Editado por Rodrigo van Kampen
Plantamos quatro pessoas na colina!”
Após trinta e cinco dias de trabalho no alto da montanha, o guerreiro Tupac e seus dois filhos mais velhos voltaram cansados da saga do plantio, mas vibrando. Traziam a promessa de uma colheita próspera no próximo solstício. Recepcionados pelos líderes da aldeia, abraçados pelas esposas, exibiam com orgulho as ferramentas esfoladas da lida.
Com o alvoroço ao pé da montanha, não demorou para a história se espalhar e o clima de otimismo tomar conta dos aldeões. Fazia tempo que ninguém servia para semente.
Ao ouvir os primeiros rumores, o pequeno Rumi saiu correndo pela cidadela ecoando a boa nova em alto e emocionado som. Os ventos gélidos serviram de linha de transmissão para a manchete do menino, que balançava a cabeça para um lado e para outro, de modo a alcançar mais e mais ouvintes: “Plantaram quatro pessoas!”, “Plantaram quatro pessoas!”.
Embaladas pelo êxtase de Rumi, outras crianças que estavam pela rua e à porta das casas saíram correndo atrás do menino-megafone, fazendo coro. Logo se viu uma legião de pequenos quechuas percorrendo as ruelas, até que a voz de Rumi foi consumida pelo riso descompassado do grupo.
Alguns meninos que descascavam milho, sentados em um semicírculo à frente do depósito de mantimentos, entreolharam-se. Ainda não tinham idade para empunhar a lança, mas já tinham passado da hora de correr pela cidade com a manada de Rumi. Cochicharam algo sobre o jovem de dezessete anos que fora um dos quatro plantados. Sorriram ao recordar que ele era péssimo nas aulas de nós sagrados e rogaram para que os espíritos o recebessem bem, apesar disso. Semblantes serenos, voltaram a se concentrar no milho.
Pouco antes, duas meninas que carregavam jarros d’água puderam ouvir as risadinhas dos meninos e perceber que se referiam a Qhari. Nenhuma delas sorriu ou fez piada da inabilidade dele com os nós, entretanto. Ao absorverem a novidade, sentiram um misto de entusiasmo e falta. Qhari tinha a idade delas quando foi plantado.
Rapidamente, a notícia se replicou, “Teremos comida para o inverno”, “Plantaram quatro pessoas”. O alento foi festejado como se a própria colheita fosse. Fazia tempo que ninguém servia para semente. E, agora, quatro de uma só vez?!
Ao redor de uma fogueira especialmente preparada para isso, os anciãos se reuniram aos guerreiros para ouvir a história de Tupac, que não os poupou de nenhum detalhe.
Com gestos firmes, Tupac ia fazendo a volta na labareda, dirigindo seus olhos profundos aos presentes, narrando cada passo do plantio. Apontava para o céu, batia no peito, descansava as mãos no chão, conforme desenvolvia o relatório.
Ele confirmou a identidade das quatro sementes e o lugar onde as enterrou no alto da colina. Contou como foram escolhidas por Pachamama e que não teriam sofrido por isso. Disse, também, que não teve trabalho para reconhecer que germinariam, especialmente o garoto Qhari.
“O solo onde plantei Ayar, Killa e Nuna, todos com mais de trinta anos, permanecia úmido e mostrava os primeiros sinais de germinação após dez dias do plantio. Já a terra sobre Qhari, o garoto de dezessete anos, após três dias estava tomada de uma camada verde folheosa e, após dez, dava lugar a vários pés de hortaliças e a algumas espécies frutíferas. Quando saí da montanha, deixei para trás árvores de médio porte, muitas hortaliças e um milharal capaz de dar conta da aldeia inteira e dos animais por oito ciclos da lua. Em pouco tempo, podemos voltar e colher.”
Ao fim do relato, bateu forte o braço direito com o punho cerrado no centro do peito e garantiu ter honrado os deuses: “Eles nos darão boa colheita!”
Não era sempre que alguém servia para semente. Quando acontecia, era uma honra para a pessoa e um alento para o povo. Em Aguas Calientes, a comida só crescia das sementes de pessoas plantadas.
Tupac era o guerreiro que mais entendia de pessoas que serviam para sementes. Ele tinha a sabedoria para reconhecer o potencial de germinação de um corpo, experiência que adquiriu assistindo ao seu pai plantando, por décadas.
O primeiro plantio de Tupac foi, para sua honra, o próprio pai. O pai não germinou, mas Tupac já sabia. Como o velho mesmo havia lhe antecipado, “guerreiro cansado não germina, filho”. Tupac o plantou mesmo assim.
Tupac tinha certeza que Qhari germinaria e daria bons frutos, mesmo que não fosse um garoto nobre nem brilhante. Qhari possuía pujança, verdura, potência e não morreria aos olhos da Mãe Terra. Dito e feito.
Com o clima de otimismo, a cidade tomou cor. Mais madeira e mais água foram estocados para os cozidos, prevendo o aumento de vapores nas moradas em alguns meses.
Os sacerdotes ocuparam-se dos rituais próprios da espera do solstício, os guerreiros afiaram as ferramentas, as mulheres prepararam as panelas de cerâmica, os jovens foram escalados para ajudar, tudo no aguardo da colheita.
As crianças brincavam enterrando bonequinhos de palha de milho embaixo de pedras enquanto entoavam velhas canções rimadas, riam e limpavam as narinas com as mangas.
Chegada a hora de subir a colina para a colheita prometida, o vento arremessava violento a mistura de neve e folhas contra os corpos humanos enquanto assobiava duas ou três notas musicais intermitentes.
A comitiva estava ao pé da montanha ajeitando toucas e casacos, quando se ouviu uma voz feminina, cada vez mais clara em volume, mas não em conteúdo, vindo da cidadela na direção do grupo.
Ao longe, perceberam alguém que carregava o que parecia uma grande trouxa de roupa no colo. Esbaforida, já cambaleando devido ao peso, gritava repetidamente “Esperem! Esperem!”.
Tupac retrocedeu um pouco e foi até a mulher, Tika, mãe da semente Qhari, que lhe estendeu a trouxa: “Aqui, Tupac, leve! Leve Rumi. Ele caiu e bateu a cabeça, ainda deve dar tempo de plantar meu menino. Se Pachamama fez meu Qhari frutificar, vai aceitar meu pequeno Rumi”.