Progressão

UM

Foi na época em que o Anjo morava com a gente. Já não aguentava mais varrer as penas. Que seu quarto fosse um ninho impregnado daquele odor celestial, eu não me importava. Passei a me incomodar quando levei um cara qualquer para passar a noite e uma auréola suja tinha sido deixada sobre o sofá. Ele me perguntou o que era, tive de explicar toda a história. A longuíssima história. De como nos conhecêramos, a visão do paraíso se abrindo, o esplendor divino, a aparição, etc, etc. Como esperado, aquilo acabou com todo o clima e passamos o resto da noite discutindo teologia. Eu já não suportava mais o assunto.

Mas você não pode ir, não pode me deixar sozinha com ele. Minha colega de quarto mais mundana passava o dia inteiro fora, no escritório. Era de se esperar que ficasse aflita com minha ausência repentina. Expliquei que seria só um mês. Precisava dar uma espairecida, longe daquele ambiente miraculoso que se tornara nosso apartamento. Como vou fazer para cuidar dele sozinha?! Ora, ele faz tudo praticamente por conta própria. Basta trocar a água de manhã e à noite e abastecer a geladeira de abacates maduros, sua comida favorita.

Mentiras. Eu estava bem ciente da trabalheira que ela iria ter com ele. Concebido em outro plano existencial, o Anjo estava acostumado a receber o melhor tratamento e a passar horas, dias, às vezes semanas a fio em serena contemplação. O que contemplava? Difícil dizer. Algo como a beleza da criação. Qualquer coisa sobre como a face de Deus resplandecia em cada silhueta terrena. Eu então questionava o gosto estético divino. Especialmente quando negligenciávamos a louça e brotavam aquelas larvinhas que se contorciam pela pia. De qualquer forma, enquanto ele contemplava, os afazeres domésticos se acumulavam. Sem minha ajuda, Helena sofreria.

DOIS

Achei por bem não me despedir de ninguém. Tinha medo de que me impedissem. Fugi durante a madrugada, por assim dizer. O Anjo estava acordado, pois não dormia. Deve ter fingido não notar, em sua infinita bondade. Aliás, podia muito bem ter ficado preso em alguma meditação ou prece noturna e se distraído tanto que não percebeu o barulho das rodinhas da mala sobre o assoalho, ou mesmo o tropeção que me rendeu uma mancha arroxeada no joelho e uma exclamação emputecida que fora banida da residência desde que decidíramos dar abrigo ao ser iluminado de nome terminado em “el”. Engraçado como jamais decorei como se chamava. Miguel, Gabriel, Rafael, os nomes angelicais me soavam todos iguais. Apelidei-o de “Fel”, durante uma confraternização em que ficáramos os dois especialmente bêbados. Ele gargalhara, algo na linha de como jamais compreenderia os meandros do pensamento humano. Aquela pose perene de superioridade criacional que me tirava do sério. Porra, podia de vez em quando fingir que existia em pé de igualdade conosco. Só de vez em quando, pedia muito? Achava que não. Ele concordava, mas nada mudava. Talvez não pudesse mudar, feito planta que insiste em mirar o sol por mais que se vire o vaso.

QUATRO

Quando ganhei o mundo, simultaneamente me perdi. Ou, ao contrário, para ganhar o mundo eu precisava me perder nele. Foi o que fiz. Ao cabo de uma quinzena já nem sabia onde me encontrava.

– Sem códigos e metáforas, Pedro. Onde diabos você está?

– Ui, diabos. Ele deve estar na cozinha.

– Estou ligando do escritório.

– Não sei onde estou.

– Como assim não sabe?!

– Peguei o metrô, depois o trem, depois um ônibus e desci quando achei que estava distante o suficiente de mim mesmo. Estou andando a esmo há meia hora. Não reconheço nem os postes da rua.

– Quer dizer que ainda está na cidade?

– Talvez. Não dá pra ter certeza. Me lembro de um aeroporto, em algum ponto. Mas nem disso estou seguro. Pode ter sido somente o barulho de um avião.

Coincidentemente, a força do acaso quis que fosse parar numa igreja. Uma capela carcomida, construída apoiada no morro, tão à margem do que se entendia como igreja quanto a rua de terra batida que levava até ela. Seus bancos vazios me irritaram. Na realidade, o eco produzido pelo espaço abandonado foi o que me enervou. No fim das contas, me percebi com raiva da própria voz. Não que o sentimento autodestrutivo me fosse estranho. Só pensei que era inapropriado que surgisse ali, tão fora de circunstância. Tão longe do cotidiano. Saí.

OITO

No verão piorava. As sucatas vibravam com o calor, transpiravam, desprendiam-se. O resultado vinha no formato de ondas opacas de luz malcheirosa. O ferro velho ficava inteiro empesteado daquele odor, e não se podia escapar dele mesmo nos trilhos do trem, mais além, por onde caminhávamos sem objetivo nos dias mais quentes. “Você é hilário”, ela me disse. Achei a observação exagerada. Segui me equilibrando sobre a linha, me esforçando para não cair. Hilário era que estivesse há tantos anos vagando e tivesse me acomodado ali, entre todos os lugares que poderia ter escolhido. E que houvessem me arrumado uma companheira tão similar a Helena, com quem dividira uma vida diferente, mesmo que apenas na superfície. Desde que destruíra o celular, perdera a noção de proximidade. Embora me fosse permitido usar o aparelho da sede, contanto que compensasse em serviço as palavras trocadas. Fiz meus cálculos e decidi que não valia a pena. Preferia matar o tempo com aquela garota metálica que se movia desajeitadamente para cima e para baixo, sempre me seguindo. “Você é brilhante”, ela me disse. Sorri e notei que um de seus olhos tinha se soltado e caído alguns metros para trás. Voltei, apanhei-o, limpei-o com a barra da camiseta e ajudei-a a encaixá-lo de volta na órbita. Ela prescindia deles para enxergar, se é que realmente enxergava. No entanto, eram parte vital de seus parcos recursos de expressão. Sem eles, as sobrancelhas riscadas a giz ficariam ainda mais patéticas. Alcançamos o limite da propriedade, marcado pela encruzilhada. Dali em diante morava o perigo, pois as locomotivas ainda perambulavam desgovernadas desde o apagão. De um jeito ou de outro, o pai a proibira de cruzar a fronteira. E eu me recusava a prosseguir sozinho. Então voltamos, mais devagar do que fomos. “Você é lindo”, ela me disse.

SEIS

Me encontraram dormindo na calçada. Sem que eu notasse, tamanho o estado de desidratação a que chegara, me puseram para dentro e jogaram meu corpo inerte sobre algo que já fora uma cama, mas que agora era uma piada de mau gosto. Lembrava-me de ter aceitado comida e água. Muita água. Aos poucos, fui voltando a mim. Nunca totalmente, nunca por completo. Alcancei um estágio intermediário de ciência das coisas e nele permaneci. Me apresentaram o ferro velho, explicaram como se ganhava dinheiro por ali, como se sobrevivia. Muito solícitos, muito educados, os funcionários do empreendimento mequetrefe acabaram descobrindo que me chamava Pedro e que tinha fugido de casa. A fuga era mentira, ou no máximo uma aproximação, porém explicar a situação nos detalhes exigia um esforço que não estava disposto a realizar. Eles me acolheram e me levaram até o pai. O pai dominava o local. O pai mandava, os demais ouviam e obedeciam. Ele me recordava o Anjo, mas às avessas. Não que mostrasse sinais de impiedade ou sadismo. Mais pela miséria em que vivia, mais pelo fato de que precisava se impor, quando o Anjo conseguia que todos o servissem sem que se fizesse necessária uma só solicitação. Cogitei me rebelar contra sua autoridade. Ele me dissuadiu quando montou a garota metálica a partir dos restos de um androide desativado e a me deu de presente.

TRÊS

Logo que saí do apartamento, não soube como agir. Faltavam-me planos. Meu primeiro reflexo foi abrir um aplicativo e chamar um motorista. Todavia, esse tipo de procedimento deixava um rastro e eu já pretendia desaparecer desde aquele momento. Não sabia que levaria tanto tempo para retornar. Um mês arrastaria consigo o resto do ano, e o próximo, e o seguinte, até que me esquecesse do caminho de volta. E, depois, não fazia mais sentido voltar. Por mais que o Anjo tivesse ido — por mais que já tivesse ascendido, ou sido acolhido novamente junto à plenitude celeste, alçado voo, desaparecido, reencarnado ou o que quer que fosse que os anjos faziam quando partiam — Helena provavelmente teria seguido em frente. Arrumado outros colegas de quarto, para repor a ausência dos que a abandonaram. Então eu também segui em frente. Andei até a estação, e de repente o metrô se convertera num barco pesqueiro que me deu carona a contragosto para que atravessasse o canal. Escutara rumores de que havia esperança na outra margem. Em retrospectiva, devia ter desconfiado de meus ouvidos. Bebia abundantemente num bar do porto, na companhia de cinquenta homens e pouquíssimas mulheres, portanto o desespero se constituía na voz que ladrava mais alto no recinto. E onde reina o pânico, a esperança não demora a ser mencionada, pintada de ouro, travestida de princesa, alardeada aos quatro ventos como a terra prometida. O lado de lá do canal era igual ao de cá.

ZERO

Conheci Helena na feira. Eu comprava bananas, ela carregava um exemplar de cada legume ou fruta já inventado, feito uma arca de Noé para vegetais. Foi como puxei assunto, ajudando com as sacolas. A miríade de sacolas que não se rompiam somente por compaixão. Acompanhei-a até onde morava, só cinco minutos caminhando, moço, se pudesse ajudá-la agradeceria muitíssimo. Deixei-me levar por seu papo mole e busto farto. Sempre tive um fraco por mulheres diretas e rapazes tímidos. Ela me pediu para que entrasse. Podia deixar ali na cozinha, muito obrigada. Em semanas morávamos juntos, sem nunca ter havido um pedido de namoro, nem nada. Seria sempre assim entre a gente, passos apressados que não levavam a parte alguma. Até que o que tínhamos, e que eu jamais soube identificar, esfriasse e eventualmente morresse. Mesmo quando passamos a dividir os rapazes tímidos, não foi suficiente para nos resgatar. Ela decerto esperara que eu arrumasse um emprego decente, que estudasse, que me tornasse alguém na vida. Queria filhos, brigávamos constantemente por causa daquele papo insuportável de filhos. Foi o que trouxe o frio para dentro de casa. E depois, ironicamente, o Anjo, com seus modos escassos e penas sobressalentes. Uma benção deturpada, porque de súbito tínhamos um filho crescido e o que me horrorizava eram os bebês. Passamos de amantes a meros colegas de habitação, unidos pela responsabilidade que nos fora imposta. E eu decidi fugir.

Author: Heitor Zen

Heitor Zen é escritor e funcionário público em São Paulo. Granduado em direito pela USP e pós-graduado pela FAAP. Divide o tempo entre o diridiquês que escreve no trabalho e as histórias que se escrevem (praticamente) sozinhas em casa. Instagram: @heitorzen

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *