Ele prometeu que manteria o coração, mas as circunstâncias mudaram. E é só superstição, no fim das contas, toda aquela história de o-coração-é-o-lar-da-alma, você não precisava ter estudado pra saber que era o cérebro que dava as ordens – se não, qualquer um com um coração brilhante seria um imbecil sem sentido ou um robô sem emoções, e Jô conhecia gente que tinha feito o serviço. Era igual a vender uma perna ou fígado, só mais complicado por causa do sangue que bombeava através dele. Mas tente dizer isso à sua mãe.
Então ele não tenta. Só sai da caixa de aço que eles chamam de casa sem dizer nada e, quando ela grita: “Aonde vai?”, mente fácil: “Ao ferro-velho”.
“Não vá perto da fronteira”, ela diz na voz de alguém que espera ser desobedecida mas está cansada demais pra fazer algo a respeito disso.
“Não vou”, ele mente de novo.
Então sai pela porta e está na favela. Não é assim que a chamam hoje em dia – a cidade de fora, dizem no noticiário –, mas antigamente, de acordo com Marcos, seu nome era esse. Marcos estudou por um tempo, antes das escolas fecharem de vez, depois voltava e contava a Jô o que tinha aprendido. Muita coisa ele esqueceu, mas isso ficou grudado na cabeça: que favela era uma planta que se tornou o nome para uma comunidade, um arbusto espinhoso com florzinhas brancas que crescia nas colinas onde as pessoas começaram a construir barracos. Isso surpreendeu Jô por dois motivos: primeiro por algo feio receber o nome de algo belo, segundo porque ele nunca vira uma flor e não conseguia imaginar uma crescendo onde vivia.
Ali, perto de onde o antigo rio corria antes de ser cimentado, nada nascia nos trechos de poeira entre as faixas de asfalto. Não que fosse muito melhor em qualquer outro lugar. Uma cidade com nome de santo – que piada. Você só precisava passar um tempo em São Paulo pra deixar de acreditar em Deus. Na igreja, quando a mãe o arrastava, eles falavam sobre recompensas, campos verdejantes e abundância, mas tudo que ele conhecia era cinza, sangue e fumaça.
E os padres diziam que você precisava ser inteiro pra entrar no céu. Outra piada. Era fácil para os desgraçados ricos que compravam as partes de gente como ele, sempre se renovando. Mas se sua única fonte de renda era seu corpo, não havia muita escolha.
O pai de Marcos tinha um emprego, então Marcos pôde estudar e era quase inteiro. Ele repôs um olho quando era pequeno (a mãe ficou doente e eles precisavam do dinheiro) e um pulmão alguns anos depois (crise do mercado; os preços subiram quando um incêndio destruiu as colheitas). As pessoas relutavam em vender membros porque era óbvio demais – você não conseguia um emprego decente se era todo reposto – mas interessava aos ricos então vendiam alto. Além disso, era muito mais seguro trocar um braço ou perna – mais fácil de instalar, menos jeitos de dar errado. Órgãos apresentavam todo tipo de problemas com o tempo, especialmente se você os arranjava com um médico dos fundos e não um de verdade. Mas médicos de verdade ficavam com uma porcentagem tão grande que mal valia a visita. Suas reposições eram melhores, mas Jô conhecia lugares que conseguiam órgãos mais baratos de países distantes, de modo que a parcela do doador era maior.
Todas as suas reposições foram assim – o braço, a perna, os pulmões, o rim e os olhos. A mãe chorava toda vez, dizendo que ele nunca entraria no céu, mas Marcos dizia que isso era bobagem. Se havia um Deus, ele argumentava, ele tem que saber que a gente não teve escolha. Senão, pra que serve?
Jô acreditava nele. Não porque se importava particularmente com o que aconteceria depois da morte, mas porque confiava em Marcos para tudo. Nunca conheceu alguém mais inteligente. Desde que eram crianças, morando um ao lado do outro, Jô o ouvia o dia todo, falando sobre coisas que não entendia completamente, explicando conceitos com imagens e letras na poeira.
Milagroso, o jeito como funcionavam os dedos de Marcos: criadores de cenas e mundos inteiros, delicados e precisos. Uma vez ele prendeu a mão em sucata e gritou ao puxá-la, pensando que perderia os dedos; os outros garotos riram e o chamaram de menina, mas Jô quase começou a chorar também. Seria uma pena perder aqueles dedos. Dedos brilhantes não desenhariam tão bem.
Esta é outra coisa que sua mãe não aprovaria – que ele está apaixonado por um garoto. Talvez aprovasse menos do que ele vender o coração. E definitivamente não aprovaria o motivo para ele fazer isso.
O pensamento não diminui seu passo enquanto ele percorre os becos estreitos até seu destino. A doutora mora perto da fronteira, próximo da cidade de fora que precisa vender e da cidade de dentro que quer comprar. Há uma cerca ali, com um portão largo e guardas com metralhadoras gigantes. Atrás dela, a cidade se ergue infinita e vertiginosa, arranha-céus cinza arranhando um céu da mesma cor. O portão fica aberto durante o dia, mas você não consegue entrar se eles não gostam da sua cara ou da sua cor. Marcos costumava ter que mostrar os documentos pra passar, provando que ia para o trabalho.
Jô não ficou surpreso quando ele arranjou emprego, com aquela mente e aquelas mãos, mas que desperdício era colocá-lo pra lavar chãos e banheiros. Só que Marcos não ligava – ele foi contratado por uma família que vivia num condomínio fechado com um jardim.
Eles têm árvores, ele contava pra Jô de noite, árvores de verdade como nas antigas florestas, embora espécies que nunca nasceram naturalmente lá – as sementes eram trazidas de partes diferentes do país e replantadas em casas particulares, ele explicava –, mas mesmo assim, era incrível. O próprio ar é diferente, ele dizia, e há cheiros que você não acreditaria. Então ele tentava definir esses cheiros, fazendo Jô rir porque “como o céu quando está azul” não significava nada.
“Eu queria ter vivido naquela época”, Marcos disse uma noite quando eles estavam sentados no telhado do seu barraco. “Antes de tudo isso.” Ele deu um tapinha no braço de metal de Jô, que refletia o luar. “Tudo aquilo.” Apontando para o ar, a noite, a cidade se alongando à distância, milhões de luzinhas dentro de espirais escuras. Então ele parou, os olhos perdidos em algum pensamento triste, e Jô disse “Me conte das flores de novo”, recebendo um sorriso de volta que fez a noite parecer iluminada.
Não está iluminado agora, apesar do sol que o fustiga e reflete o aço ao seu redor. A casa da doutora é uma caixa como todas as outras, mas seu cheiro é inconfundível, uma mistura de sangue e antisséptico. Ela não é uma doutora de verdade, claro, não como os inteiros com seus diplomas – o apelido é um meio deboche, do jeito que as coisas funcionam por ali. De vez em quando ela é presa, mas sempre a soltam no fim, porque alguém precisa fazer o serviço.
Ela franze o cenho de leve quando ele entra, apertando os lábios. Há uma pausa desconfortável em que ele pensa que ela vai dizer algo diferente, mas o que sai é: “Sua mãe me disse pra não operar em você.”
“Esquece isso”, diz Jô. “Ela nem vai saber se você me costurar direito.” Ele bate no peito.
A mulher ergue uma sobrancelha. “Isso é delicado. Você entende que há uma chance que…”
“Preciso voltar pra casa antes do jantar. Dá pra fazer agora? Você tem um comprador?”
Ela hesita, então solta o ar. “Sempre tem pra um coração.”
Eles fazem ali mesmo. Ele não vai se lembrar de nada, apagado por um negócio potente que ela consegue só Deus sabe onde, acordando algumas horas depois sentindo uma dor latejante no peito. Olha pra cicatriz, uma linha vermelha irritada. A doutora diz que a dor vai melhorar em alguns dias. Ele duvida.
Mas nada mais parece diferente. Ela é boa.
“Tem umas roupas aí? Preciso ir pra dentro”, ele diz, a mão escorrendo no próprio sangue enquanto se senta. Ela tem: um garoto do tamanho dele morreu dois dias atrás, depois que o pulmão brilhante quebrou. Jô pega uma camisa de manga comprida que vai esconder seu braço e calças que vão disfarçar a perna. Não há muito que pode fazer quanto aos olhos, mas ele provavelmente não vai ser parado por isso – até na cidade de dentro o pessoal vende um olho ou dois.
Eles o deixam passar pelo portão e ele pega um trem, quatro paradas, com os olhos abaixados, a mão de carne apertando o dinheiro dentro do bolso da calça. Sai. Encontra a loja sem dificuldades – ficava no caminho de Marcos pro serviço e ele mencionava o tempo todo – mas estanca ao entrar. É a primeira vez que está num lugar como esse. Cheira diferente mesmo, ele pensa.
Então o momento estoura. Ele fica nervoso perto dos inteiros, que o olham como se soubessem de onde vem, relanceando para os guardas para o caso de terem que mandá-los pra cima de Jô, e ele só compra o que veio buscar e vai embora. E volta – as quatro paradas, o portão, até a cidade de fora –, vira à esquerda e anda e anda e anda. As casas ficam mais esparsas e então há um trecho de terra queimada cheia de sucata recuperável – o ferro-velho – e, no outro lado, um muro de concreto com um portão diferente. Menor. Sempre aberto.
Marcos jurou que não estava roubando; só queria ver como era a textura, parecia tão suave, tão diferente de metal. Mas aprendeu que flores eram frágeis. Uma pétala caiu. Foi chamado de ladrão e a lei diz que ladrões não precisam de mãos.
Ele chorou por dias quando as tomaram.
Algumas semanas depois parecia bem, mas Jô conseguia ver a diferença – seus sorrisos não brilhavam mais nos olhos, e os olhos se perdiam ao longe. Jô pedia que falasse das coisas que sabia, das coisas que gostava, mas lembrar dos jardins só o deixava mais triste então ele parou de pedir, observando impotente enquanto Marcos ficava cada vez mais quieto, aquele olhar distante se voltando para dentro, até algo que só ele conseguia ver. Ele não conseguiu um emprego com aquelas mãos. Teve que começar a vender também.
Não é culpa da doutora, ele pensa ao entrar. Ela é boa. As vidas só são curtas ali fora.
A única placa é aço com o nome dele gravado, a primeira palavra que Jô aprendeu a ler, pedindo por ela em vez do próprio nome, desenhando-a na poeira quando estava sozinho. Ele a lê agora, murmurando os sons para si mesmo como uma prece. E na frente dele, o único túmulo do lugar com tal honraria, ele deixa uma flor que custou um coração.