Trivela

Janice não correu na direção da parede do domo.
Ela mancou até lá, tão rápido quanto podia, jogando o peso no pé bom, cada passo uma agonia. Ela colou as mãos na parede transparente e passou os olhos pela rachadura que crescia. Eu percebi que estava prendendo a respiração — todos estavam — mas relaxei quando a rachadura parou de crescer. Janice suspirou, abaixou a cabeça e só ficou lá, as mãos na parede, sua silhueta contra a imensidão de areia vermelha do lado de fora.

Eu queria me levantar daquela grama cinza, queria dizer para Janice que tudo ia ficar bem. Queria dizer que era só uma rachadura superficial e eu poderia consertar pela manhã, antes de fazer minha ronda verificando o ar condicionado. Só levaria alguns minutos e não era nada demais, só usar uma pistola de neoplexiglass líquido para preencher a rachadura. Estava tudo bem com a parede e eu tinha certeza que Janice sabia disso. Eu não conseguia entender por que ela parecia tão preocupada. Será que era seu pé? Estava tão machucado assim?

“Ela só… arrebentou,” Janice disse, nem se importando em se virar.

Meu coração bateu em falso. Eu acho que o coração de todo mundo bateu. Todos se viraram para mim, como se eu tivesse alguma espécie de resposta. Até Sorata olhou para mim, esvaziado de sua confiança normal. Seus olhos diziam “conserte” mas ninguém dizia uma palavra. Ninguém precisava. Meu trabalho era basicamente garantir que todos ficássemos vivos, mas eu nunca havia sentido aquele tipo de pressão antes.

Eu não tinha respostas fáceis. Só o que eu tinha eram memórias.


Eu costumava jogar videogame com o meu pai quase todo dia. Ele entrava na nossa cabine quando voltava do trabalho e bagunçava meu cabelo. Então ele perguntava sobre o meu dia, sobre o que eu tinha aprendido, o que eu tinha feito, o que tinha comido. Contava sobre o seu dia, sobre o que havia consertado, que soluções encontrara para quais problemas. Ele me explicava o básico sobre como fazer seu trabalho e então — finalmente — nós íamos jogar videogame juntos.

A sala de jogos da colônia é onde ficam os videogames. Sempre havia uma fila e nós tínhamos que esperar um pouco, mas eu não ligava. Acho que o refeitório e a academia ficavam mais cheios, mas a conversa na fila do videogame era a principal atividade social da colônia. Ou pelo menos a minha principal atividade social, na época. Lá, nós costumávamos encontrar Sorata e sua mãe. É engraçado, eu não lembro do nome da mãe de Sorata. Ela era baixa e bonita e usava o cabelo num rabo-de-cavalo. Quase nunca sorria, mas parecia gentil. Lembro de fantasiar que ela era minha mãe, mas seu nome ainda me escapa.

Eu não me dava bem com Sorata, na época. Enquanto eu tinha aulas sobre manutenção, Sorata aprendia a explorar. Levou um bocado de tempo para que eu percebesse, mas tudo que fazíamos — a colônia, as aulas, a manutenção — era para os exploradores. Eles eram os protagonistas do nosso pequeno drama e Sorata sabia disso. Conseguia me olhar de cima mesmo sendo mais baixo. O jeito que ele falava comigo era uma mistura de pena e desprezo. De certa forma, eu acho que tinha inveja de mim porque eu era muito próximo do meu pai. Eu também tinha inveja por ele ter uma mãe, então no final das contas estávamos quites.

Quando o sistema de comunicação Marte-Terra foi aprimorado, a primeira coisa que eu percebi foi como nossos jogos eram ultrapassados. Na época, durante a primeira fase da colonização, era só o que a gente conhecia e bastava. Jogávamos vários jogos cooperativos, matando orcs e demônios e dragões. Eu não gostava muito, já que me fazia perceber que eu e Sorata trabalhávamos bem em equipe. Também jogávamos muitos jogos de luta e acho que posso dizer que eu era o melhor jogador na colônia inteira. Só que esses não eram meus jogos favoritos. O que eu realmente gostava eram os de esporte. Não exatamente por causa dos jogos em si, que eram meio mal feitos e complicados, mas porque meu pai gostava muito deles. Ele explicava as regras com muito cuidado e sempre dizia que de onde ele vinha as pessoas jogavam esportes de verdade em vez de videogames; dizia que faríamos a mesma coisa quando estivesse tudo certo na colônia. Eu podia ver a esperança e o orgulho nos olhos dele quando ele dizia aquilo. Se nós conseguíssemos chegar ao ponto de praticar esportes, isso significaria que a colonização tinha sido bem-sucedida. No final, o que me fez perceber a importância do que fazíamos não foi o vídeo de briefing da NASA nem o livreto das Nações Unidas. Foi aquele brilho de esperança no olho do meu pai quando ele explicou as regras do futebol.

Um dia meu pai chegou atrasado na nossa cabine. Eu sabia que nós estávamos tendo problemas com os purificadores de ar e todos estavam tensos, mas eu sabia que ele ia dar um jeito de nos tirar daquela encrenca. Ele bagunçou meu cabelo, perguntou sobre o meu dia e meio sentou, meio caiu na cama dele, exausto. Eu estava lendo um livro sobre aranhas, quase sem acreditar que uma coisa dessas podia existir. Eu queria perguntar sobre o dia do meu pai, sobre jogar videogame, até sobre as aranhas; mas pareceu errado. Não era um dia comum, com todas as novas pesando sobre os ombros dele. Perguntei se ele queria jogar futebol. Ele respirou fundo e me disse para entrar na sala, que estaria lá em um minuto, só precisava descansar um pouco. Então eu disse que não estava falando sobre videogames. Mas de jogar futebol, o esporte, na vida real. Meu pai me olhou por um momento, totalmente sério. Então sorriu e disse: “Vem, filho. Preciso te mostrar uma coisa.”

Andamos por corredores que eu nunca tinha visto, chegando a lugares da colônia que eu não sabia que existiam. Aquilo me fez pensar sobre quão pouco eu sabia a respeito do nosso pequeno mundo e que foi muita burrice da minha parte achar que eu entendia a vida se eu nem fazia ideia que pegando essa direita e aquela esquerda no Corredor A-22 nós chegaríamos ao Almoxarifado L. Depois disso, eu respeitei meu pai ainda mais.

O Almoxarifado L era menor que os outros. Não era muito bem organizado e meu pai precisou usar seu Cartão de Acesso Total para entrar, então eu sabia que era um lugar que eu não podia ver sozinho. Havia caixas e caixotes, todos fechados, como se abandonados fazia tempo. Meu pai não ligou as luzes; iluminou o caminho com sua lanterna e encontrou uma caixa pequena com uma marca verde, amarela e azul nela. Ele a abriu e me pediu para olhar lá dentro.

De dentro da caixa, tirei uma bola branca. Eu a reconheci como uma bola de futebol — eu já tinha visto várias vezes nos videogames, afinal de contas — mas nada podia ter me preparado para aquele cheiro. Cheira diferente de qualquer outra coisa que eu conhecia. Eu sabia que nenhuma outra bola jamais ia cheirar da mesma forma. Era cheiro de esperança. Meu pai sorriu, percebendo que a bola branca podia ser uma nova conexão entre nós dois.

Eu a guardei. Depois que meu pai morreu, eu a segurava e quase podia senti-lo ao meu lado.


Quando Janice chegou a Marte, nossa colônia já funcionava bem fazia anos. Sorata estava encarregado dos exploradores e era nosso líder, enquanto eu era o chefe da manutenção e meio que o braço direito dele. Mesmo as pessoas mais velhas confiavam na nossa liderança, fosse por nos conhecerem, por conhecerem nossos pais, ou por alguma noção maluca de nossas famílias terem se sacrificado pela colônia.

Desde sua chegada, Janice estava fadada a mudar as coisas. Ela e sua tripulação trouxeram uma nova forma de plexiglass transparente que podia filtrar raios ultravioleta e resistia à pressão interna superior das nossas casas-domo. Isso significava que um domo feito do novo neoplexiglass permitiria que todos vissem o céu, não somente os exploradores. As pessoas ficaram animadas com a possibilidade de se mudar para uma nova casa, de poder ver o céu. A possibilidade de criar animais foi mencionada por alguns, mas assim que todos os problemas logísticos foram considerados ela foi temporariamente esquecida.

Apesar de tudo que aquele novo plexiglass significava, eu estava mais interessado em Janice. Ela tinha mais ou menos a minha idade, mas havia nascido na Terra. Era mais alta que eu e parecia mais forte, também. Nós sabíamos que degradação muscular era uma possibilidade grande na gravidade mais fraca de Marte, mas tínhamos nosso rígido programa de exercícios para enfrentá-la. Eu desafiei Janice para uma disputa de queda de braço naquele mesmo dia. Eu venci, mas foi porque ela não estava dando a mínima. Eu não sei se eu realmente pensei que a nossa força física era um problema que podíamos consertar ou se eu só queria uma desculpa para realizar o sonho do meu pai, mas procurei Sorata e propus que nós não devíamos usar o novo domo para mais casas — já tínhamos espaço para Janice e a tripulação dela do jeito que estava.

O que nós precisávamos era de um campo de futebol.


Eu peguei aquela velha bola branca e começamos a treinar. Janice e sua equipe sabiam um pouco de futebol, mas a maior parte da ajuda veio do pessoal mais velho; aqueles que haviam vindo da Terra décadas atrás junto do meu pai. Nós sabíamos que futebol era um luxo, então demorou um pouco para que as pessoas aceitassem a ideia; mas eu sabia o quanto meu pai achava que aquilo era importante e a colônia estava indo muito bem nos últimos anos, sem acidentes, expedições indo cada vez mais longe. O que realmente causou aceitação, é claro, foi que os mais velhos se lembravam do meu pai e sabiam que ele teria aprovado.

Minha preocupação com o nosso poder muscular logo se provou tola — nós podíamos acertar a bola com força o bastante para fazê-la voar, devido à gravidade reduzida de Marte em comparação com a Terra. Decidimos aplicar regras de futebol de salão, apesar do domo ser grande o bastante para permitir um campo de society. Jogamos com times de cinco mais um goleiro, mantendo a bola distante das paredes do domo. Sabíamos que era impossível chutar forte o bastante para quebrar uma parede de neoplexiglass, mas era melhor prevenir do que remediar.

Janice rapidamente se tornou uma valiosa atacante para o nosso time. Sorata era um bom goleiro mas eu acho que a maior parte disso era a bravura que o fazia abusar dos grandes saltos que ele não poderia realizar na Terra. Eu treinava controle de bola e chutes com efeito mais do que qualquer outra coisa. Demorou um bocado e deu trabalho, mas acabei dominando a trivela. A bola ia para onde eu queria. Pelo que li, um bom chute de trivela não era pouca porcaria em partidas informais na Terra. A trivela podia enganar tanto defesa quanto goleiro, especialmente de uma posição estacionária, como uma cobrança de falta. Janice tinha um chute mais forte que o meu — eu descobri rápido que ela era uma entusiasta fitness — mas ela não tinha a minha habilidade com a trivela. Sem falsa modéstia — meio que era um talento.

Sorata e Janice começaram a namorar. Fiquei um pouco preocupado, já que Janice estava se tornando uma figura de liderança cada vez mais importante e caso eles rompessem o moral da colônia como um todo sofreria. Acho que foi por isso que eu decidi ensinar minha trivela a Janice. Se eles um dia estivessem um diante do outro em uma partida, ela precisaria de alguma vantagem contra as acrobacias de Sorata. Talvez eu só estivesse ressentido pela nossa infância e quisesse garantir que Sorata fosse derrotado quando acontecesse. Talvez eu estivesse só com ciúmes, agindo de forma infantil já que meus melhores amigos eram parte de alguma coisa da qual eu não podia participar. Talvez eu estivesse a fim da Janice. Provavelmente isso tudo. No final das contas, o que importa é que eu comecei a ensinar Janice a chutar com efeito.

Meses depois, estávamos jogando com times mistos e o time de Janice tinha uma cobrança de falta. Ela estava bem perto do gol e percebi que ela tentaria um chute de trivela. Fiquei um pouco preocupado, para ser honesto — ela havia sofrido a falta, uma tremenda pisada no pé. Estava mancando um pouco e eu não tinha certeza se ela conseguiria chutar. Eu sempre me surpreendia com o quão durona ela era.

Prendi a respiração quando ela chutou, atingindo a bola com uma força tremenda, espalhando grama cinzenta para todo lado. O efeito naquela bola parecia com o das lendas que eu havia assistido em blu-ray. Era uma trivela digna de Beckham. Não, era no nível de Beckenbauer. A bola disparou como uma bala de canhão e desviou das mãos de Sorata, deixando-o confuso. Porém, existe efeito excessivo; a bola saiu da direção do gol, direto contra o domo. Após um estrondo alto, seguiu um silêncio perene e ninguém ousava se mover. Ninguém além de Janice.

Janice não correu na direção da parede do domo. Ela mancou até lá, tão rápido quanto podia, jogando o peso no pé bom, cada passo uma agrura. Ela colou as mãos na parede transparente e passou os olhos pela rachadura que crescia. Percebi que estava prendendo a respiração — todos estavam — mas relaxei quando a rachadura parou de crescer. Janice suspirou, abaixou a cabeça e só ficou lá, as mãos na parede, sua silhueta contra a imensidão de areia vermelha do lado de fora.

Eu queria me levantar daquela grama cinza, queria dizer para Janice que tudo ia ficar bem. Queria dizer que era só uma rachadura superficial e eu poderia consertar pela manhã, antes de fazer minha ronda verificando o ar condicionado. Só levaria alguns minutos e não era nada demais, só usar uma pistola de neoplexiglass líquido para preencher a rachadura. Estava tudo bem com a parede e eu tinha certeza que Janice sabia disso. Eu não conseguia entender por que ela parecia tão preocupada. Será que era seu pé? Estava tão machucado assim?

“Ela só… arrebentou,” Janice disse, nem se importando em se virar.

Então percebi a massa de couro branca amassada aos pés de Janice. Olhei ao redor e todos estavam entre surpresos e irritados. Havia uma rachadura no domo, aquela coisa que nos mantinha vivos ao afastar a letal atmosfera de Marte, mas ninguém se importava com isso. O que me preocupava — e eu tenho certeza que falo por todos quanto a isso — era como diabos nós íamos conseguir outra bola de futebol em Marte.

Author: Thiago Rosa

Thiago Rosa está sempre inventando novas histórias. Algumas delas acabam sendo jogos, também. Na maior parte do tempo ele se encontra atrás de um teclado, olhando para uma tela em branco enquanto o desespero se espalha lentamente por todos os níveis do seu ser. Quando isso não acontece, ele rola dados poliédricos para inventar histórias de outro jeito, lê muitos quadrinhos e livros, assiste jogos do Fluminense e toma cerveja de trigo.

2 thoughts on “Trivela

  1. Gostei muito desse conto, me lembrou a boa era dos contos de Ficção Científica que eu lia na minha adolescência, como os trabalhos de Asimov e Clarke. Muito bom!

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