Antes, uma palavrinha do nosso editor, Rodrigo van Kampen.
Começou em julho do ano passado, quando todo mundo passou a divulgar que a revista americana de ficção científica Strange Horizons faria uma edição especial somente com autores e autoras brasileiros.
Foi uma festa. Uma galera que nunca havia se arriscado a escrever em inglês (incluindo eu) mandou textos para submissão, um grupo de apoio foi criado no Telegram, e, mais importante, foi um ótimo estímulo para galera de cá mandar ótima ficção brasileira para gringo ler.
E como editor, pensei com meus botões: o pessoal anglófono vai ter a oportunidade de ler uns contos bem bacanas sobre a realidade brasileira. Mas quais serão escolhidos? O que editores lá de fora consideram “brasilidade”, além, claro, de um excelente texto? Então, tomei a decisão de lançar em português os textos que foram vendidos lá fora.
Com a bênção dos editores da Strange Horizons e de todas as autoras e autores envolvidos, estamos lançando pela Trasgo a versão brasileira dos textos escolhidos. Alguns traduzidos por tradutoras (quando especificados), outros pela própria autora (quando não).
Para abrir, e tomando o lugar deste editorial, deixo vocês com o ótimo panorama da F&FC (Fantasia e Ficção Científica) nacional, escrito por Jana Bianchi.
Situação atual da F&FC no Brasil
Há também outros (fantasmas), máxime nas praias, que vivem a maior parte do tempo junto do mar e dos rios, e são chamados baetatá, que quer dizer cousa de fogo (…). Não se vê outra cousa senão um facho cintilante correndo para ali; acomete rapidamente os índios e mata-os, como os curupiras; o que seja isto, ainda não se sabe com certeza”.
José de Anchieta em 1560, em uma de suas cartas do Brasil para Portugal
Enquanto escrevo estas palavras, a floresta amazônica queima. Protegidos por novas leis antiambientais aprovadas pelo presidente brasileiro, grandes fazendeiros simplesmente atearam fogo à floresta.
É impossível não pensar no nome do nosso país. Dizem que vem de uma árvore nativa com uma madeira de um vermelho tão brilhante que os colonizadores portugueses acharam que parecia feita de brasa. Então apagaram o nome tupi (ibirapitanga), decidiram chamar a madeira de pau-brasil e, depois, nomearam este lugar em homenagem ao recurso que exploraram impiedosamente. Quem imaginaria que descendentes brancos dos europeus estariam literalmente transformando a floresta em brasas cinco séculos depois, ignorando os povos nativos que ainda vivem aqui?
Esta introdução pode parecer meio amarga, mas diz muito sobre o nosso contexto sociopolítico — e, consequentemente, sobre a situação atual da fantasia e da ficção científica no Brasil (que, desse ponto em diante, vamos chamar de F&FC). E, para falar sobre isso, preciso falar sobre colonização, ciclos e política. Vamos começar com o passado.
Antes
É difícil bater o martelo sobre onde começaram a F&FC no Brasil. Segundo o livro Fantástico brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo, escrito por Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares, a literatura brasileira do século XIX teve apenas manifestações esporádicas de trabalhos com elementos fantásticos — geralmente sutis.
No entanto, hoje é amplamente aceito que nosso primeiro romance de F&FC foi A rainha do ignoto — escrito em 1899 por Emília Freitas, uma mulher nordestina, feminista e abolicionista. O livro conta a história de uma sociedade secreta de mulheres justiceiras, que chamam a si mesmas de Paladinas do Nevoeiro e vivem em uma ilha na costa do estado do Ceará, que é mantida propositalmente oculta por uma misteriosa névoa. Infelizmente, tanto o livro quanto a própria Emília caíram no esquecimento até os anos 1980, escondidos como a própria ilha — embora, nesse caso, o sumiço não tenha sido voluntário, e sim um apagamento deliberado.
Além de outras obras ocasionais com elementos de fantasia e ficção científica (na maioria dos casos, ficções curtas escritas por autores e autoras conhecidos por suas carreiras na literatura mimética), uma produção estruturada de ficção científica começou nos anos 1930, com Jerônymo Monteiro — que, durante os anos 1960, foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Ficção Científica. Ele fez parte do que hoje é conhecida retrospectivamente como Primeira Onda da Ficção Científica Brasileira, junto com autores e autoras como André Carneiro, Gumercindo Rocha Dórea e Dinah Silveira de Queiroz.
Em 1970, Jerônymo criou a Magazine de Ficção Científica, a versão brasileira da The Magazine of Fantasy & Science Fiction. Em português, temos uma palavra equivalente à “magazine”, a palavra “revista”, mas o termo anglicizado foi o escolhido para dar nome ao primeiro projeto a publicar ficção científica brasileira (junto com contos traduzidos). E destaco esse ponto porque, embora o trabalho desses escritores e escritoras tenha sido marcado por ambientações brasileiras e temas que podiam ser apontados como “nossos”, a Primeira Onda ainda aconteceu em um contexto fortemente colonizado, com referências e analogias a obras anglófonas. Grandes árvores têm raízes profundas.
Então, vieram os anos 1980 e 1990, e a Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira quebrou na praia. Ela trouxe fanzines, uma fanbase considerável, eventos de ficção científica e produção e publicação regulares por pessoas ainda em atividade, como Fábio Fernandes, Roberto de Sousa Causo, Finisia Fideli, Octavio Aragão, Bráulio Tavares e Ivan Carlos Regina. A Segunda Onda também trouxe o primeiro manifesto do gênero — o Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, proposto por Ivan Carlos Regina em 1988.
Exatamente sessenta anos antes, em 1928, o poeta Oswald de Andrade havia escrito o Manifesto Antropofágico original, que dizia que artistas brasileiros deveriam “deglutir” o legado cultural europeu e “digeri-lo” para produzir uma arte brasileira legítima e “não-catequizada”. Oswald datou o manifesto como do “ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”, uma alusão à história sobre o primeiro bispo a vir para o Brasil, que supostamente foi morto e devorado por “nativos antropófagos” em 1556.
Em seu manifesto, Ivan evoca o manifesto de Oswald e diz: “Um boitatá de olhos de césio espreita no planalto central do país. (…) Precisamos deglutir urgentemente, após o Bispo Sardinha, a pistola de raios laser, o cientista maluco, o alienígena bonzinho, o herói invencível, a dobra espacial, o alienígena mauzinho, a mocinha com pernas perfeitas e cérebro de noz, o disco voador, que estão tão distantes da realidade brasileira quanto a mais longínqua das estrelas. (…) Um caipora verde amarelo devora hambúrgueres, destrói satélites, deglute armas e destroça tecnologias. Um índio descerá de uma estrela colorida brilhante”.
Dessa vez, o manifesto é datado como do “1º ano após o desastre de Goiânia” — uma referência ao segundo maior desastre radioativo do mundo, atrás apenas de Chernobyl, que aconteceu bem no Centro-Oeste brasileiro quando uma fonte de radioterapia cheia de Césio-137 foi irresponsavelmente abandonada e posteriormente encontrada e desmontada por pessoas leigas. O acidente causou quatro mortes diretas e contaminou mais de 1.600 pessoas.
É muito significativo que esse novo ponto de referência para a ficção científica brasileira tenha sido definido ao redor de um incidente que diz tanto sobre o Brasil e sobre nosso caso de amor e ódio com a ciência.
Enfim, a Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira chegou, trazida pelos ventos da internet e das mídias sociais. É a onda que surfamos atualmente.
O trabalho englobado por ela é repleto das ideias antropofágicas propostas por Ivan Carlos Regina e inclui nomes como Cristina Lasaitis, Ana Cristina Rodrigues, Lady Sybylla, Cirilo Lemos, Vic Viera (conhecido anteriormente como Alliah), Santiago Santos, Andréa del Fuego e Luiz Bras — pseudônimo de Nelson de Oliveira, que em 2018 editou Fractais tropicais. A antologia premiada tem trinta contos escritos por autores e autoras das três ondas da ficção científica brasileira, além de uma introdução robusta sobre o panorama atual do gênero no país.
Paralelamente a isso, a fantasia brasileira seguiu trajetória similar, embora mais explosiva. O primeiro escritor de F&FC brasileiro a chegar à lista dos mais vendidos, André Vianco, publicou Os sete em 1999, e logo ficou conhecido por seus livros sobre vampiros — todos ambientados em cidades brasileiras e cheios de humor, cinismo e síndrome do vira-lata que nos são tão particulares. Oito anos depois, Eduardo Spohr publicou A batalha do apocalipse, que inclui um Rio de Janeiro habitado por anjos e demônios — elementos fantásticos importantes em um país onde quase 90% da população se identifica como cristã.
Em 2002, o site Jovem Nerd foi criado. Em 2007, o portal nerd foi responsável por vender a versão independente do livro de Spohr, e em 2011 eles lançaram seu primeiro podcast de RPG, a série NerdCast Especiais RPG, que certamente ajudou a aumentar o conhecimento e a popularidade da F&FC para um público mais amplo. Atualmente, cada série de podcasts de RPG tem cerca de três milhões de downloads, e alguns romances originais com personagens dos podcasts foram publicados.
Até o momento, Vianco e Spohr venderam, juntos, mais de 1,7 milhões de livros — números impressionantes no mercado editorial brasileiro. A tiragem inicial de um livro de F&FC (nacional ou traduzido) é de cerca de três mil livros, e mesmo grandes editoras estão passando por poucas e boas para vender até livros do gênero de autores consagrados ou vencedores de prêmios. Devo voltar a esse tópico adiante, mas quase duas décadas depois, o maior acesso à ficção traduzida de qualidade, combinado com anos de instabilidade política, transformaram a nova geração de escritores brasileiros de F&FC em verdadeiros antropófagos culturais.
Finalmente, a F&FC brasileira parece ter alcançado um grupo de temas e características legítimos e identificáveis. Vamos falar sobre eles.
Agora: principais temas, características e escritores
A primeira coisa digna de nota é que finalmente estamos produzindo uma ficção mais diversa — não só com personagens e temas mais diversos, mas também escrito por autores de diferentes contextos. Por “mais diverso”, infelizmente não quero dizer “tão diverso como deveria ser”. Mesmo em um país com uma grande variedade étnica e social, ainda temos um mercado majoritariamente masculino, branco e cisgênero. Porém, seguindo a tendência global, nossa F&FC (junto com os jovens adultos) vem sendo pioneira na disponibilização de histórias repletas de diversidade para grandes públicos.
Um exemplo é Lavínia Rocha, que começou a publicar sua trilogia de distopia em 2015, com Entre 3 mundos. A história é um exemplo de fantasia fortemente inspirada em questões sociais, com uma garota negra como protagonista e ambientada em um Brasil socialmente segregado.
Outro exemplo é o primeiro livro publicado por Jarid Arraes — um dos novos talentos da literatura brasileira. Embora sua carreira tenha mais tarde se consolidado majoritariamente em um terreno mimético, ela publicou As lendas de Dandara em 2016. O livro reconta, com toques de fantasia e realismo mágico, a história de Dandara de Palmares — uma personagem histórica do Brasil Colonial, guerreira negra conhecida por lutar contra a escravidão junto com Zumbi.
Cirilo Lemos é outro expoente da Terceira Onda da Ficção Científica Brasileira, nascido e criado no subúrbio de Nova Iguaçu (Rio de Janeiro). Seu elogiado trabalho é fortemente baseado em política e críticas sociais. Como exemplo, seu conto “Entre as gotas de chuva, encruzilhada” (publicado na antologia Aqui quem fala é da Terra) é uma história de realismo mágico emotiva e crua, que aborda a violência da vida das pessoas de rua e o direito delas a sonhar. Em 2019, o conto foi indicado a dois dos mais importantes prêmios de F&FC do Brasil.
O afrofuturismo brasileiro também ganha força. Fábio Kabral começou a publicar sua série de livros afrofuturistas em 2017, com O caçador cibernético da rua 13, seguido por A cientista guerreira do facão furioso em 2019. Eles são ambientados no complexo futurístico de Ketu Três — nas próprias palavras de Fábio, “lar do povo melaninado, filhos dos Orixás; a metrópole governada por sacerdotisas-empresárias e tecnologias fantásticas movidas a fantasmas”. Paralelamente a isso, Lu Ain-Zaila publicou seu Sankofia: breves histórias afrofuturistas em 2018, uma coletânea de doze histórias de diferentes subgêneros e inspirações, unidos pela atmosfera e estética afrofuturistas.
Podemos esperar mais dois livros afrofuturistas importantes para 2020 e 2021: o romance de Ale Santos, um ativista antirracismo conhecido como @savagefiction no Twitter, onde regularmente posta fios sobre cultura e história negra, e a noveleta de Waldson Souza, pesquisador de afrofuturismo na Universidade de Brasília. O livro de Ale será ambientado em um universo fortemente influenciado pela cultura do hip hop, que já foi explorado no conto “Cangoma”. A noveleta de Waldson, Oceanïc, se passa em uma metrópole tecnológica construída nas costas de uma criatura oceânica e apresenta personagens melaninados que se envolvem com política e nanorrobótica.
Outra voz não-branca que vale a pena acompanhar é o escritor Sergio Motta. Depois de publicar a noveleta Ciberbochicho — uma história cyberpunk bastante ácida e crítica, ambientada em um Brasil futurista — na Revista Mafagafo, ele tem um livro de contos planejado para 2020, com histórias de realismo mágico sobre a influência da ancestralidade e do misticismo africanos de múltiplas origens sobre a vida das pessoas nas favelas e periferias da São Paulo contemporânea.
Jim Anotsu é, provavelmente, o nome mais proeminente quando falamos de autores brasileiros não-brancos de F&FC que escrevem personagens também não-brancos. Em 2014, ele publicou Rani e o sino da divisão, uma fantasia urbana middle-grade que é ambientada no interior de Minas e tem como protagonista Rani, uma menina negra que descobre ser xamã.
Junto com Vic Vieira, Anotsu também escreveu o Manifesto irradiativo em 2015, clamando por “diversidade na ficção especulativa nacional”.
Além de buscar histórias de uma diversidade étnica ainda maior — como, por exemplo, em relação aos povos nativos brasileiros, que vêm sendo sistematicamente negligenciados no mercado literário como um todo —, o manifesto ainda pede por obras com personagens (e escritos por pessoas) com orientações sexuais e identidades de gênero diversas. Alguns exemplos são Metanfetaedro, do próprio Vic Viera, e Exorcismos, amores e uma dose de blues, de Eric Novello.
A agência literária Página 7 também está fazendo um trabalho muito importante na publicação de histórias LGBTQIA+. Além de agenciar autores diversos dentro de grandes editores brasileiras (e estrangeiras), a agência também publica as próprias antologias e e-books independentes editados por Gui Liaga e Taissa Reis, muitos deles com histórias de F&FC escritas por autores etnicamente diversos e LGBTQIA+ — como, por exemplo, Sabor da maré, também de Eric Novello.
E é impossível falar sobre o Eric sem apontar outra característica importante do panorama atual da nossa F&FC: a situação política brasileira.
Em seu livro mais recente, Ninguém nasce herói — publicado em 2017 pela Seguinte, um selo da Companhia das Letras, uma das maiores editoras do Brasil —, um grupo de personagens de diferentes etnias, orientações sexuais e identidades de gênero se opõe ao Escolhido, um fundamentalista religioso que chegou à presidência e, auxiliado por sua milícia urbana, oprime, censura e persegue minorias (quem dera fosse mera ficção).
Outros autores também vêm abordando nosso contexto sociopolítico em seus trabalhos desde meados dos anos 2010, quando as Jornadas de Junho (ou as Manifestações dos 20 Centavos), colocaram esse tema em alta.
Bárbara Morais, por exemplo, publicou sua trilogia Anômalos entre 2013 e 2015. O livro é protagonizado por um grupo de pessoas com poderes especiais que, segregadas e ostracizadas pelas pessoas sem poderes, lutam contra um governo abertamente autoritário. Publicado em 2018, Mensageira da sorte, de Fernanda Nia, estrela uma jovem que é escalada para trabalhar em um departamento público sobrenatural no Rio de Janeiro e depois descobre a existência de um esquema para desviar níveis de sorte de forma a beneficiar políticos poderosos.
Em algumas obras, as similaridades com a realidade são impressionantes. Em <deletado/>, por exemplo, uma noveleta também publicada pela revista Mafagafo em 2018, Rodrigo Assis Mesquita propõe um Brasil que está às beiras do colapso ambiental em um futuro próximo, onde o Estado está usando de tecnologia para reescrever a verdade e manipular os cidadãos. Assustador, especialmente considerando que o atual presidente brasileiro foi eleito com o uso descarado de fake news, bots nas redes sociais e campanhas ilegais de spam usando aplicativos de trocas de mensagens — só uma prova de como bons autores de F&FC são capazes de digerir a realidade e projetar alternativas de futuro tão precisas que a ficção se torna quase presciente.
Outro livro influenciado pela atual instabilidade da política brasileira é Ordem vermelha: filhos da degradação, de Felipe Castilho. O livro de alta fantasia, já definido pelo próprio Felipe como “Cidade de Deus na Terra Média”, marcou a história por ter sido financiado pela Comic Con Experience de São Paulo, considerado atualmente o maior festival de cultura pop do mundo. Mesmo no cenário economicamente adverso em que estamos, o livro alcançou todas as listas de mais vendidos do país.
As obras anteriores de Castilho também abordam outros tópicos importantes da F&FC brasileiras: o resgate do nosso folclore, atualmente estigmatizado como infantil, principalmente por conta da série infantil de livros Sítio do Pica-Pau Amarelo, publicados entre 1920 e 1940.
Entre 2012 e 2015, Castilho publicou três títulos da sua tetralogia Legado folclórico, na qual os mitos brasileiros não só são reais, mas sistematicamente lutam contra a destruição ambiental e contra grandes corporações. A boa recepção de Legado folclórico abriu oportunidades para autores independentes, como Lauro Kociuba com o e-book Raízes de vento e sangue — uma antologia de sete contos sobre mitos brasileiros, escritos em prosas bastante experimentais — e Ian Fraser, tanto com a série Araruama quanto com o livro independente Noir Carnavalesco. A série é baseada em várias mitologias das Américas do Sul e Central, enquanto o outro livro propõe uma ambientação contemporânea em que os mitos brasileiros coexistem com humanos.
Todos os livros de Ian foram publicados inicialmente por financiamento coletivo, entre 2017 e 2019, e coletivamente arrecadaram quase R$140 mil — tal sucesso provou que há um mercado potencial para F&FC baseada em folclore.
Ian é nordestino, nascido e criado na Bahia. Isso é algo digno de nota porque as editoras adquirem e publicam, majoritariamente, autores de F&FC (e de literatura mimética também) nascidos no Sudeste.
No entanto, essa é uma tendência que está começando a mudar: atualmente, histórias de F&FC tanto escritas por autores de fora do eixo Rio-São Paulo como ambientadas em outras cidades vêm sendo publicadas por grandes editoras e publicações, atingindo públicos mais amplos.
Um exemplo é Roberta Spindler, do Pará, que teve seu livro Heróis de Novigrath publicado em 2018 pela Suma, outro selo da Companhia das Letras. Aline Valek, escritora, ilustradora e ativista nascida em Minas Gerais e criada em Brasília, também publicou seu livro de ficção científica As águas-vivas não sabem de si no selo Fantástica Rocco, selo fantástico de uma grande editora.
São os casos de Thiago Lee e Paola Siviero. Nascido no Sergipe, Lee escreveu O homem vazio, publicado em 2018 através de um edital municipal paulistano de fomento à literatura. É uma fantasia urbana ambientada em São Paulo, que trata da solidão em grandes cidades — um tema fortemente relacionado à migração dentro de um país continental como o Brasil. E Paola, embora seja nascida e criada em São Paulo, publicou um fixup ambientado em diferentes cidadezinhas do Nordeste, O auto da Maga Josefa. O livro, publicado em 2018, foi indicado a todos os três maiores prêmios brasileiros de F&FC e ganhou dois deles.
E, para terminar em alto estilo, há o fato de que a autora de F&FC brasileira mais premiada, Socorro Acioli, não é carioca ou paulista. É nascida e criada no Ceará, e teve seu premiado livro A cabeça do santo publicado no Brasil e no Reino Unido em 2014 e nos Estados Unidos em 2016. O livro, que se passa no sertão nordestino, foi finalista do LA Times Book Prize de 2017 e, em 2016, foi eleito pela Biblioteca Pública de Nova York um dos melhores livros para jovens.
Apesar desse panorama empolgante em termos de produção literária, o mercado de F&FC brasileiro não anda tão próspero como seria de se esperar.
Agora: o mercado
Desde 2015, o mercado literário brasileiro está mal das pernas. De acordo com uma pesquisa da Fipe, Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, o encolhimento desse mercado foi de 21% entre 2015 e 2018.
E, apesar do baixo número de livros lidos por ano (cerca de 2,43 livros por leitor ativo, segundo pesquisa de 2016 do Instituto Pró-Livro), a razão disso não é a falta de leitores — já que 44% dos 209 milhões de brasileiros se declaram leitores.
Estamos em crise principalmente porque as grandes livrarias estão quebrando devido a anos de (irresponsável) venda em consignação; livrarias pequenas estão quebrando devido a sistemas predatórios como os da Amazon; e editoras estão quebrando devido à quebra das livrarias.
Considerando que a F&FC nacional é apenas um nicho dentro de outro nicho (maior, mas ainda um nicho) que é a literatura de fantasia e ficção científica — e dadas as informações sobre as dificuldades que até mesmo as grandes editoras estão encarando com grande nomes desses gêneros —, essa é uma situação desencorajadora.
Como escritora, tradutora e editora em uma revista de F&FC, eu poderia facilmente usar o resto desse artigo para choramingar sobre números e sobre o apocalipse que se aproxima. Mas, como uma escritora de ficção científica e fantasia, é meu trabalho projetar um futuro utópico, né?
Brincadeiras e contradições à parte, eu realmente acredito que a situação da F&FC brasileiras nunca foi tão favorável. Além de um grupo de temas e características mais maduros, escritores brasileiros do gênero estão cada vez mais preocupados e interessados em estudar escrita. Cursos de escrita estruturados e mentorias, oferecidos tanto por universidade quanto por autores e editores bem estabelecidos, por exemplo, estão cada vez mais populares entre autores brasileiros de F&FC.
Grandes editoras brasileiras continuam investindo mais e mais em autores brasileiros, apesar das dificuldades. Essa alternativa tem suas vantagens, afinal de contas: livros brasileiros não precisam de tradução, e os direitos autorais não são pagos em moedas estrangeiras (um ponto importante, considerando a atual desvalorização do real). Além disso, novas formas de publicação estão surgindo como forma de se superar a crise do mercado enquanto se absorve a demanda do público por mais F&FC brasileiras.
Um exemplo é como as editoras independentes de F&FC estão optando por imprimir pequenas tiragens e fazer venda direta, como por exemplo a Lendari, que acabou de publicar o primeiro romance da autora da Terceira Onda Ana Cristina Rodrigues, Atlas Ageográfico de Lugares Imaginados; o selo de ficção científica Futuro Infinito da Patuá, que recentemente publicou livros como Fanfic (do autor da Segunda Onda Bráulio Tavares), Back in the USSR (do autor da Segunda Onda Fábio Fernandes) e Matando gigantes (de Claudia Dugim); a Avec, que publicou histórias em quadrinhos e livros como o steampunk Guanabara Real: A alcova da morte, escrito a seis mãos por A. Z. Cordenonsi, Enéias Tavares e Nikelen Witter; e a Monomito, que acabou de propor a coleção Universo Insólito e publicou seu primeiro livro, A telepatia são os outros, de Ana Rüsche.
Também há as editoras independentes de F&FC focadas exclusivamente em publicação digital — na qual o investimento é menor, assim como o preço de venda —, sem deixar de lado a curadoria cuidadosa, a edição responsável e o pagamento do autor e demais profissionais envolvidos. A Dame Blanche, por exemplo, publicou novelas como a ficção científica Deixe as estrelas falarem, de Lady Sybylla e a já citada O auto da Maga Josefa, entre outras novelas e noveletas, entre 2016 e 2019. A editora Plutão também está publicando novelas e coletâneas de contos digitais de autores brasileiros contemporâneos, especificamente de ficção científica — como a antologia Aqui quem fala é da Terra e a novela independente Diário simulado, de Delson Neto.
E não são apenas autores independentes que vêm se aventurando no financiamento coletivo: editoras estabelecidas de F&FC, como por exemplo a Draco, vêm usando esse modelo de financiamento para viabilizar coletâneas, antologias e histórias em quadrinhos.
Outro caso de grande sucesso foi o lançamento do Tormenta 20, a edição comemorativa do vigésimo aniversário do sistema brasileiro de RPG Tormenta — um universo de fantasia onde livros de fantasia também já foram ambientados, como por exemplo O inimigo do mundo, de Leonel Caldela, e vários títulos escritos por Karen Soarele. Através da Jambô (uma editora de RPG, quadrinhos e livros de F&FC), o projeto, gerenciado por Guilherme Dei Svaldi e Karen Soarele, foi apoiado por 6.353 pessoas e arrecadou cerca de R$1,9 milhões — o maior financiamento coletivo da história no país até o momento.
As revistas brasileiras de F&FC também estão se estabelecendo. A Trasgo, editada por Rodrigo van Kampen, Lucas Ferraz e Soraya Coelho, tem números notáveis para uma publicação independente: entre 2014 e setembro de 2019, ela publicou 113 contos de 103 autores. Atualmente é financiada por uma plataforma de financiamento coletivo recorrente com mais de 120 apoiadores e está se aventurando em um formato exclusivo de zinecontos, no qual zines contendo um único conto podem ser comprados pelo site ou baixados gratuitamente.
A Mafagafo, outra revista do gênero, foi criada em 2018 e teve duas edições com histórias em formato seriado antes de passar por uma reformulação. Da terceira edição em diante, adotará um novo formato, que consistirá em uma seleção de histórias feitas por doze editores de grandes editoras e diferentes trajetórias de carreira. A Mafagafo também tem um projeto de financiamento coletivo recorrente com mais de 160 apoiadores e lançou dois projetos paralelos: a Faísca, uma newsletter semanal com ficções relâmpagos de até 1.000 palavras selecionadas, e o Pio, uma conta de Twitter recém-criada que se dedicará à publicação de microficção.
Outras revistas como a Avessa e A Taverna também selecionam e publicam contos regularmente. A revista Balbúrdia acabou de ser anunciada, e promete editais de seleção exclusivas para histórias de autores/com personagens que sejam LGBTQIA+, não brancos ou de fora do Sul e do Sudeste do Brasil. E, embora majoritariamente dedicada a um conteúdo sobre RPG, a revista Dragão Brasil — uma publicação extremamente popular de RPG, criada em 1994, gerenciada por J. M. Trevisan e atualmente apoiada mensalmente por mais de 1.900 leitores — também publica, em toda edição, contos ou noveletas de F&FC selecionadas.
Os autores e autoras brasileiros de F&FC também estão procurando formas não-convencionais de publicação. O exemplo mais notável é o Tempos Fantásticos, criado por Angelo Dias em 2016. O projeto se define como um “jornal atemporal” que traz notícias, colunas e tirinhas de “passados, presentes e futuros alternativos”, além de uma história externa que conta sobre o histórico e o dia-a-dia do jornal e mostra as ameaças que o jornal recebe de uma seita que é contra a viagem no tempo. Depois de dois anos de edições mensais, o Tempos Fantásticos teve um terceiro ano de edições maiores, coloridas e trimestrais. Agora, no final de 2019, o projeto planeja uma pausa para reformulação, depois da qual um livro com os textos e material extra devem ser publicados.
Outro bom sinal de que a F&FC brasileiras está bem é a presença do gênero na agenda de eventos literários. Em 2019, tivemos três espaços importantes de discussão de fantasia e ficção científica com grande público: a segunda edição da Casa Fantástica, a terceira Flipop e a Odisseia de Literatura Fantástica. A Casa Fantástica apresenta uma série de mesas redondas focadas na literatura de fantasia e ficção científica. Foi criada por Priscilla Lhacer para integrar o circuito paralelo da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty — o maior festival de literatura do Brasil.
Flipop significa Festival de Literatura Pop, e é um evento de três dias organizado pela editora da Seguinte, Diana Passy, para falar sobre literatura popular, incluindo F&FC, com foco em diversidade e mesas com autores brasileiros e estrangeiros. E a Odisseia, criado por Duda Falcão, Cesar Alcázar e Christopher Kastensmidt é um evento que acontece em Porto Alegre (RS), no qual escritores e leitores são convidados a falar sobre literatura e confraternizar depois da programação regular.
A F&FC brasileiras também estão sendo publicadas lá fora. Fábio Fernandes — um dos quatro brasileiros a se formarem em um dos workshops do sistema Clarion West/Clarion San Diego — não só publicou seus contos em várias revistas e antologias anglófonas como também escreveu artigos e resenhas para vários sites e publicações, incluindo Tor.com, The World SF Blog, Strange Horizons e SF Signal. Atualmente, é um colaborador da Tor.com com um projeto de releitura de Gene Wolfe. Christopher Kastensmidt, há pouco mencionado, tem uma longa lista de publicações no mercado anglófono, assim como no nacional. Embora seja de Houston, nos Estados Unidos, ele vive no Brasil e escreveu romances, contos e um sistema de RPG de mesa baseado na história e no folclore brasileiros, a série A bandeira do elefante e da Arara. Uma dessas noveletas, The Fortuitous Meeting of Gerard van Oost and Oludara, foi finalista do prêmio Nebula de melhor noveleta em 2010.
Outros escritores e escritoras também publicaram no mercado anglófono, como Isa Prospero (com o conto de ficção científica “The Artist of Enclosure 601-A” na antologia All Borders are Temporary e a novela de fantasia The Book of the Living na edição 7 da The Fantasist); Santiago Santos com o conto “A Carpet Sewn With Skeletons” na antologia South American Monsters; Dante Luiz, com vários quadrinhos e a noveleta “Ingredient No. 5” na antologia Undercities; H. Pueyo, com contos e noveletas em várias publicações, como “What the South Wind Whispers” na Clarkesworld and “Saligia”, publicada em março de 2019 na Samovar; e Laura Pohl, que publicou seu primeiro livro de ficção científica, The Last 8 (vencedor do International Latino Book Awards de 2019) diretamente em inglês.
E mesmo com tantas coisas acontecendo no presente, parece que a F&FC brasileiras estão olhando tanto para o passado quanto para o futuro.
Em relação ao passado, algumas editoras estão reimprimindo livros de F&FC de autores brasileiros clássicos: a editora Wish está financiando uma nova edição de A rainha do ignoto de Emília Freitas, publicado pela última vez em 2003 e atualmente fora de catálogo; a Antofágica publicou uma edição de luxo de Memórias póstumas de Brás Cubas, do mundialmente aclamado Machado de Assis, com ilustrações originais de Candido Portinari (algumas pessoas alegam que Memórias não é uma fantasia, mas pessoalmente acho que o fato de ser narrado por um homem morto e apodrecido o qualifica como tal); e Plutão não só publicou Sobre a imortalidade de Rui de Leão, um e-book com duas versões de uma história de ficção científica de Machado, como também está planejando publicar várias obras da Primeira e Segunda Onda da Ficção Científica entre 2020 e 2021.
A academia brasileira também está abordando a produção de F&FC de uma maneira mais estruturada. Os já mencionados Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares publicaram Fantástico brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fantasismo depois de uma extensa revisão do histórico da F&FC brasileiras, e desse trabalho surgiu a proposta de um novo movimento literário, o fantasismo. Eles determinam o começo desse movimento mais ou menos em 2000, com a publicação dos primeiros livros de André Vianco e a indicação de Síndrome de quimera, de Max Mallmann, ao Jabuti, prêmio literário brasileiro de maior prestígio. De acordo com Bruno e Enéias, o movimento se justifica pela existência de uma produção estruturada de histórias brasileiras com diferentes níveis de “elementos insólitos” — e, por “produção estruturada”, referem-se a mais autores se aventurando na F&FC, à criação e florescimento de editoras e selos especializados, maior volume de pesquisa acadêmica sobre os gêneros e mais canais de divulgação. Eles estão até mesmo propondo um manifesto e, talvez, um evento em 2022 — ano do centésimo aniversário da Semana de Arte Moderna, que marcou o começo do modernismo brasileiro.
Em relação ao futuro, o crescimento do mercado audiovisual brasileiro de obras de F&FC significa que os gêneros estão alcançando públicos maiores, muitas vezes de gente não iniciada no gênero. Um exemplo é 3%, a primeira série original da Netflix produzida no Brasil. Ela foi veiculada mundialmente, e não raro foi o primeiro contato de muitos brasileiros com a F&FC produzida no país. Há também Bacurau, um dos filmes mais discutidos de 2019, que se passa em um futuro próximo e tem elementos de F&FC. E, além disso, a maior rede de televisão brasileira, a Globo, acabou de anunciar uma série de fantasia original, Desalma (escrita por Ana Paula Maia) para 2020.
A junção disso tudo forma um panorama muito empolgante, considerando que faz apenas 130 anos desde que Emília Freitas deu os primeiros passos na F&FC brasileira com a primeira novela dos gêneros.
Conclusão
Enquanto escrevo estas palavras, dias depois de começar a escrever este artigo, a floresta amazônica continua queimando. E agora, meu medo é que os livros sejam os próximos — por mais incrível que possa parecer, também enquanto escrevo estas palavras, o pastor que acabou virando prefeito do Rio de Janeiro está tentando banir um quadrinho da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro porque nela há uma ilustração de um beijo gay. Sim, é isso mesmo. Estamos em 2019, e não em 1933. No Brasil, um país supostamente laico, e não em uma teocracia.
E, enquanto escrevo estas palavras, o livro novo do Felipe Castilho, Serpentário, está ao meu lado. Acabei de terminar de ler. Coincidentemente ou não (spoiler: não é), um dos personagens do livro é um pastor charlatão que tentar “curar” adolescentes LGBTQIA+.
Serpentário é um livro de fantasia e horror cósmico com uma rede intrincada de símbolos. E um deles, obviamente, é a cobra. Meus pais assistem ao jornal. Olho para a TV e vejo um fluxo de pessoas avançando pelo corredor da Bienal do Rio. Elas estão gritando trechos da Constituição Brasileira: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Abro o Twitter e vejo que agora a multidão está com bandeirinhas LGBTQIA+ e livros, gritando “não vai ter censura”. Para tornar tudo ainda mais dramático, hoje é dia 7 de Setembro, independência do Brasil.
É impossível não pensar sobre o boitatá, mito brasileiro sobre uma enorme cobra feita de fogo. Foi registrado ainda nos anos 1500 por José de Anchieta em uma de suas primeiras cartas para Portugal, onde diz que “acomete rapidamente os índios e mata-os” — o que ele não diz é que o boitatá só faz isso com aqueles que destroem a floresta. Ele é o guardião da floresta. Fica mais forte e se ergue quando alguém ameaça seu lar.
Podia concluir esse artigo de muitas formas, mas acho que não há analogia melhor. Dadas as novas características da nossa literatura de F&FC e o contexto político e econômico do país, estamos sob ameaça.
Mas, ao mesmo tempo, estamos na nossa melhor forma. E, assim como o boitatá, estamos prontos para nos erguer e encarar todos aqueles que continuarem tentando botar fogo nas coisas pelas quais lutamos.
Artigo relevante. Acho uma perda para a F&FC depender de rompimentos culturais para sobreviver e não simplesmente de uma boa escrita e aventuras originais, surpreendentes. Apesar de muita gente torcer o nariz para isso, o que vale mesmo é se a obra cria afinidade e envolvimento. Como estamos em relação a isso?
Me preocupo se, na tentativa de abandonar os colonizadores, podemos acabar abandonando também o mito ancestral, colhido e recolhido de um povo para outro. Precisamos inovar ou despertar? Quem sabe os dois, quem sabe mais nada.