“Oponto alto do texto é a dinâmica entre Áquila e Vinícius”.
Esta frase foi um dos apontamentos feitos na primeira revisão de meu conto. É meu segundo comentário favorito (perdendo para “Áquila é o personagem que mais brilha”). A frase citada me assegurou de que os editores tinham entendido exatamente sobre o que era essa história. Mais do que fantasia, monstros e bruxaria, Um Preço Adequado é sobre a amizade entre dois homens jovens com personalidades, raças e orientações sexuais distintas e sobre como essa relação os afeta e fortalece.
Alguém uma vez disse que não escrevemos sobre nada além de nós mesmos. Eu sei que eu não. É um grande privilégio que, ao longo da vida, eu tenha me cercado de relações totalmente capazes de abraçar minha identidade, minhas peculiaridades e expectativas sobre o que constitui uma boa amizade. Fico feliz em dizer que não precisei extrapolar a realidade ao narrar a amizade de Áqui e Vini. Muito deles vem de experiências vividas. Vinícius carrega traços de alguns dos meus amigos próximos e Áquila talvez seja uma caricatura de atributos que esses amigos associam a mim.
Para falar sobre a(s) masculinidade(s) desses personagens, preciso falar um pouco sobre minha bagagem e meus pensamentos sobre o feminino na ficção. Eu sou uma cria dos anos 90 e arrisco dizer que cresci com algumas das melhores e mais influentes peças de entretenimento audiovisual já feitas. Minhas favoritas: Xena – A Princesa Guerreira, Buffy, A Caça-Vampiros (bem como seu spinoff, Angel) e Charmed; são inspirações que carrego comigo em minha maneira de contar histórias. O que todas têm em comum? Bem, elementos fantásticos e mulheres fortes como protagonistas.
Como a maioria dos garotos que não é hetero, cresci me identificando muito mais com personagens femininas do que com suas contrapartes masculinas. Hoje consigo vislumbrar com maior clareza os motivos disso. A verdade é que, até hoje, o entretenimento peca na representação de homens, privilegiando alguns clichês, fantasias e estereótipos que não contemplam as diversas masculinidades possíveis e existentes. Hoje em dia há maior senso crítico ao dizer disparates como “isso não é coisa de menino”, mas lá pelos anos 90 e 2000 eu sei bem o quanto sofri por ser sensível, gostar de moda e detestar futebol. Ai, Gabi… Só quem viveu sabe.
Eu não me via nos heróis (quase sempre) brancos e (decididamente, sempre) heterossexuais, que resolviam tudo nas lutas, mas não pareciam ter quaisquer envolvimentos emocionais profundos. Tampouco me identificava com os nerds “perdedores”; geniais, porém socialmente isolados e sempre sedentos por atenção do sexo oposto.
Nas histórias onde eram protagonistas, os homens eram retratados como “durões”, quase sempre hipermasculinizados, mulherengos, frios e incapazes de conversarem sobre seus sentimentos. Retrato real de uma geração que sofreu psicologicamente com as limitações emocionais impostas pelo machismo.
Nas histórias protagonizadas pelas Mulheres Fortes™, esses homens não se tornavam menos planos. Eram quase sempre alívios cômicos, vilões canastrões ou interesses românticos, exibindo apenas as características que servissem para cristalizá-los em tais papéis. Porém, quando personagens femininas eram o centro da narrativa, as mulheres tinham camadas. Eram retratadas com uma complexidade muito maior do que a dos homens na ficção. O senso de responsabilidade dessas heroínas caminhava lado a lado com suas habilidades de cuidar e proteger. Era sobre mais do que destruir inimigos, era sobre defender quem amavam, os inocentes e o mundo, muitas vezes a um grande custo pessoal. Pesquise sobre o Grrrl Power e o que isso significou na época.
Eu não me via em nenhum dos personagens masculinos icônicos da década de 90, mas me enxergava totalmente em Buffy Summers tecendo comentários sarcásticos sobre demônios antes de derrubá-los com um soco. Ela era subestimada por ser uma garota, eu era ridicularizado por ser um garoto considerado “feminino”. Bem… não era essa a palavra que usavam, mas vocês devem ter entendido. Também me via em Prue Halliwell, sendo a irmã mais velha, responsável, autoconfiante e à qual todos recorriam quando precisavam de ajuda, mágica ou prática, algo a que ela era incapaz de se recusar, mesmo que lhe fosse custoso. Eu também sou irmão mais velho e presente na criação de meus irmãos.
Por mais guerreiras que fossem, essas mulheres tinham papéis familiares como mães, irmãs e amigas, algo que ia além de seus super-heroísmos. Uma ótima metáfora para o conceito de dupla jornada, em minha opinião. Eram essas coisas que me inspiravam e com as quais me identifico até hoje. Me formei em uma profissão predominantemente feminina (psicologia), sou ótimo cozinheiro e a melhor companhia para fazer compras. Muitas das habilidades associadas ao feminino me compõem e eu amo isso.
Talvez a primeira peça chave que reconheci sobre minha escrita tenha sido meu desejo (diria até necessidade) deretratar homens que transgredissem as possibilidades limitadas de masculinidade que nos foram dadas. Eu queria escrever sobre homens afetuosos e cuidadosos. Sobre pais, irmãos e amigos, que se relacionavam com outros homens de maneira íntima, verbal e física, sem que isso se restringisse a homossexualidade ou a um romance entre eles. Com isso em mente, nasceram Áquila e Vinicius.
Foi para uma antologia que essa ideia surgiu, mas em meio ao processo criativo dei-me conta de que esses amigos precisariam de mais páginas do que as que lhes estavam sendo ofertadas para que atingissem seu potencial completo. Típico do Áquila que, antes da revisão final, tinha duas páginas de descrição só para ele.
A criação de ambos também foi inspirada por dinâmicas vindas de seriados, nesse caso duas obras mais recentes: Veronica Mars (2005) e Pretty Little Liars (2009). Ambas séries narram amizades entre garotas pontuadas por tragédias. Foi sofrido me apaixonar cada vez mais por Áquila sendo que o criei já ciente de seu final. Vinicius exigiu mais trabalho e só se mostrou por completo após a revisão cuidadosa da Laís, que pontuou o que faltava ser escrito para que o Vini da minha cabeça fosse nítido para o leitor.
Por falar em revisão, a desse texto foi uma das mais difíceis da minha vida. Um Preço Adequado estava entre as primeiras histórias que escrevi ciente de meu desejo por uma carreira no mercado editorial. A primeira versão do texto nasceu em abril de 2019. A versão enviada para a Trasgo foi feita em agosto do mesmo ano. De lá para cá eu publiquei, li, revisei, editei e organizei muitos outros trabalhos. Ler novamente algo do “começo” me fez ver montes de coisas que poderiam ser refinadas, e o olhar da Trasgo foi além! O resultado me deixou orgulhoso em ver que os sentimentos permaneciam no lugar e a arte tinha se aperfeiçoado.
Narradores em primeira pessoa não são confiáveis, mas era essencial para esta história que Áquila fosse descrito pelos olhos do amigo/irmão. Acredito que parecemos maiores e melhores através do olhar daqueles que nos amam, então, para que o jovem artista fosse descrito de maneira que fizesse jus ao impacto que tinha naqueles que o cercavam, não poderia ser apresentado por um narrador distante. As analogias cinematográficas usadas para pincelar o que seria ter Áquila por perto visavam justamente descrevê-lo como algo além da realidade. Eu queria que quem lesse considerasse a possibilidade de Áqui ser algo místico, mais que humano e depois percebesse que era só um carisma descomunal e o amor de quem o descrevia.
Outra herança das histórias noventistas na minha escrita é o uso do sobrenatural como metáfora para os conflitos e características dos personagens. Embora ainda tente me aventurar no gênero vez ou outra, me considero abaixo do medíocre quando se trata de escrever terror (a proposta inicial da antologia para qual a ideia deste texto foi concebida). Felizmente, os elementos contidos na história permitiam que a mesma se fixasse em fantasia urbana. Um respiro, pois é onde me sinto em casa.
Uma curiosidade engraçada é que Carmem nasceu inspirada em uma pessoa, mas quanto mais eu a escrevia, mais me vinha em mente a saudosa atriz Marília Pêra. Hoje leio as frases da bruxa imaginando Marília dando vida à personagem. De início eu não queria que a última frase do conto pertencesse a Carmen, mas não tinha como escapar disso: a palavra final tinha de ser da bruxa.
Em minha escrita eu queria desde o começo retratar rapazes que conversavam sobre seus medos, seus sonhos e fossem capazes de expor suas vulnerabilidades. Que eles pudessem se abraçar, emprestar roupas um para o outro ou dormir na mesma cama, como tantas garotas faziam com suas amigas em seus filmes e séries de TV, sem que isso fosse uma declaração de que, na verdade, estavam apaixonados um pelo outro, ainda que talvez um deles não fosse necessariamente heterossexual. Narrar o afeto entre homens sem que ele fosse usado como piada ou subtexto.
Eu queria escrever jovens pretos que não fossem bandidos, ou “os músculos da operação”, mas seres sensíveis, artísticos e protagonistas de suas histórias. Abandonando o papel que lhes era constantemente relegado: o de melhor amigo, que serve para suporte, crescimento e contraste de um personagem considerado mais desejável e palatável que eles, ainda que seja menos carismático e interessante. Eu queria e ainda quero. Fiz e ainda faço. Escrevi e continuo a escrever dinâmicas que bebem em clichês (pois se eles existem é por funcionarem), mas os subvertem para trazer algo que há muito precisava ser contado.
Acredito que estamos sempre nos constituindo como indivíduos. Minha construção como homem, como escritor e como artivista nunca para. Fui criado por uma mulher forte (beijo, mãe!) e cresci com narrativas sobre o feminino. Isso me proporcionou ser um homem melhor e escrever sobre homens distintos. Gosto de acreditar que tem alguns garotos parecidos comigo que se sentirão menos sozinhos ao lerem as possibilidades escritas nestas histórias e que os garotos diferentes de mim também poderão imaginar novos limites para quem podem ser.
Fala-se bastante sobre a masculinidade tóxica, que poda os homens de se expressarem e demonstrarem-se seres humanos sensíveis e empáticos. O caminho para a construção de uma masculinidade saudável passa pela diversificação e expansão do que abarca o conceito de ser homem e isso vai exigir que paremos de negar e diminuir a importância do feminino na nossa construção como indivíduos.
Homens podem chorar, podem gostar de ballet, podem ter medo do escuro e devem se permitir viver e sentir em plenitude a experiência do que é ser humano, algo não restrito a um único gênero. Quem sabe, com um pouco de sorte, os rapazes que escrevo inspirem leitores como Cordelia Chase me inspirou? Afinal, “Nós pegamos o que temos e fazemos o melhor que podemos, campeão.”