isso não era apenas uma atuação, como em meu sonho. Nada fazia sentido.
Tudo que se sucedeu ao meu surto era um grande borrão. Presumo que os oficiais me levaram à delegacia e, não me lembrava quando, Mariah havia aparecido e me levado para sua casa. Me fez tomar um banho e trocar as roupas por peças limpas que eu deixara lá e ela não me devolvera, mas fracassou em me forçar a comer.
Os policiais estavam confusos. A casa era pequena e estava completamente fechada, nenhum pertence havia desaparecido e não havia quaisquer sinais de luta. Consideraram a possibilidade de suicídio, mas não encontraram na cena qualquer objeto que pudesse ser associado aos ferimentos. Não havia um culpado. Não havia uma arma. A pessoa mais importante da minha vida simplesmente não estava mais ali e ninguém era capaz de me dar qualquer resposta conclusiva do porquê.
Dali em diante, não me permiti sentir nada e comecei a tomar as decisões práticas. Fiz tudo como um robô, sem me permitir pensar no que ocorrera. Meus pais não seriam capazes de chegar a tempo. Estavam comemorando uma segunda lua-de-mel em Dubai e, mesmo largando tudo no mesmo instante para se despedirem daquele que consideravam como um segundo filho, não conseguiriam fazê-lo rápido o bastante. Eu não conseguiria adiar os rituais, esperar… não enquanto usava toda a força que restava em mim para não desabar. Por isso estava ali, sentado, me torturando com minhas confusas e desconexas memórias, enquanto observava outros despedirem-se.
A possibilidade de acreditar num Deus não parecia tão ruim em meio a tamanho sofrimento. Soava melhor do que apenas acreditar em “algo”, como tantas vezes antes defini minhas crenças. Eu desejava crer em qualquer coisa que me desse algum conforto, mas para mim não havia nenhuma promessa de reencontro. Nenhum sinal. Nenhum deus que fazia os mortos voltarem à vida, ou garantia de que se reuniriam após a morte. Infelizmente, apenas pesadelos pareciam tornar-se reais. Pedir ao vazio, em prantos, para ter meu amigo de volta, não surtiu qualquer efeito.
Depois de horas intermináveis vendo homenagens e respeitos serem prestados, Mariah me convenceu a voltar para sua casa e descansar. Morava em um apartamento muito aconchegante e decorado por ela mesma nos menores detalhes. Tudo bancado pelos pais, que não se importavam de gastar o que fosse para que a filha tivesse tudo o que queria.
Mariah era três anos mais velha que eu, mas enquanto eu já havia me formado e começava a construir uma carreira, ela havia pulado de publicidade — onde me conheceu — para psicologia, de psicologia para ciências contábeis e, atualmente, estava fazendo direito. Sem ter terminado nenhum dos cursos, ganhou o apelido de Jumper.
— Vinícius, eu vou tomar um banho, tá legal? Tente descansar ou comer alguma coisa, meu amor. Vou pôr seu celular para carregar — anunciou carinhosamente.
Eu apenas aquiesci sem dizer nada e fui para o quarto junto com ela. De certa forma, era parecida comigo: gostava de controle. Parecia sentir-se bem em ter-me fazendo o que dizia sem qualquer resistência. Me repreendi mentalmente depois de tal pensamento. O luto estava me fazendo ver até mesmo gentileza e cuidado com amargor.
Depois de colocar nossos celulares lado-a-lado perto da cama, Mariah me beijou.
— Vai ficar tudo bem, amor. Eu estou aqui com você, nós vamos passar por tudo isso juntos — assegurou.
Aparentemente, algo a fizera acreditar que estávamos namorando novamente e eu simplesmente não tinha energia alguma para afirmar o contrário. Respirar doía e eu precisava de todo esforço possível para não me permitir parar de fazê-lo. Não sobrava força para mais nada.
Mariah era linda, como uma boneca de porcelana trazida à vida. Olhos azuis, cabelos loiros lisos e compridos, sempre muito bem arrumada e dona de um corpo que poderia estar na capa de qualquer revista fitness. Ainda assim, apenas fiquei parado enquanto me cobria com seu carinho e desejo, incapaz de retribuir qualquer sentimento. Depois do beijo e dos abraços foi para o banho e pude me deitar sozinho, encarando o teto no escuro. A figura do homem de cartola ainda me assombrava, mas ninguém na polícia tinha notícia de qualquer pessoa com tal descrição.
A chegada de uma mensagem fez a tela do celular de Mariah acender. Peguei o aparelho apenas para virá-lo e impedir que a luz me incomodasse; era ultrajante que ainda houvesse qualquer luz no mundo. Mas me surpreendi ao ver a foto de minha mãe na tela ao lado de um texto que perguntava se eu estava bem e por que não estava atendendo ao telefone.
Abri a conversa para respondê-la. Era egoísta de minha parte ter ficado incomunicável. Meus pais também haviam perdido um filho, de certa maneira. Acalmei minha mãe e avisei que logo ligaria meu celular para conversarmos.
Enquanto digitava minha resposta, o relógio virou meia noite e a notificação de outra conversa pulou na tela. “Carmem Ocultismo” dizia: “O trabalho foi completado. Aguardamos o restante de seu pagamento”.
Estranhei que Mariah tivesse um contato como este. Não gostava nem que falassem sobre signos perto dela, uma das coisas que fazia com que ela e Áqui se desentendessem. O que a teria feito dar alguma atenção para coisas envolvendo ocultismo? Abri a foto do contato e meu sangue gelou. Uma mulher de uns quarenta anos com cabelos escuros e volumosos posava na frente de um veludo cor de vinho em um espaço entulhado com cristais, penas e quinquilharias esotéricas penduradas. De olhos arregalados, abraçava um grande livro com capa de couro onde, em alto relevo, se via a imagem de um homem barbado com uma cartola. Eram muitas coincidências se acumulando.
Abri a conversa, mandando ao inferno quaisquer limites de privacidade. Com pontadas geladas em meu estômago, li o diálogo entre Mariah e a tal Carmem ocultista. Haviam feito contato há algumas semanas, pouco depois de termos terminado o namoro. No início Mariah perguntou sobre leituras de tarô e maneiras de trazer um amor de volta, mas pouco depois suas intenções se voltaram para como remover um obstáculo de seu relacionamento.
Esmurrei a porta de madeira da pequena loja esotérica.
Me levantara e saíra do apartamento antes que Mariah terminasse seu banho. Havia sido fácil chegar ali: uma busca rápida na internet pelo nome do estabelecimento e o GPS do celular foram suficientes.
Já era quase uma da manhã, mas mesmo assim uma luz acendeu do lado de dentro e pouco depois a porta foi aberta pela mulher que eu havia visto na foto, Carmem. Nem mesmo dei a ela tempo para que terminasse de me perguntar no que podia me ajudar. Avancei para dentro da loja e forcei-a contra uma estante cheia de livros, minhas mãos apertando sua garganta enquanto ela se debatia desesperadamente em busca de ar:
— O QUE VOCÊ FEZ, SUA MALDITA? O QUE VOCÊ FEZ COM O ÁQUI?
Eu estava completamente fora de mim. O vazio e a impotência de antes foram substituídos por uma raiva incontrolável e a única coisa que me importava era que a mulher na minha frente e Mariah eram responsáveis pela morte de Áquila. Eu queria feri-las, fazê-las pagar.
Uma força violenta me atirou do outro lado da sala. Potes de vidro caíram de uma prateleira, acertando minha cabeça e se partindo no chão. Levantei-me tão rápido quanto pude, mas meu sangue gelou quando vi, frente a mim, o homem da cartola, com sombras dançando em torno dele como névoa.
Era como um filme de terror. Não podia ser real, eu certamente estava enlouquecendo. Batera a cabeça com força demais e começara a ver coisas.
Carmem se aproximou, massageando a garganta.
— Você não é um dos meus clientes, rapaz. O que tem a dizer a seu favor para evitar que um jovem tão bonito encontre uma morte prematura? — Colocou a mão sobre o ombro do homem, deixando claro seu domínio sobre ele.
— ME MATE ENTÃO, BRUXA IMUNDA! VOCÊ JÁ FEZ PIOR!
Eu não tinha medo de morrer. Queria que ela e Mariah sofressem, mas ter meu próprio sofrimento cessado também era uma opção.
Me dei conta de que estava chorando e xinguei mentalmente. Esse era o pior momento para ceder aos meus sentimentos.
— Aaaah… Você é o namorado da Barbie — A compreensão iluminou o rosto dela. Obviamente esperava me encontrar em algum momento.
— Ela parecia ser inteligente — comentou, desapontada. — Ainda levei um tempo pra cobrar, mas o cadáver nem esfriou e você já descobriu que ela é a responsável. Sim, ela!
Carmem sustentou meu olhar cheio de ódio.
— Isso aqui é uma loja. Eu apenas ofereci os meios para que a menina pudesse se reaproximar do “homem que amava”. Ela quem optou por matar a pessoa mais importante na vida dele para que pudesse ocupar seu lugar. Sinto muito pela sua perda — zombou.
— Isso não existe. Você e Mariah fizeram algo juntas, mas magia? — Eu estava ultrajado com tal insinuação. — Eu posso estar em luto, mas não sou burro.
— Ah, bebê… ainda no estágio da negação? Mesmo com a realidade diante de você, literalmente te jogando no chão?
— O que você fez? — perguntei entre dentes.
Assim como havia vindo, minha força se esvaiu. Eu estava cansado, sem comer e com o coração partido, e tudo isso começava a cobrar seu preço.
— Ele sofreu? — quis saber. Já me sentia derrotado.
— Você quer toda a verdade? Está disposto a pagar por isso?
O olhar de Carmem exalava segundas intenções que eu era incapaz de vislumbrar.
— Sim. O que você… — me encolhi de susto antes de terminar a frase.
Carmem fez um sinal com a mão e o homem de cartola avançou em minha direção, envolto pelas sombras bruxuleantes. Pensei que fosse me ferir, mas apenas colheu uma gota de meu sangue e retornou para o lado de sua mestra. Em meio ao desespero, eu não havia percebido o ferimento em minha testa. Talvez eu estivesse aceitando estar louco. Ainda enxergava a mesma imagem sobrenatural que estivera nos meus pesadelos e nos de Áquila. Era mais difícil a cada segundo julgá-lo uma alucinação.
— Eu avisei que isso é uma loja. Um conselho ao lidar com futuros negociantes: cuidado antes de dizer sim — advertiu, sorridente. — Magia é sim real. E olha, vou te dizer que você tem alguma no seu sangue, viu? Mamãe, papai… vovó? Alguém te fez herdar uma sensibilidade para o oculto. Obviamente você tem ignorado seus dons.
Pensei em como eu sabia que Áquila estava em perigo antes dele ser morto. Lembrei de meus pais e suas chatices esotéricas. Haveria algo mais por trás disso?
Carmem recolheu o sangue em um vidrinho.
— Bem, já que você pagou pela verdade… — deu de ombros. — Eu preciso te alertar de que havia outros modos, mas a sua garota parecia ter um grande ressentimento contra seu “amigo”, se era isso mesmo o que ele era. Eu invoquei os espíritos inferiores para perturbá-lo, sugarem sua energia, sussurrarem em sua cabeça quando ele estivesse sozinho e levá-lo, pouco a pouco, a tirar a própria vida. Nisso sei que ele sofreu.
Eu ainda relutava. Mesmo que estivesse descrevendo coisas que alinhassem com os sofrimentos que Áquila confessara quando conversamos pela última vez.
— Teria funcionado, mas tanto eu quanto sua namorada subestimamos a profundidade do laço entre vocês dois — continuou. — Uma noite em que você e o bonitinho ficaram juntos e pronto! Todo o trabalho de semanas infestando a mente do garoto de terrores foi por água abaixo. Vocês realmente se amavam. Tem quem não acredite que amor possa salvar, proteger… mas é verdade. — Pareceu impressionada ao dizer. — O feitiço quebrou em mil pedaços. Em todos esses anos de trabalho, nunca vi nada igual.
Carmem foi ao balcão da loja, serviu para si um copo de whisky barato e acendeu um cigarro. Eu permaneci onde estava, com as dores do corpo começando a fazerem-se sentir e com o homem da cartola me acompanhando com os olhos.
— Eu nunca deixo um cliente insatisfeito. — a bruxa falou. — Minha responsabilidade era indedutível. Se não foi por meios sutis, que fosse por meios brutais, então dei a ordem a Belphegor, que já estava servindo de vigia, para que resolvesse o assunto de uma vez e acabasse com o garoto. Foi uma pena, ele era tão bonito.
Carmem não demonstrava nenhum medo do que eu pudesse lhe fazer e contava a história como algo trivial. Provavelmente o homem da cartola, que assumi ser o dito Belphegor, seria capaz de me matar num piscar de olhos.
Sem a cortina da raiva sobre meus olhos, passei a enxergar que precisaria pensar melhor no que fazer antes de me vingar. Comecei a caminhar com passos arrastados em direção à saída. Não sabia o que pensar, não tinha ideia do que fazer. Definitivamente precisava de tempo para absorver tudo o que havia ouvido e decidir no que acreditava. Meu mundo mudara para sempre.
Carmen assistia em silêncio quando me virei para perguntar:
— Quanto Mariah pagou para que você fizesse isso?
— A parte financeira ficou em dez mil, mas há sempre outros custos quando se trata de magia.
— Mariah não acredita nessas coisas de ocultismo. Quem trouxe ela aqui?
— Ah, a Barbie chegou aqui bem cética mesmo. Disse que uma amiga fazia mapa astral comigo, que ela mesma não acreditava nessas bobagens místicas, mas estava desesperada de amor, que você era o único que fazia ela feliz. Pobrezinha, desperdiçou um dinheirão: eu costumo cobrar metade disso. Forcei a mão porque a boneca parecia fina — admitiu. — Bem, desperdiçou se você não voltar com ela — pontuou, baforando fumaça.
— Voltar? Eu vou matar ela — Todo o meu sofrimento pesava em minha voz.
— Quer dar uma olhada no meu catálogo, benzinho? Eu tenho umas opções bem criativas no nicho da vingança. — Carmem fez a oferta sem qualquer pesar.
— Eu vou matar você também — disse, já de costas e com a mão na maçaneta.
— Você pode até tentar, mas acho mais fácil virar meu cliente, bebê. Tu não é o primeiro a passar por uma perda dessas, sabe… — Deu de ombros. — Vivem dizendo que vão matar, se vingar e não sei mais o que, mas voltam me pedindo ajuda.
Ri alto: uma risada morta, carregada de escárnio.
— Ajuda? Você pode trazer alguém de volta à vida? — Perguntei me virando para encará-la, raiva e sarcasmo pontuando cada palavra.
Carmem sorriu e encheu novamente seu copo:
— Por um preço adequado…
Dizem que a barganha é um dos estágios do luto. O quanto de mim mesmo eu estaria disposto a entregar em troca de ter Áquila de volta?
Fechei a porta e voltei para o centro da loja. A bruxa olhou em direção ao homem de cartola e, sob um comando silencioso, ele serviu um copo de whisky para mim. Com uma expressão satisfeita, a bruxa declarou:
— Agora, bebê, vamos falar de números.
Caraca, eu adorei. Fiquei curioso pra acompanhar a continuação. Parabéns, muito bom trabalho!