Arte de Karl Felippe & Poliane Gicele
Prezado Loberant
Esta missiva será curta, uma vez que o que importa é o manuscrito que segue. Como percebeu, continuo na clandestinidade e nem um pouco desejoso de voltar à vida pregressa de jornalista mal pago e insatisfeito com a corrupção que pulula em nossa nação. Por favor, no que concerne ao meu paradeiro, interrompa suas investigações. O homem que um dia conheceste está morto. Agora são os caminhos e os perigos do mundo que me interessam. O motivo deste envelope é o seguinte: dada a publicação do conjunto de textos que te enviei com o absurdo título de A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison e a reação acalorada que tal coletânea tem produzido, das capitais aos confins mais distantes do país, decidi acrescentar o anexo que segue. Entre as várias críticas que a malfadada publicação tem recebido, apesar do teu impecável trabalho de edição, alguns têm destacado a inverossímil aparição da misteriosa entidade “Pamu, o Venerável”, citada no capítulo climático do volume pelo próprio Louison, ao detalhar sua versão dos fatos. Para esclarecer a esses leitores, consegui, com o consentimento do autor abaixo nomeado, um excerto de seu Noitário, no qual algumas das dúvidas referentes ao obscuro demônio maia serão esclarecidas. O texto data de 1907, ou seja, composto num momento anterior aos crimes que foram imputados a Louison. Como pude copiar o texto do volume original, um tomo envelhecido e encardido que meu amigo dá o título de “Noitário das Sombras”, acrescentei notas de rodapé para que não tenhas que recorrer ao volume supracitado a fim de relembrar cenários ou o elenco de personagens que volta e meia podem ser mencionados nesta narrativa curta. Em literatura, não na vida, temos a obrigação de encontrar um início, um meio e um fim. Penso que neste quesito, não ficará desapontado, meu caro amigo. Quanto à minha sorte e a de Vitória, e quanto à sorte dos outros personagens presentes na coletânea enviada a você anteriormente, apenas o futuro nos dirá se mais revelações serão adicionadas a esta saga ou não. Certo de sua compreensão.
Sempre seu,
Isaías Caminha
Local Incerto, Data Desconhecida.
Porto Alegre dos Amantes, agosto de 1907.
Noitário de Solfieri de Azevedo
Tudo iniciou no elegante hotel no qual morava.
Fatigado do velho casarão erigido no pântano do Guayba, busquei ares mais citadinos, não ignorando o fato de que a selva humana é bem mais selvagem que o matagal úmido e as feras que nele se escondem.
Havia deixado para trás os dias de detetive particular e libertino, entregando-me mais ao estudo e à contemplação dos homens e das mulheres, quando não de seus feitos.
O Parthenon Místico1, a sociedade secreta cuja base funcionava na ilhota mencionada, havia ensinado-me a buscar outros ideais. Ainda mais, havia me ensinado o valor da empatia e da compaixão, eu que sempre fora um demônio com mais crimes no coração do que tempo para concretizá-los, com mais perfídias na mente do que meios para realizá-las.
Para os que não me conhecem, sou na aparência um jovem de dezessete anos, moreno e delicado, um pouco antiquado, mas sempre asseado e cuidadoso com os gestos e com as palavras. Entretanto, em meu âmago, sou um ancião de oitenta anos que caminhou pela terra colecionando contos de horror e entregue ao vício do álcool e da carne. Continuo sendo uma criatura de paixão, apesar de agora apetecer-me mais a possibilidade irreal de redenção do que a certeza dos pecados concretizados.
Não sei se tal perdão um dia me será permitido, nos céus ou na terra, uma vez que minha biografia sórdida apavora até os criminalistas mais experientes.
Exemplifica esta minha busca a estória que registro agora. Nela, apresento ao leitor ou à leitora uma sorte de terribilidades que poderia avassalar corações mais sensíveis. Fique avisado/a.
No meio da madrugada fria, quando há pouco havia repousado a fronte sobre o lençol macio, recebi um telégrafo urgente. Agora vivia em tempos modernos, e mesmo sendo antiquado em espírito, apreciava as novidades destes anos, em especial seu maquinário assombroso, maravilha de fios e conexões, energizado de electricidade.
Imaginem, poder enviar mensagens de um canto da cidade a outro em questão de segundos. Tudo isso teria feito meu coração nascido na década de 1830 exultar de expectativa ou disparar de terror. Éramos todos místicos naquele meu tempo de tavernas e superstições. Hoje, somos todos positivistas, confiando à ciência nossos corpos e mentes.
A mensagem era enigmática, em especial pela identidade de sua remetente.
Caro Solfieri,
Sei que há anos abandonaste os caminhos da investigação criminal, mas apreciaria muito teu auxílio num caso terrível. Por favor, venha à Estalagem do Menino Diabo, localizado entre a Praia das Feias e o Bosque da Perdição, cujo endereço segue. Venha logo, por favor. Há quatro enforcados que aguardam justiça e penso que apenas o senhor pode ajudar.
Atenciosamente,
Inspetora Carmina Maia
O nome não me era estranho. Ao puxar pela memória extenuada, lembrei de uma Cadete Maia, que encontrei há anos, quando ainda era um investigador particular. Isso bem antes de conhecer Louison e os outros integrantes do Parthenon Místico. Sim, eu me lembrava dela e a lembrança tinha o gosto de vinho, fumo e sexo. Eu a havia seduzido e então a abandonara, como era meu costume na época, com toda e qualquer fêmea virgem que encontrava. Diante do espelho, não havia mudança alguma na forma exterior. Internamente, porém, envergonhava-me da minha figura de outrora.
Curioso pelo bilhete, deixei o leito amarrotado e tomei um cabriolé mecanizado em direção ao endereço apontado.
Era uma antiga construção, amálgama de hotel, pensão e estalagem. Certa vez, passei duas noites no lugar, que não passava de fachada para um clube noturno de ópio e prostituição. No primeiro andar, funcionava uma taverna que ofertava desde bebidas ilícitas até pratos exóticos, que incluíam não apenas as carnes servidas às mesas como também as dos serviçais.
Hoje, pouco tolerava lugares como aquele e seus apetites.
Esperava-me à porta, fumando, uma atraente senhora, possivelmente a superiora de Carmina. Ao me aproximar, corrigi minha distração.
Era a própria, claro, passadas décadas do nosso último encontro.
Continuava bela e exuberante, apesar do traçado da idade incrustado em seu rosto delicado. Não escondeu seu olhar de surpresa ao ver-me intocado pelo tempo.
“O senhor continua exatamente como me lembro”, disse.
“Sim, continuo. Como podes ver, não menti quanto à minha natureza”, devolvi, tentando apagar da mente a imagem dos nossos corpos nus postados sobre a cama encharcada de suor e gozo. “Como me encontraste?”
“Sou uma policial e o senhor tem certa fama. Desde que passou a morar no Grand Hotel, tem provocado certo furor entre os hóspedes, em especial, os invertidos. O jovem dândi e seu raríssimo anel de rubi. É assim que o descrevem, sabia? Mas no final das contas, foi sorte. Um dos cadetes descobriu um de teus velhos cartões no bolso de um dos mortos, o que o coloca como um suspeito.”
“Isso quer dizer,” disse eu, ignorando o perfume de jasmim que emanava de seu pescoço e o cheiro de folhas secas e vento outonal que pulsava entre as ondas dos seus cabelos crespos e escuros, “que fui chamado aqui porque sou um suspeito?”
Ela sorriu, estudando-me dos pés à cabeça, enquanto eu fiz o mesmo. Era uma mulher de uns cinquenta anos, magra e alta, com seios belíssimos, não maculados pelo horror da maternidade. Tinha coxas fortes, de quem corria diariamente, por esporte e por profissão. Vestia um terno feminino escuro, ajustado ao corpo. A calça, ao invés do vestido, devia causar sensações entre os grosseirões da cidade, desejo nos homens educados e ciúmes nas matronas de família. Na cintura, uma pistola electrostática, daquelas que podem lançar tanto balas perfurantes quanto descargas eléctricas. No pulso esquerdo, um relógio comunicador que a colocava em contato com a polícia. Como eu amava as ondas castanhas claras que emolduravam seu rosto. Em meio a elas, belíssimos fios embranquecidos maculavam o que um dia fora sua juventude, registrando o transcurso dos anos sobre o território do seu corpo.
“Se és um suspeito?”, arguiu ironicamente. “Claro que não. Não serias estúpido de deixar uma evidência na cena de um crime, serias? Espero mais de ti, sobretudo em razão da tua ficha corrida. Agora que estás aposentado, não espero que comece a ficar descuidado.”
“Ficha corrida? Eu tenho uma ficha corrida?”
Aquela mulher era como um bom Tempranillo que ganha em sabor e textura com o passar dos outonos. Perguntei-me em que sorte de barris amadeirados havia ela aguardado a passagem do tempo.
“Não tens exatamente uma ficha corrida, pois teus crimes nunca foram devidamente provados. Mas há um arquivo com tua alcunha no Quartel Central. Talvez um dia, possa permitir que dês uma olhada. Lá, encontram-se as vidas das mulheres e dos jovens de boa família que desgraçaste.”
Meu desejo pulsava ainda mais forte ao notar como ela brincava comigo, tendo ciência da minha idade e da monstruosidade do meu rosto adolescente.
“Não somos ingênuos, somos, Carmina? Ninguém é desgraçado por ninguém. As pessoas apenas respondem aos desejos que carregam dentro de si. Fui apenas um facilitador, nada mais. E hoje, sou um homem diferente.”
“Solfieri,” disse-me sorrindo, “cada um acredita nas mentiras que precisa. Mas venha, preciso que vejas a cena do crime.”
Ela levou-me ao segundo pavimento da estalagem, em direção aos quartos particulares. Era um cômodo mediano, que ficava no fim de um longo corredor sombrio.
Na porta da alcova, um policial esperava. Ao abri-la e permitir nosso acesso, estaquei. Diante de mim, no meio do recinto que possuía sofás confortáveis, pinturas baratas e mesas dispostas com pratos de comida e garrafas semi-esvaziadas, vi quatro enforcados, pendendo do teto baixo, com as cordas amarradas nas tesouras de madeira. O recinto era sufocante.
Pelas roupas, eram homens de posses. Jovens estudantes procurando diversão noturna. Um dia eu fora um deles. Os corpos, porém, apresentavam no seu arranjo uma estranha singularidade: seus pés esquerdos estavam presos aos joelhos direitos, formando um quatro invertido e bizarro.
“O suicídio coletivo aconteceu entre as duas e as três da manhã, logo depois do grupo de estudantes de direito alugar este quarto,” disse-me Maia, testando-me.
“Não se trata de suicídio. Estes homens foram mortos pelo vinho envenenado que jaz sobre a mesa, cujo cheiro de arsênio é forte e avinagrado. Depois disso, foram dispostos nessas posições… para uma finalidade que ainda desconheço. O que mais eles carregavam nos bolsos, além do meu cartão de visitas?”, disse, sem deixar de fitar os mortos.
“Suspeitas então de que este foi um crime por dinheiro?”
“Não,” respondi, “e pediria que parasses de brincar comigo. Não me trouxeste aqui para perdermos tempo. Os anéis de ouro ainda estão nos dedos. São iguais, o que denota que pertenciam a alguma seita ou confraria. O que mais eles tinham nos bolsos, Carmina?”
Ela indicou-me uma das mesas de canto. Sobre o móvel, iluminado por velas que disfarçavam o fedor de carne apodrecida, um grande lenço branco, daqueles usados pelos policiais para repousar evidências. Sobre o tecido claro jazia um olho, um dedo, uma língua e uma orelha. Todas humanas, todaos femininos, todas pertencentes à mesma pessoa.
“E obviamente, tens mais uma vítima além destes quatro, morta há duas ou três semanas, pelo que posso ver do estado avançado de deterioração dessas partes.”
“Sim”, disse ela. “Mas o problema é que não temos apenas uma vítima e sim duas, além de uma terceira desaparecida. A irmã adolescente de um dos enforcados.”
Ao dizer isso, ela estendeu-me uma photographia em sépia. A impressão mostrava duas vítimas nuas, uma feminina e outra masculina, alocadas em posições suplicantes diante de um anjo de pedra cujas asas eram cortadas pela borda branca da imagem.
No rosto da mulher não havia orelhas, e manchas de sangue abaixo dos olhos e da boca evidenciavam as outras mutilações. O mesmo com as mãos e seus dedos decepados.
“Eles foram encontrados há duas semanas, no cemitério municipal. Era um casal que se prostituía a preços irrisórios. Às vezes ele, às vezes ela, às vezes ambos ao mesmo tempo. Os dois estavam doentes e condenados. As famílias não solicitaram os corpos e o crime foi arquivado. Os responsáveis pelo inquérito interpretaram o crime como vingança por parte de um cliente ou gerente prostibular. Quando o processo chegou às minhas mãos, não desisti do caso, como desistira de tantos nesses anos de caserna.”
Havia algo óbvio naquela foto e naquela disposição de corpos enforcados. Todavia, minha mente não conseguia fazer a conexão.
“Fomos ao Palacete dos Prazeres2,” continuou Maia. “Aquele casarão de luxo onde vivem as cariocas. O casal assassinado vez ou outra fazia alguns serviços por lá. Léonie, uma das gerentes, nos disse que eles não apareciam há meses e que sua última visita ao estabelecimento fora em companhia de quatro estudantes ricos da cidade. Quando checamos a identidade de um deles, vimos procurá-los neste estabelecimento, e isto é o que encontramos.”
Além do que me comunicava com palavras, não havia nada mais na superfície do pensamento de Carmina. Sua mente estava fechada para mim, o que lamentei. Quando a conheci, era uma mulher enérgica e transparente, um livro que eu adorava ler. O que havia acontecido a ela?
Ao olhá-la, tendo por cenário os quatro assassinados, algo chamou minha atenção. Lembrei-me de uma noite na Mansão dos Encantos3 quando Vitória Acauã, investigadora do oculto e médium indígena, lia cartas para mim e ao virar a carta do Enforcado, disse-me que aquela era a minha sorte: “A morte que é renascimento, a morte que é recomeço, a morte que é vida.”
Desviei da foto e das partes humanas decepadas, fitei os quatro enforcados e forcei minha imaginação a rodopiar a cena disposta diante de mim em cento e oitenta graus, como se colocasse o próprio mundo em movimento. E assim, como um vívido cinematógrapho, vi os quatro enforcados se transmutarem no décimo segundo arcano do tarô. E não apenas isso.
Ao rever a photografia do cemitério, reconheci na disposição dos corpos e do anjo petrificado a recriação do sétimo arcano do baralho milenar: Os Amantes.
“Carmina, é o tarô. O assassino está encenando os arcanos maiores. Eis aqui os Amantes,” lhe disse, mostrando a foto do crime anterior e em seguida apontando para os quatro estudantes mortos, “e eis aqui os Enforcados”.
Ela sorriu, sabendo que tinha acertado em ter me chamado.
“Qual a conexão entre as vítimas? O que os aproximava além do Direito?”
“Todos frequentavam a alta sociedade porto-alegrense, eram filhos de famílias renomadas.”
“E o que mais encontraste nos bolsos? Carmina, estou disposto a ajudar-te, mas preciso saber tudo sobre o caso. Há uma lógica nesses assassinatos, uma perversa progressão temática que levará a mais crimes. Falo de um símbolo arcano, um nome, um anagrama.”
A contragosto, mostrou-me outra photographia.
Nela, um desconhecido símbolo inscrito me interrogava.
“O casal trazia essa marca nas palmas das mãos. Fora feita com um buril de gravador. Havia restos de tinta no ferimento.”
Estudei a imagem. Com a seta voltada para cima, para o céu. Da perspectiva de onde estava, o signo indicava os quatro enforcados diante de mim. Será que em algum lugar dos seus corpos não havia o mesmo símbolo?
Lendo meus pensamentos, Carmina disse que não, que eles já haviam sido completamente revistados: “Palmas das mãos, pernas, peito, costas, couro cabeludo…”.
“E a sola dos pés?”
Eu me aproximei de um dos jovens mortos e retirei a bota da perna livre. Nada. Desatei o nó que prendia o pé ao joelho da outra perna e ao retirar seu calçado, lá estava: o mesmo símbolo, também inscrito em sangue e restos de tinta de impressão.
Um dos cadetes conferiu as outras vítimas. A mesma coisa.
“Precisamos de ajuda na interpretação desses símbolos, Carmina.”
“Solfieri, eu já quebrei todos os protocolos ao te chamar aqui. Não posso incluir mais nenhum leigo neste assunto.”
“Não se trata de nenhum leigo”, lhe disse. “Trata-se de um médico renomado e respeitável, reconhecido por sua discrição. Um homem cuja bondade é inquestionável e cujos conhecimentos nos serão de grande auxílio. Se há um homem a quem eu confiaria minha vida, seria ele.”
“De quem estamos falando?”, perguntou-me Carmina, impaciente.
“Do doutor Antoine Louison.”
Chegamos ao sobrado no início do dia, após termos testemunhado a retirada e o transporte dos enforcados para a central de polícia. A casa era protegida por duas esfinges que davam acesso ao pequeno pátio. Na lateral do sobrado, levando ao jardim interno, colunas davam à construção um verniz atemporal. Eu adorava a casa e o seu morador, um homem conhecido por sua eficiência e amabilidade.
A governanta nos atendeu com a indisposição costumeira. Desculpei-me pelo horário e disse que precisávamos ver o doutor com urgência.
Passamos pela escadaria que levava ao segundo andar do casarão, sendo guiados ao gabinete de trabalho de Louison, cômodo central da casa cuja janela dava de frente para o selvagem arvoredo do Bosque da Perdição.
Para a minha surpresa, Louison estava lá, vestindo roupas do dia anterior. Seu casaco e gravata jogados no divã lateral e as mangas da camisa branca dobradas. Sentado à elegante escrivaninha que ocupava o centro da sala cujas paredes eram revestidas de livros, ele escrevia concentrado. Insone, estava finalizando mais um de seus livros. Seria poesia, crítica de arte ou medicina?
Louison levantou a tez, irritado, até perceber que era eu. Ele deixou cair a caneta tinteiro ao lado do volume amanhecido e veio me receber, agora nos ofertando sua costumeira face de simpatia.
“Bom dia, meu caro. Lamento, mas estou concentrado num escrito de grande importância. A que devo a visita?”, perguntou-me, olhando para Carmina e esperando as apresentações.
“Esta é Carmina Maia, investigadora das forças policiais da cidade. Precisamos de seu auxílio num caso urgente,” lhe disse. Ele estendeu a mão delicada a Carmina, desculpando-se pelos dedos sujos de tinta.
“É a poesia. Às vezes, ela chega e não aceita qualquer coisa que não a minha completa dedicação. Às vezes, todavia, ela vai embora e demora anos para voltar.”
“Então, além de médico, é também poeta?”, perguntou Carmina.
“Não sei se me descreveria como poeta, minha senhora. Sou mais um artista experimental. Gosto das palavras e dos efeitos que elas produzem. São magia, não? Alterações mentais por meio de modulações sonoras, de musicalidades tonais.”
Carmina interrompeu as divagações de Louison dizendo que um dia adoraria ler seus versos, mas que naquele momento, outro assunto que não a arte levara-nos à sua residência.
Atualizei meu velho amigo do caso e enviei também algumas mensagens mentais a respeito da minha história pregressa com Carmina. Como outro integrante do Parthenon Místico, tinha com Louison uma afinidade e uma comunhão que transcendia os diálogos tradicionais, fossem por palavras ou ideias. Por fim, lhe mostrei a photographia do casal encontrado no cemitério. Ao olhar para a imagem em sépia, Louison silenciou. Vi no seu olho o passear das várias possibilidades que checava.
Como um leitor voraz, Louison visitava mentalmente tomos de história oriental, de magia ritual, de religiões arcanas e também símbolos de arte, uma vez que todas essas searas dialogavam na história do misticismo ocidental.
“Não reconheço o símbolo, Solfieri, o que só pode significar uma coisa. Trata-se de uma criação recente, com propósitos ritualísticos específicos.” Enquanto dizia isso, deixou a imagem repousar ao lado do elegante caderno no qual escrevia. Ele abriu uma das gavetas da escrivaninha e retirou dali uma lupa. Ao fazer isso, olhou novamente para o papel.
“Estamos olhando de modo errado,” disse, fitando Carmina. “Não se trata de uma seta que aponta para o alto, para o céu, investigadora, e sim, de uma flecha mirando a terra. É assim que devemos observar este símbolo sangrento,” informou e girou a imagem em cento e oitenta graus. “E quando fazemos isso… nos damos conta de que…”
“… estamos olhando para um Sigilo”, completei, ignorando Carmina, que olhava deliciada para nós dois. Sigilos eram signos inéditos, criados por um magista a partir de um encantamento, de um desejo, de um nome ou de qualquer outro construto mental passível de ser lido, escrito e memorizado. Tais símbolos mágikos eram frequentes no Velho Mundo, mas praticamente inéditos por aqui.
“Neste caso,” continuou Louison, voltando a sentar-se, “temos um arranjo de letras diversas.”
Escreveu no papel várias letras: “M”, “N”, “U”, “I”, “F”, “P” e “A”. Depois de cortar algumas, em especial aquelas que anulariam outras, Louison ficou com quatro letras.
“Comumente,” disse-nos, “magistas partem de palavras ou símbolos curtos, o que facilita a memorização e sobretudo a manipulação psíquica de si próprios e de seus asseclas ou seguidores. Mesmo que percam tudo, podem assim levar pela vida os nomes e os símbolos que lhes são poderosos. Neste caso, temos um ‘M’, um ‘U’, um ‘A’ e um ‘P’.” Quando vi as letras, minha mente percebeu a palavra e, como um suspiro, eu a pronunciei, ignorando sua história terrível e todos os avisos arcanos de nunca pronunciá-la em voz alta.
“Pamu,” escapou de meus lábios entreabertos, “Pamu, o Venerável”.
“Vocês fazem ideia de quem é esta divindade?”, perguntou Carmina.
Louison refletiu por alguns instantes, para então buscar numa das prateleiras mais altas de sua biblioteca um grande e pesado volume, encadernado em couro vermelho. Na capa, lia-se em negras letras góticas “Tomos de Demonologia Arcana”. Ele repousou o livro sobre sua mesa e o abriu, ofertando-nos o delicioso cheiro de papiro envelhecido. Ao procurar uma página específica, disse-nos:
“Pamu é um demônio menor na mitologia maia, um hediondo diabrete fétido e desprezível. Idealmente, seus adoradores, um bando de estúpidos ladrões de lápides, acreditavam que Pamu era capaz de presenteá-los com vida sem fim. Não falo de imortalidade, notem bem, mas da transmigração do espírito para outro construto corpóreo. Em outros termos, Pamu garantiria isso permitindo aos seus devotos que trocassem de corpos, assumindo ou possuindo seres mais jovens, fossem eles humanos ou não. Ao menos, é isso que conta a lenda.”
Ao finalizar, abriu o volume numa ilustração na qual eu e Carmina vimos um ser hediondo e peludo, uma monstruosidade gigantesca que devorava e defecava vítimas. A imagem remetia ao Diabo de Giotto, caso queiram buscar a referência. Porém, diferente da criatura medieval, Pamu não estava no meio de um inferno ardente. Este ser era urbano e fazia seu trabalho em meio às ruas de um vilarejo.
Louison despediu-se de nós, nos desejando boa sorte. Disse que voltaria à sua poesia e que estaria ali, à nossa disposição, caso precisássemos.
Ao deixarmos sua casa, Carmina e eu caminhamos pelo Bosque da Perdição.
“Você o conhece há muito tempo?”, perguntou-me.
Eu parei diante de Carmina e perguntei se ela tomava Louison por suspeito. Obviamente ele tinha conhecimentos arcanos e quem não os tinha nesses dias de sociedades secretas e seitas esotéricas, mas daí a cogitar que ele fosse um assassino em série seria demasiado exagerado. “Devo minha vida a ele, Carmina. Louison me encontrou há exatos vinte e dois anos, ao investigar uma criatura que o populacho chamava de imortal. Quando finalmente me achou, veio em minha direção com respeito e admiração. Pela primeira vez vi um homem cujo principal interesse não era imortalidade ou qualquer outro benefício. Louison tornou-se meu amigo, a despeito de minhas insânias pregressas, e desde então vivemos muitas coisas. Suspeite de todos, minha cara, exceto dele.”
Carmina, olhando firmemente para os meus olhos, por fim declarou.
“Atente para as suas próprias palavras, Solfieri. Ninguém, estás ouvindo?, ninguém é totalmente confiável. Há algo no sombreado do olhar deste teu amigo que me deixa no mínimo inquieta. Há escuridão dentro dele e, cedo ou tarde, esta escuridão virá à tona. Ao menos, foi isso o que eu aprendi nesses anos de força policial”, disse, enquanto acendia um cigarro.
Olhei para ela, enquanto o vento da Perdição movimentava seu casaco escuro, revelando o coldre e sua pistola. Aquela mulher continuava exuberante e linda, e o tempo havia apenas fortalecido o que sempre me encantara nela: o corpo magro, os seios fartos, as coxas firmes, a pele clara e delicada, agora marcada pelos anos, pelas vivências do quartel. Acima de nós, um Zepelim flutuava no céu pesado, cujas nuvens de chuva anunciavam tempestades. Quando voltei a olháa-la, percebi em Carmina o mesmo desejo, como se a fome e a sede que um dia nutrimos um pelo outro se renovasse.
Tomamos uma carruagem mecanizada e ela informou ao chofer robótico o seu endereço.
Mal entramos no compartimento do transporte, nossas mãos passaram com violência ao mapeamento dos corpos vestidos. Os tecidos, que importavam tão pouco, rapidamente cederam e meus dedos encontraram com ímpeto os mamilos deliciosos. Desapontados, deixamos o automóvel e depois de pagarmos à lataria o valor da corrida, fomos com pressa ao seu apartamento, que ficava nas imediações da boêmia Cidade Inferior.
Arrancamos os restos de tecido que escondiam nossos corpos e nos deliciamos com a imagem um do outro. Quase trinta anos haviam passado. Diante dela, um jovem que aparentava ter dezessete anos, mas que acabara de entrar na oitava década, mostrava com seu sexo teso o vigor do seu desejo.
Ela, por sua vez, envelhecera e escondia com os braços os seios e com a mão esquerda o sombreado cobreado do seu sexo, como uma Vênus renascida do sêmen de Cronos na vaga das ondas. Eu lhe disse quão linda ela era e lhe pedi que descobrisse seu corpo. Beijei os seios, um pouco flácidos, mas não menos deliciosos. Beijei seu sexo, percorrendo sua doçura com minha língua e pensando novamente no quanto ela me era sagrada, como uma bebida resfriada nas estranhas da terra.
Em lágrimas, de prazer ou tristeza, ou de ambos, disse-me ela que há anos não via um homem e que se achava incapaz de novos reencontros do tipo. Eu beijei suas lágrimas e seus lábios, então encaixei meu corpo à curvatura do dela. “Não tenha medo, minha querida”, sussurrei perto do seu ouvido, enquanto beijava o desenho da sua orelha. “O tempo é uma ilusão e nós continuamos os mesmos. A tua pele não significa nada. Nem a minha. Isto foi apenas um truque e um dia, a cortina cairá e eu surgirei velho como sou.”
Nossos corpos enlaçados dançaram sobre a cama desarrumada. Meus dedos percorreram as linhas que um dia eu beijara, intensificando o seu desejo e também meu apreço por sua cartografia de mulher madura.
Sobre o leito, o juvenil demônio e a matrona belíssima fluíam dentro um do outro e nosso gozo não demorou a chegar.
E a tarde chegou e também a noite.
E por fim a madrugada, quando, pela terceira vez, voltamos ao nosso joguete carnal, agora de forma menos violenta e intensa, agora menos devotados ao júbilo do sexo, agora mais interessados nas carícias da pele.
Carmina havia ligado à central pedindo informações sobre a investigação e disse que trabalharia em casa. Eu deixei o leito no qual ela dormia, nua e esgotada, maravilhada com a capacidade de seu corpo em dar e receber prazer, e andei pelo apartamento às escuras.
Espalhados pelo chão, entre roupas e outros vestígios de sua vida profissional, livros de criminologia, outros esotéricos, e pastas de relatórios policiais. Nas paredes, fotos dos últimos crimes, com pequenos papeis que informavam “Resolvido”, “Arquivado” e “Beco sem Saída”. Estudei o mobiliário econômico e aquelas paredes que, ao invés de quadros, comportavam fotos de corpos mutilados, assassinados, destruídos, pela vida e por outros seres humanos.
Aquele era o cemitério no qual Carmina vivia.
E enquanto vagava por suas lápides e mausoléus, algo me saltou à vista.
Atrás de uma photo, um mapa da cidade de Porto Alegre e uma linha vermelha que levava de um ponto próximo à Usina Photoeléctrica a outro pictograma: um pequeno castelo de pedra, fincado numa esquina mal iluminada. Eu conhecia aquele lugar, passeava por ele com frequência, mas há tempos não o visitava. Era conhecido como o Castelinho da Prisioneira. Ao lado dele, outra photo mostrava um corpo feminino mutilado, encostado em um leão de pedra. Ao lado da vítima, um cálice. Em seu corpo semidesnudo, inscrições cabalísticas feitas com sangue.
Entre elas, o Sigilo dedicado a Pamu.
Arranquei a imagem e corri em direção a Carmina. Como ela deixara este detalhe passar?
Talvez ali estivesse a solução para o crime hediondo. Quem estaria usando o castelinho?
Estaquei diante do leito e contemplei o espaço vazio.
Quando estava prestes a me virar, senti dois filetes eléctricos serem cravados na base de minha nuca. A descarga fez-me despencar de joelhos.
“Então descobriste, meu querido Solfieri?”
Ao buscar a voz feminina, encontrei Carmina, nua e perfeita, contra a luz da lua que invadia o quarto semi-iluminado. Uma nova descarga me atordoou.
“Agora, precisaremos levá-lo ao Palácio de Pamu. Mas isso não será problema, pois meu irmão está aqui. Juntos, iremos finalizar o ritual. Juntos, iremos conquistar a vida eterna.”
Outra descarga fez meu rosto tocar o chão. Atrás de Carmina, uma criatura surgiu. Entroncada, velha, fedorenta e imunda. Um homem que possuía demoníacos monóculos avermelhados no lugar dos olhos e que, ao sorrir, revelava uma boca sem dentes e sem língua.
No meio daquele sórdido pesadelo, senti meu corpo afundar.
Acordei num velho castelo de pedras com cheio de enxofre, sangue e morte.
Meu corpo, ainda nu, estava preso com algemas e correntes a um crucifixo de madeira, cravado no centro de um grande saguão de formato circular. Diante de mim, uma gigantesca estátua coberta por um negro tecido. Abaixo dela, de frente para mim, meus dois sequestradores. Antes de confrontá-los, estudei o lugar, pensando em libertação e em fuga. Estude suas opções, comunicava a mim mesmo. Fique calmo e estude suas opções.
Minha visão turva e minha cabeça em chamas começaram a perceber aos poucos a disposição dos móveis e objetos. Ao meu redor, pilhas de livros antigos se avolumavam, alguns nas prateleiras espalhadas pelo recinto, outros no chão. Eram livros, manuscritos, papiros enrolados, grandes mapas arcanos, todos alocados de forma precária e desrespeitosa. Um bibliotecário ou colecionador de antiguidades lamentaria o modo como aqueles registros estavam dispostos.
Entremeados às prateleiras, estavam quatro mesas de trabalho e de experimentos. Numa delas, materiais que lembrariam mestres alquímicos. Na outra, as ferramentas de um gravurista, agora não mais usadas para produzir belas ilustrações e sim para perfurar e desenhar sobre a carne.
Por fim, vislumbrei num dos cantos do salão alto, uma pilha de animais mortos e apodrecidos.
Atrás de mim, um gemido feminino. Tentei girar minha cabeça para ver de onde vinha o barulho, mas não consegui. As correntes me impediam. Pude vislumbrar apenas parcialmente uma jaula enferrujada e uma vítima feminina lá enclausurada.
Ignorei o choro, pois nada poderia fazer por ela.
Supunha que estivesse no casarão maldito que havia visto na phfoto; portanto, no centro de Porto dos Amantes. Agora, precisava manter a calma e tomar a iniciativa.
“O que significa tudo isso, Carmina?”, disse calmamente, ignorando minha nudez e vestindo uma mentirosa máscara de dignidade, enquanto fitava meus dois carcereiros.
O homem ao lado de Carmina era baixo e atarracado, vestia um grosseiro uniforme de mecânico. No rosto, visores mecatrônicos raramente encontrados em seres humanos. Não havia nada em sua boca, nem dentes nem lábios nem língua, apenas um buraco terrível, vácuo medonho resultante dalgum acidente. Na mão imunda e ensanguentada, um buril de gravação, que usava por proteção ou sordidez. O afiado instrumento metálico brilhava no ambiente às escuras, refletia apenas o brilho das velas. Suas chamas faziam as sombras dançar.
O atarracado era um idiota, isso estava claro, um débil mental que não passava de um serviçal de Carmina. Quanto à minha amante, usava agora um vestido escuro e de corte simples, porém de caimento perfeito. As roupas noturnas lhe caíram bem, em especial aos meus olhos, que apenas a havia visto com os cinzentos uniformes militares.
“O que significa, Solfieri? Significa que você está prestes a ser sacrificado a Pamu, nosso deus, nossos anjo, nosso senhor. Significa que nós tiraremos teu sangue e que esfolaremos teu corpo, ao lado da pequena jovem que está presa atrás de ti. Significa que iremos encenar o último dos arcanos, o mais poderoso, o mais temível: a décima quinta carta.”
Quando disse isso, dirigiu-se à estátua e fez o tecido que a cobria quedar, desvelando uma grande imagem de Pamu, uma estátua esculpida em pedra e manchada de sangue e outros excrementos. As merdas que já tinha visto na vida, pensei, e as merdas que ainda veria.
“Sim, deves suspirar, meu querido, pois dentro de minutos você e a vagabunda ali atrás terão os pescoços acorrentados a Pamu e o teu sangue garantirá nosso sucesso.”
“Qual sucesso, Carmina? O que vocês dois pretendem?”
“Pretendemos viver para sempre! O que mais seria? Quando comecei a investigar os crimes do tarô, cheguei a Antônio, um gravurista de certo renome que havia sofrido um terrível acidente com ácidos. Caso fosse ele o culpado, pretendia prendê-lo por ter matado pessoas e por ter disposto seus corpos daquele modo. Todavia, quando adentrei neste templo, uma epifania me acometeu e eu vi a luz de Pamu e as trevas nas quais vivia. Percebi que pisava num lugar sagrado e percebi o quanto desconhecia dos mistérios antigos. Antônio veio e me mostrou seus livros, me explicou a razão de fazer o que fez, me narrou a história de sua relação com Pamu e contou tudo o que o Venerável ensinou.”
“E como ele fez isso? Não sei se notaste, mas este infeliz não tem boca pra nada! Literalmente!” disse, esforçando-me para não cair na risada.
Carmina me esbofeteou e então exigiu que eu tivesse respeito. “Antônio fala comigo de um modo que tu nunca entenderias, em silêncio, em línguas antigas e em tons que me deliciam o espírito. A voz dele é linda, você não a escuta? Não a escuta?”
“Carmina, liberte-me. Isso não levará a nada. Tudo isso é atrocidade.”
Minha frase foi seguida de uma risada medonha, uma risada que nunca havia visto nos lábios que eu beijara com fome horas antes. Atrás de mim, a prisioneira novamente chorava. Eu lhe enviei um comando mental para que ficasse em silêncio. Aquele não era o momento para choro.
“Atrocidade? Vou te contar o que é uma atrocidade!” Carmina foi em direção ao serviçal peludo e monstruoso e lhe beijou a bocarra despedaçada. Depois disso, pegou o buril que a besta humana segurava e veio em minha direção. “Certa vez, existiu uma jovem mulher que sonhava com justiça e correção. Ela se apaixonou por um jovem atraente, que se apresentava como um detetive particular. Ele ensinou a ela dezenas de coisas, sobre o mundo, sobre o sexo, sobre os mistérios.” Ela olhava-me nos olhos, agora com seus lábios fedorentos próximos dos meus. “Os dois se tornaram amantes, até que um dia ele se foi, em busca de outros ou outras amantes. A mulher então sacrificou suas ilusões no altar do amor e jurou nunca mais se entregar ao sexo como fizera e dedicar às leis e aos deveres.” Enquanto dizia isso, Carmina foi pouco a pouco desenhando em meu peito o signo de Pamu. Ignorando a dor, não lhe dando a satisfação dos meus gritos, apenas me concentrei em sua voz e na trágica história que ela me revelava. “Mas aquela não seria a vida dele. Pois ele, além de passar os meses e os anos na companhia de outras pessoas, conforme seu bel prazer, não envelhecia um dia sequer. Quanto a ela, em função da vida, do trabalho, dos crimes, ela murchava a cada dia. E assim os anos passaram e não havia mais ideais, nem ilusões de justiça ou retidão.” O buril cortava minha carne, que não resistia, vertendo o sangue maldito que corria em minhas veias. Carmina chorava enquanto me feria. “O mundo é vasto, o mundo é selvagem, o mundo é um abismo, e apenas nós, os adoradores de Pamu, percebemos a sua verdadeira beleza: a beleza da carne despedaçada em homenagem a ele.” Depois de finalizar, beijou meu sangue, manchando seu rosto de vermelhidão.
“Estás louca, Carmina. Adoradores de Pamu, disseste? Quem? Tu e este pobre diabo?” Uma nova gargalhada, seguida de um golpe do buril, arranhando e rasgando meu flanco esquerdo.
“Tu és um tolo, Solfieri! Nós somos muitos e nós dominaremos o mundo, e pregaremos a palavra de Pamu! Nós derramaremos sangue e beberemos esse sangue, como os velhos rituais nos indicam. Tu não envelheces e o segredo da tua imortalidade está no teu sangue. Venha Antônio, beba e encontre a cura. Beba e encontre o consolo! Beba e encontre a vida!” disse ela exultante. “Tudo o que fizemos foi para tê-lo aqui, ao nosso dispor.”
“Carmina, não faças isso,” supliquei enquanto condenava minha tolice em não ter suspeitado de nada. Ao ver o monstro vir em minha direção, tentei avisá-los. “Eu não sou um vampiro. As coisas não acontecem assim comigo. O que tenho foi dado apenas para mim, num ritual antigo e sagrado, por meio de um poção indígena que há muito se perdeu nas brumas das eras. E eu não posso dar essa dádiva a ninguém. Vocês estariam apenas condenando a si próprios. Outros já tentaram o mesmo…”
“Mentiroso! Demônio mentiroso!” gritou Carmina. “Os tomos de Pamu contam a verdade! É o sangue! É o sangue e precisamos dele.” Ao dizer isso, ela cortou meus dois pulsos, que estavam presos à cruz por grilhões de metal. Antônio caminhou em minha direção, com seu rosto despedaçado, parecendoia formar um sorriso. Carmina continuava exultante: “Nossos mestres arcanos, os anciãos da Camarilha da Dor, também nos ensinaram. O sangue é o segredo. Sempre o sangue.”
Ela levou os lábios do serviçal ao meu pulso esquerdo e ordenou que ele bebesse. Mesmo acovardado, foi o que ele fez. Ela aproximou seus lábios do direito e também bebeu de mim. Eu fechei meus olhos, concentrando meus pensamentos no que deveria fazer em seguida.
Depois de segundos, Antônio afastou-se, começando a sentir os efeitos do líquido sinistro. Quanto a Carmina, o efeito demorou a chegar. Ela parou de beber e então fechou os olhos, para logo depois deixar o buril despencar de seus dedos.
Antônio começou a vomitar sangue. Em seguida, suas entranhas começaram a arder e ele a gritar, num grunhido animalesco. Sem compreender, o monstro começou a chorar e arrancou os monóculos do rosto, revelando as órbitas vazias, ambas corroídas por ácido, num acidente que destroçou seus olhos e sua boca, mas que lhe deu o dom da visão e da voz. Quantos ressurgiam das desgraças pessoais encontrando consolos em delírios como aquele? A religião do crucificado era um amontoado de histórias do tipo.
Ao ver a reação que meu sangue produzia em Antônio, Carmina começou a desesperar. De seus olhos vertiam lágrimas sangrentas.
“Por quê? Por quê? Eu não mereço isso? Eu só queria ser como tu és! Eu só queria não ver meu corpo apodrecendo a cada dia… Eu só queria… ser como tu és, meu querido amigo… eu apenas queria ter a força que tens, meu primeiro amado…”
“Eu sei, minha querida. Eu sei. Eu um dia também quis fugir da morte. E não imaginas o quanto me arrependo.” Eu não fechei meus olhos, pois fazia parte de minha resolução não mais me esconder dos meus crimes. E Carmina era um deles, vindo agora, anos depois, para evidenciar minha sordidez.
Ela caiu no chão, seus olhos fitando o teto de pedra. Seus lábios pronunciavam agora palavras incompreensíveis. Em segundos, ela expirou, ao lado do comparsa monstruoso.
Duas figuras patéticas, vítimas de suas ilusões, de suas tristezas, de seus desesperos.
Olhei para os meus pulsos e percebi que os ferimentos hediondos já haviam fechado, bem como a marca desprezível de Pamu que Carmina havia inscrito em meu corpo, como Antônio havia feito no corpo de suas vítimas.
Eis o segredo sagrado da minha imortalidade. Nada pode me matar e eu não sei se encaro isso como bênção ou maldição. Ninguém quer morrer, e todos sabemos disso. Mas será que alguém quer de fato viver para sempre? Sem poder descansar, repousar, esquecer? Numa eterna e malfadada vigília?
Atrás de mim, a jovem aprisionada voltou a chorar.
“Minha querida”, disse, “não nos conhecemos, mas precisamos nos libertar agora e sair deste lugar. E apenas faremos isso se tivermos calma. Por favor, pare de chorar. Isso, muito bem. Agora é preciso que converse comigo. Qual é o teu nome?”
Depois de minutos de silêncio, ela finalmente respondeu.
“Francine, meu nome é Francine,” disse entre soluços.
“Muito prazer, Francine. Sou Solfieri. É preciso que faças algo por mim. Descreva de que modo estás presa. Seus braços e pernas estão acorrentados?”
“É uma jaula, estou presa numa jaula de animais. Não, eles estão livres.”
“Então veja o buril que esta mulher deixou cair. Você consegue pegá-lo? Ele não está muito longe, está? Ela deixou o instrumento cair perto do lugar onde está, não?”
“Eu posso tentar, mas ele está muito longe.” Eu escutei o barulho das grades e os gritos de esforço que ela fazia. “Eu não consigo, eu não consigo,” disse, voltando a chorar.
Então, seria preciso gastar mais do meu poder.
Fechei meus olhos e concentrei minha força no buril de metal. Ordenei que o objeto fosse jogado em direção a Francine. Não se tratava de um poder fácil, uma vez que qualquer tipo de manipulação física exigia muita magia e concentração. Alteração mental, bem… é sobre isso que é a magia, não? Mas influência no mundo físico é bem mais complicado, além de despertar forças que eu queria longe de mim. Ademais, por qual razão qualquer pessoa desejaria fazer isso, influenciar o mundo físico com a mente, se tínhamos um corpo capaz de fazer isso?
Ora, transformar água em vinho, qualquer um pode fazer. O crucificado marceneiro que o diga. Agora, pra que se dar ao trabalho se há tantas safras excelentes à disposição em qualquer estalagem? Droga, eu estava me distraindo. Voltei a me concentrar no buril e a tentar acalmar a jovem.
“Francine, não perca a ferramenta metálica de vista. Ela será jogada em sua direção, mas não lhe fará mal. Mas é fundamental que tu a pegues, certo? Estás preparada?”
“Sim,” respondeu-me.
Conjurei novamente todo o meu poder mental, ordenando às moléculas que formavam o instrumento para que elas fossem movidas em direção a Francine.
Eu estava fraco e a única coisa que escutei foi o barulho do objeto sendo arrastado. Mais uma vez e então meu esforço excruciante foi interrompido por sua voz.
“Eu peguei!” disse ela.
“Muito bem, Francine, muito bem! Agora, você precisa encontrar uma forma de abrir a corrente que prende…”
Fui interrompido pelo som das pesadas correntes caindo no chão de pedra. Foi com felicidade que escutei o rangido da porta da jaula se abrir e Francine sair rápido de lá. Fiquei muito feliz por ela ainda ter forças para liberta-se. Ao menos algo de bom naquela noite dos diabos.
Agora, ela vinha em minha direção e eu pude vê-la, esforçando-me para não lhe revelar com meus olhos o estado deplorável no qual se encontrava. Era uma criança, de doze ou treze anos, que possuía belíssimos cabelos ruivos e olhos de um verde escuro puríssimo. Vestia trapos e tinha o corpo machucado e imundo. Na sua mão, trazia o buril que a havia libertado, apontando-o para mim.
“Qual é a garantia que eu tenho de que tu não me matarás?”
Eu gostei dela de imediato e lhe pedi que olhasse em meus olhos. Se neles encontrasse ameaça, não deveria me libertar.
Momentos depois, livre, cobri meu corpo com o manto escuro que escondera antes a estátua, que continuava ali, imóvel e estúpida, como todos os estandartes religiosos.
Eles não tiraram do meu dedo meu anel de rubi, o que agradeci aos céus, ou aos infernos. Não importa. Meu segredo continuava assegurado e também minha segurança.
Depois de me libertar, Francine desmoronou no chão e começou a chorar. Eu fui em direção à jaula na qual ela havia sido feita prisioneira. Tratada como um animal, havia ainda pedaços de ossos e um pequeno pote com água apodrecida. Por quanto tempo ela havia ficado ali?
Tentando ignorar as lágrimas de Francine, passeei pelo templo sórdido, photographando com a vista os vários objetos e utensílios que compunham o lugar. Entre eles, uma série de desenhos de Antônio que detalhavam seu acidente com ácidos e a instalação do visor mecânico.
Ao lado dessas ilustrações, uma antiga gravura mostrava um grupo de seis pessoas, desenhadas num estilo antiquado, quase medieval, ao redor de uma mesa na qual uma família inteira fora acorrentada. Abaixo dela, uma legenda me chamou a atenção.
“Sacrifício a Pamu o Venerável feito pelos Devotos da Camarilha da Dor”.
O choro renovado de Francine afastou-me daquelas sórdidas imagens. Agora, era tempo de cuidar dela. Quanto àquela misteriosa seita demoníaca, o tempo deles chegaria.
Carreguei a pequena no colo e saímos do castelo de pedra. Encontrei uma carruagem de aluguel e quase felicitei o chofer robótico, incapaz de perceber o que havia de estranho em nossas roupas. Fomos para a casa de Louison e lá pedi a ele que cuidasse dos seus ferimentos.
Ficamos em sua casa por semanas, recebendo seus cuidados de médico e os afagos culinários de sua governanta. A menina melhorava a olhos vistos a cada dia que passava, até que nos contou tudo.
Os pais de Francine morreram num acidente de trem anos antes e desde então ela fora cuidada pelo irmão, um dos estudantes de direito. Ele nunca foi gentil com ela e havia algo de soturno no modo como ele a olhava. Até o dia em que vieram capturá-lo e a levaram também. O monstro dos olhos mecânicos e a mulher bonita e assustadora, era assim que ela os descrevia.
Eu e Louison voltamos ao castelo de Pamu dias depois. Descartamos os corpos de Carmine e Antônio na pilha das carcaças animais. Fizemos uma grande fogueira, uma vez que julgamos que o melhor seria esconder de toda a cidade o que aqueles dois haviam feito.
Infelizmente, não encontramos nenhuma outra referência à Camarilha da Dor ou a qualquer um dos seus integrantes. Nos revezamos por mais algumas noites, vigiando o lugar e esperando que alguém aparecesse, o que não ocorreu.
Louison, como sempre, foi frio e metódico ao tratar de todo o imbróglio, deixando seus sentimentos para questões mais refinadas.
Em três semanas, Francine estava bem para deixar os seus cuidados e retornar à sua casa. Ela beijou meu rosto e agradeceu por tudo o que eu havia feito por ela. Não escondi de mim a vontade de revê-la, mas condenei a ideia, pois sabia que eu não poderia fazer nada por ela a não ser danificar sua vida como eu já danificara tantas outras.
Ela precisava sobreviver àquela noite maldita e isso apenas seria possível se nenhuma marca daquele encontro sobreviesse, o que me incluía.
No final deste relato, apenas detalho minha última conversa com Louison sobre aquela dupla de vilões e seus outros asseclas, caso existissem de fato. Não excluímos a possibilidade de a Camarilha da Dor não passar de uma invenção ou de um delírio de ambos.
“Se existirem, Solfieri, nós os descobriremos. É isso que fazemos. Nós, do Parthenon Místico, saímos pelo mundo aprendendo o que podemos, salvando quem deseja ser salvo e punindo aqueles que estão além de qualquer redenção.”
Havia uma sombra no seu olhar. Ele estava belíssimo naquela noite. A barba bem asseada, vestia um de seus melhores ternos. O cabelo impecável.
Beatriz estava voltando de viagem e ele, como era visível, não escondia sua alegria.
Eu lhe sorri e ele me disse o quanto Beatriz lhe acalmava a solidão e o desespero. Eu os amava e amava o que ambos significavam um para o outro. Este casal que morava em casas separadas e que tinham vidas próprias, apartadas, independentes. Mas que ao mesmo tempo apreciavam os olhares, as conversas, os corpos, os desejos que nutriam no delimitado espaço de sua paixão de amantes.
“Há meses que Beatriz tem tido pesadelos terríveis. Sua viagem com Vitória a Londres teve por meta lhe distrair. Imagine aquelas duas mulheres belíssimas e deliciosas, uma negra e uma índia, viajando pelo mundo,” disse ele, enquanto bebia da taça de vinho.
“Sim, eu imagino,” lhe respondi, fiquei de pé e tentei evitar a imagem de Vitória e tudo o que ela significava ainda para mim.
Eu apertei sua mão e antes de me despedir, perguntei sobre os pesadelos de Beatriz.
Louison, diante do desenho que havia feito da estátua de Pamu e da gravura da Camarilha da Dor, disse que ela mesma sabia pouco sobre eles. “São sonhos, meu amigo, imagens imperfeitas, recortes de memórias que Beatriz sabiamente denega. Mas alguma coisa me diz que estamos muito próximos de adentrar seu significado. Pela primeira vez em minha vida, Solfieri, temo o futuro dela quando esta revelação do passado finalmente vier à tona. Temo, na verdade, o futuro de todos nós.”
E ali estava algo que nunca vira antes. Louison fora o homem mais brilhante, corajoso e vivaz que eu já conhecera. E agora, aquele homem estava com medo.
Seriam os enforcados? Seriam os amantes? Seria o diabo? Seriam os arcanos do passado capazes de anular sua força e sua perspicácia presentes?
Abracei-o e saí para a noite que chegava chuvosa. Imaginei-o sozinho em seu gabinete de estudos, fitando a escuridão da Perdição entremeada ao seu próprio reflexo no vidro da janela.
Imaginei Vitória e Beatriz singrando corajosas o Atlântico em direção ao Brasil.
Imaginei Francine, decidindo seu futuro e não desistindo dele, jovem mulher corajosa que era, forjada no fogo e no sangue.
Ao invés de ir ao Grand Hotel e à sobriedade daquela mansão de passagem, naveguei em direção à Ilha do Desencanto. Ao menos naquela noite, precisava ter sonhos tranquilos. Ao menos naquela noite, precisava esquecer os enforcados e dormir em paz.
Ao menos naquela noite, precisava dormir em casa.
1 Nota do Escrivão. Sociedade secreta que tem por base de operações a Ilha do Desencanto, situada no Pântano do Guayba. Tal sociedade, a qual hoje tenho a honra de integrar, teve duas formações. A primeira, que data de 1892, contava com Antoine Louison, Beatriz de Almeida e Souza, Doutor Benignus, Giovani, o violinista, e Revocato Porto Alegre. A segunda, formada entre 1896 e 1902, contava com Louison, Beatriz e Benignus, além de Sergio Pompeu, Bento Alves e Vitória Acauã. Quanto ao autor do presente texto, Solfieri de Azevedo, integrou ambas as formações. Nas photographias que registram as duas formações, uma de 1893 e outra de 1904, ele parece não sofrer os efeitos dos anos.
2 Nota do Escrivão. Trata-se de uma casa de luxo, situada numa zona nobre da Cidade de Porto Alegre dos Amantes. Quanto às cariocas mencionadas, referem-se a Léonie, Pombinha e Rita Baiana, meretrizes requintadas que vieram do Rio de Janeiro depois de um misterioso incêndio no cortiço em que viviam. Fundaram o Palacete entre 1895 e 1896. Hoje, o paradeiro de Rita Baiana é desconhecido. Quanto ao Palacete, integra hoje a casa a jovem que atende por Senhorinha, outra carioca refugiada na capital Sulista, que parece receber de braços abertos aberrações de toda cepa.
3 Nota do Escrivão. Casarão sombrio e secular, situado na Ilha do Desencanto. Não posso dar mais detalhes sobre sua geografia peculiar ou arquitetura exótica. A pouquíssimos é permitido o acesso aos seus interiores. Posso apenas o aconselhar a nunca se aproximar dela sem ser devidamente convidado. Muitos tentaram e até hoje não se sabe o que aconteceu com eles.
Este conto integra o universo de Brasiliana Steampunk, série retrofuturista que reinterpreta os heróis da literatura brasileira do século 19 em histórias de aventura, suspense e fantasia. O primeiro volume da série, A Lição de Anatomia do Temível Dr. Louison, venceu o concurso da Fantasy/Casa da Palavra, sendo publicado pela Editora LeYa em 2014. No site oficial, estão disponíveis contos inéditos e artes exclusivas.
Sofieri criado por Álvares de Azevedo (Noite na Taverna, 1855);
Alfredo e Georgina Magalhães, Leôncio e a Ilha do Desencanto criados por Apeles Porto Alegre (Georgina, 1873-1874);
Giovanni criado por Aquiles Porto Alegre (Giovanni, 1873);
Doutor Benignus criado por Augusto Emílio Zaluar (Doutor Benignus, 1875);
Sergio e Bento Alves criados por Raul Pompéia (O Ateneu, 1888);
Rita Baiana, Pombinha e Léonie criadas por Aluísio de Azevedo (O Cortiço, 1890);
Vitória Acauã criada por Inglês de Souza (Contos Amazônicos, 1893);
Isaías e Loberant criados por Lima Barreto (Memórias do Escrivão Isaías Caminha, 1910).
Quanto aos demais personagens desta narrativa, são de responsabilidade de Enéias Tavares, professor de literatura clássica na UFSM, especialista nos livros iluminados de William Blake e escritor, tanto nas horas vagas quanto nas madrugadas adentro.
Bom dia, como faço para conseguir esse livro?
Olá, Celio.
Se está se referindo ao livro de Brasiliana Steampunk, você encontra todas as informações em http://brasilianasteampunk.com.br/