Editado por Carlos Freitas
-Suas chances de vitória aqui são inexistentes, pirata zeemeeana. Jamais alguém entrou em minha casa e saiu para contar a história. Quando você olha para o abismo, o abismo olha de volta para você.
Diva ostentava um sorriso provocativo, a mão relaxada sobre o cabo da espada-cibernética, a pele brilhando na escuridão cavernosa.
— Quem diria que Nietzsche seria mencionado tão longe assim da Via Láctea.
A criatura, enrolada em sua carapaça densa e ancestral, moveu-se para encarar a zeemeeana azulada. Ameg, o demônio de Narzothed, ocupava um antigo santuário destruído naquele satélite arenoso, e sempre que os habitantes mostravam sinais de avanço na agricultura e tecnologia, ele despertava de seu sono para destruir tudo o que havia sido plantado e construído. Ameg chamava de cobrar tributos, mas o povo de Narzothed, supersticioso como nenhum outro, referia-se ao ritual como “o alimento da besta”. São as plantações ou nós. Não estavam errados, Diva pensou. Quão avançada estaria a civilização de Narzothed se não fosse Ameg a fazê-los regredir sempre, conforme os milênios passavam?
Diva sentia a trança bater nas omoplatas e o suor escorrer por seus braços musculosos. As pedras no solo vibravam com a respiração do demônio quase grande demais para o seu covil, a aspereza de seu rosnar era potente o bastante para deixar um ser vivo comum surdo. Mas não Diva.
No entanto, precisava tomar cuidado com aquela criatura. Era sabido que o cérebro ancestral dos Encouraçados possuía terminações nervosas capazes de detectar mentiras. Ela precisava do coração da estrela, mas uma resposta errada e tudo estaria acabado.
— Você ousa vir à minha casa para me perturbar! Ah. Já devorei zeemeeanos antes, todos prepotentes e arrogantes. Lembro do cheiro dos de sua espécie, lembro do gosto. Não é um sabor que eu particularmente adore, mas não desprezo.
— Certo de si, hein? Gosto de derrubar seres invencíveis.
— Minha casca é impenetrável, criatura petulante! Sou capaz de resistir a muitas investidas. Sobrevivi às Guerras Titânicas, das quais nem as estrelas se lembram mais, e ainda estou aqui, capaz de aguentar outro disparo. Você se matou ao entrar em meu covil. O caminho por onde veio, a propósito, é a única saída.
— Hum. Interessante. Eu sou a zeemeeana prepotente e arrogante, certo? Petulante também, esqueci. Mas sabe, acho que você precisa sair um pouco dessa caverna, velho Ameg. O universo mudou muito desde a última vez que alguém tentou dar um chute nessa sua bunda dura.
— Não seja tola! Você está em tremenda desvantagem. Poderia ter um exército consigo e de nada adiantaria, pois sou o Deus deste lugar!
— Deus ou não, antes de tentar me matar, me tire uma dúvida: você sabe cavar?
— Por que eu iria precisar cavar, quando tenho o povo de Narzothed para fazer isso por mim? Cavar, plantar, colher. Não preciso trabalhar. Quando se é o rei do formigueiro, você manda as operárias fazerem tudo a seu bel-prazer.
— Então isso é um não, não sabe cavar. Bem, como você mesmo disse, sua couraça é impenetrável, então não vai morrer de imediato, o que vai ser bem pior, porque você vai ficar preso nesse buraco fedido, soterrado sob rochas. Será o final feliz que o povo de Narzothed sempre quis.
— Uma excelente fantasia, zeemeeana, mas está condenada. Se quisesse mesmo a vitória, teria feito a luta acontecer fora da caverna, não dentro, onde quem tem a vantagem sou eu. A escuridão me torna mais forte, pois sou filho do vazio, a treva é o meu habitat perfeito. Aqui você é uma barata tonta, um verme!
— Nossa, é sério, cara? Você nem percebeu! Diz que não percebeu, vai ser tão mais legal se não tiver percebido.
Ela encarou a vaga silhueta de Ameg na escuridão. Puxou um dispositivo do bolso da jaqueta e abriu uma tampa. Debaixo dessa tampa havia um botão.
Os receptores psíquicos de Ameg vibraram. A criatura sentiu que havia um truque ali, um odor estranho, algo que não condizia com a verdade. Ameg avançou numa velocidade impressionante, como o bote de uma moreia terrena.
— Impossível! — rosnou, erguendo terra e poeira, tentando morder a inimiga diante de si. A imagem de Diva tremeluziu, desfocou e sumiu; Ameg permaneceu exatamente onde a projeção da zeemeeana estava segundos atrás.
O som de uma risada ecoou na escuridão.
— Eu precisaria ser muito idiota para entrar de qualquer jeito na caverna de um Encouraçado. Sério, quanto tempo você ficou aqui? A galáxia de Omega Lux evoluiu muito desde as Guerras Titânicas de que disse ter participado. Tem tecnologia para tudo hoje em dia. Tem até um troço chamado cafeteira que passa café sozinho, é o máximo!
— Como isso é possível?
— É, não é? Café que se passa sozinho é incrível! Mas eu entendo seu espanto, tecnologia para um vovô sempre é de explodir cabeças. Aposto que quando chegou no deserto de Narzothed, era tudo mato.
— Seu humor é desnecessário aqui, verme insignificante. Esse jogo é mais velho que você e eu. Truques vencem algumas batalhas, mas a sabedoria sempre vence mais. E devo dizer, é improvável que saia dessa com vida.
— É um bom argumento, contudo, é um argumento baseado em minha estupidez. Um grave erro, Ameg; nunca te ensinaram a não subestimar seus inimigos?
— Não a subestimo, trata-se da realidade objetiva. Uma zeemeeana sozinha, por mais tecnologia que carregue, ainda é incapaz de vencer um Encouraçado de Omega Lux.
— E estou sozinha?
— Indiferente. Não passam de vermes a serem esmagados.
— Confiante, mas ainda estúpido. Não se pergunta para que o dispositivo com o botão serve? Ou pensou que era para desativar minha projeção ilusória? — Ameg não respondeu a isso. As palavras trancaram em sua garganta. A zeemeeana parecia falar a verdade, sentia o cheiro disso, ainda assim havia algo errado — É um detonador, Ameg. Sabe o que são bombas? Estão armadas contra você. Um movimento do meu polegar e BOOM!
— EU SOU AMEG, O ÚLTIMO DOS ENCOURAÇADOS DE OMEGA LUX, DEUS DE NARZOTHED. Nada tenho a temer, sua tola! Não será você a terminar minha vida milenar! Não você nem tampouco a bomba que diz ter armado contra mim.
Depois do urro veio o silêncio. Ameg não sabia se devia se mover de onde estava, embora estivesse inclinado a isso. Com a estática reverberando nas paredes de pedra, a voz de outro zeemeeano ecoou nas profundezas do covil.
— Desculpe interromper, chapa. Sou Pipo, o namorado da Diva.
Ameg hesitou.
— Só nos seus sonhos, Pipo. Ele não é o meu namorado, Ameg, embora ele queira muito. A gente deu tipo, um beijo… uma vez.
— Ela se faz de boba, mas gosta dos encantos do Pipo — disse uma terceira voz. Era Selma, a amiga terrena de Diva e Pipo. — O lance deles é um baita clichê de novela. E não foi só um beijo, me engana que eu gosto. Diva tem um fraco pelos destilados de Alpha Centauri e não aguenta as cantadas do Pipo com o álcool na mente.
— Mentira isso aí. Se não me lembro, não aconteceu — disse Diva.
— Como ousam debochar de mim…
— Jamais, Ameg, fica sussa, é só para descontrair, aliviar o clima tenso e tal. A Diva não admite o nosso romance e a Selma viaja na maionese. — Pipo soltou uma risadinha. — Bem, a questão é a seguinte: enquanto ela ficava nesse blá blá blá aqui, a Selma terminou de mapear geologicamente as falhas da colina acima da sua toca, e eu depositei um monte de bombas nas fissuras das rochas. Um clique no botão do detonador e são fogos de artifício para todo o lado, a última coisa bonita que vai ver antes de morrer.
— Sabe de uma coisa muito maneira, senhor Ameg? Vou te chamar assim, se não se importa — disse Selma. — Minha mãe era chata com esse lance de “senhor” e “senhora”, sabe? Isso ficou comigo até depois de adulta, não consigo deixar de chamar gente mais velha de senhor ou senhora. Então, a coisa maneira. Sabe o que é maneiro, senhor Ameg?
— Chega de mistério, gente — disse Diva. — Tenho certeza que “O Último dos Encouraçados” tem mais o que fazer.
— Sabe o que é maneiro? — insistiu Selma.
— O quê? — perguntou Pipo.
— Era para o senhor Ameg perguntar, Pipo. Não você. Você já sabe.
— Sei do quê?
— Da Diva.
— Eu sei muitas coisas da Diva. Vai ter que ser beeeem mais específica.
— Eca. Eu não estou a trocentos quadrantes da Terra para ouvir das mesmas nojeiras. Eca mesmo. Vocês não fizeram o que eu estou pensando que fizeram, né?
— A gente já fez muitas coisas juntos — disse Pipo, sorrindo.
— Muito obrigada por colocar a imagem na minha cabeça, Pipo. Que nojo.
— A questão é a seguinte, Ameg — Diva interrompeu bruscamente. — Vou entrar no seu covil para pegar o coração da estrela que você esconde sob sua carapaça. Vamos usar a energia estelar como núcleo para a nossa nave, consertar o problema da tração cósmica e adeus Omega Lux. Então é só nos dar o que queremos e Narzothed novamente será toda sua. Simples, não acha?
— Quando entrar em meu covil — Ameg sibilou. —, deleitar-me-ei em sua morte. Deleitar-me-ei nas lágrimas e lamentos de seus amigos. Depois eles serão os próximos!
— Hum. Acho que ele não ouviu a parte de explodir tudo — disse Pipo.
— Claro que não. Você e Selma ficaram falando patavinas. Ele deve ter ficado confuso — disse Diva.
— Agora a culpa é minha? Culpe o seu namorado que ficou falando das nojeiras que vocês fazem quando não estou perto — Selma retorquiu. Pipo deu uma risadinha. — Viu só?
— Ameg, mil perdões. Queremos dizer que, se as bombas explodirem, você não vai morrer pelas explosões, mas soterrado.
— Tolice! Mesmo que planetas caíssem em cima de mim, eu seria capaz de resistir ao impacto. Sou o último dos encouraçados!
— É, você já disse isso, cara. — Diva revirou os olhos. — Perdeu o efeito maneiro quando repetiu para impor medo.
— Diva tem razão — disse Pipo. — Repetir o rolê é zoado. “Eu sou isso e sou aquilo” não cola. O que vale são as atitudes, sacou? O gingado de malandro, a cara de malvado (mas o coração bonzinho).
— Além disso, Ameg, acho que não compreendeu a gravidade da sua situação. Não é a queda das rochas que vai te matar. Por isso perguntei se sabia cavar. Pode resistir ao impacto, porém não vai resistir à fome nem ao ar faltando. Caramba. Devo estar dando soco em ponta de faca aqui… conta aquela história pra ele, Selma. Ela exemplifica bem o que estamos tentando dizer.
— Ah, sim! Senhor Ameg, já ouviu falar dos Doze Trabalhos de Hércules?
Ameg continuava num silêncio taciturno. Esperava para ouvir o que os inimigos tinham a dizer antes de fazer outra investida. Falavam tolices na maior parte do tempo, mas precaução nunca era demais. De todos os Encouraçados de Omega Lux, Ameg era o mais precavido, também o de temperamento menos explosivo. Justamente por isso sobrevivera tanto tempo. A zeemeeana dissera que ele a estava subestimando, mas Ameg jamais faria isso. Não era de sua natureza.
— Hein, senhor Ameg, essa história é velha pra caramba lá na minha colônia natal. É longe, Via Láctea e tal. Está a uns vários quadrantes daqui. Pois bem, veja só, lá nos Doze Trabalhos de Hércules, tem um cara que se chama Hércules (dã) e ele tem vários trabalhos porque matou a própria esposa e filha num ataque de raiva e ele se sentiu bem culpado, sabe? Esses trabalhos são meio que uma forma de pagar os pecados por isso.
— Hum — fez Ameg.
— Os Doze Trabalhos eram uns negócios absurdos de difíceis. Num deles Hércules teve que capturar o Cérbero, um cão de três cabeças que guardava o Tártaro, o lugar para onde os seres vivos vão quando morrem… esses são detalhes que não importam agora. O feito, no entanto, ainda assim é impressionante. Também teve a Hidra de Lerna, uma serpente que ao ter a cabeça decepada, duas nasciam no lugar. Nessa batalha ele teve ajuda do sobrinho dele, Iolau, que cauterizava as cabeças arrancadas para não nascerem outras no lugar. Outra grande façanha, porque a Hidra de Lerna cuspia veneno e era imensa. Hércules foi muito corajoso ao lutar contra ela.
— Onde quer chegar com isso?
— Calma, senhor Ameg, eu só estava explicando quem era Hércules para você compreender o personagem! — Selma limpou a garganta. — De todos os trabalhos dele, qual nos interessa, é o trabalho em que ele enfrentou o Leão de Nemeia.
— Presta atenção, Ameg — disse Diva. — é muito importante que entenda essa parte.
— O Leão de Nemeia era imenso, tinha presas assustadoras e um rugido que botava todos para tremer. E Hércules era forte, tinha a força de cem terrenos se não me engano, ou era mil? Ah, não importa. Ainda assim, Hércules não conseguia dar cabo do Leão de Nemeia, porque olha só, o Leão de Nemeia tinha esse lance de ter a pele dura, impenetrável, completamente diferente de qualquer outro leão da Terra. Acontece que Hércules tentou de todos os jeitos matar o Leão de Nemeia e não conseguiu, então, quando fracassou em tudo, encurralou o animal e o sufocou. O Leão de Nemeia podia ser “casca grossa”, mas o que adianta ser durão se não consegue respirar?
Ameg não respondeu. Uma jogada velha, mas muito efetiva contra adversários. Uma vez que se extravasa, o inimigo sabe como você está pensando, mas o silêncio pode significar muitas coisas. Ele podia estar com medo, pensativo, indiferente. Não tinham como saber. O Encouraçado podia não ser inteligente, mas era ardiloso, Diva logo percebeu. Ela desenroscou um cantil com conhaque de Alpha Centauri, deu um gole e abriu o canal de comunicação privada entre os piratas:
— Vou entrar. Se ficarmos aqui enrolando, vai dar ruim eventualmente. Ameg pode acabar perdendo a paciência e só as estrelas sabem o que esse demônio é capaz de fazer.
— Não seja imprudente. Espere para ver o que ele tem a dizer — disse Selma.
— Ou ele nos dá o coração da estrela ou não dá. Se ele me atacar lá dentro, só significa que não vai dar o que queremos, obviamente. E se eu não entrar, mesmo que eu não morra lá, vamos morrer aqui. Zero chances de resgate.
— É uma má ideia, Diva — disse Pipo, sério. Não era de seu feitio ser tão apreensivo.
— Se vocês têm uma ideia melhor, falem, estou ouvindo.
— Não quero que morra — disse Pipo.
— E eu não quero morrer, mas não temos escolha.
— Eu vou no seu lugar — disse Pipo. — Fique aqui com a Selma.
— Você é o nosso engenheiro, Pipo — disse Selma. — Eu e Diva somos dispensáveis, mas você precisa ficar vivo para consertar a Andorinha. E eu nem sei o que é o coração da estrela. Se você pegar uma pedra de Narzothed e me disser que é o que precisamos, eu acredito.
— Ela tem razão, Pipo. É você quem vai consertar a Andorinha para darmos o fora daqui. E sou eu quem deve encarar Ameg. Sou a mais dispensável de nós. Selma sabe pilotar uma nave como ninguém. Nem isso eu sei fazer direito. Querendo ou não, sou a inútil do grupo. Só sei beber e atirar com minha blaster em vagabundos trapaceiros. E minha blaster está descarregada, nem nisso posso ajudar.
— É a melhor lutadora de nós — disse Pipo.
— Pode ser, mas manejar a espada-cibernética nos ajuda agora? Não contra um Encouraçado.
— Cara, por que a Andorinha foi dar pau logo aqui? — lamentou Pipo, agachando-se. Como um menino, começou a rabiscar linhas na areia com o dedo.
Diva abriu o canal de conversa para Ameg. Ouviam apenas o rosnar barulhento do gigante casca grossa, autointitulado Deus de Narzothed.
— Estou entrando na caverna, Ameg. Espero que seja gentil comigo e seremos gentis com você. Se eu perder o contato com meus amigos por poucos segundos, eles vão acionar os dispositivos e te deixar aqui soterrado para morrer sem ar. Lembre-se bem da história do Leão de Nemeia. Nós somos Hércules, você o leão.
— Pois se o que almeja é a morte, venha até mim!
Diva congelou na entrada do covil, a luz dos dois sóis de Omega Lux fez projetar uma sombra bem delineada da zeemeeana dentro da caverna. Ameg podia vê-la tremer. O demônio gargalhou, a confiança do trio não era aquilo tudo.
O coração da estrela, na verdade, não representava nada à criatura, mas apenas o fato de ser a salvação para o trio de piratas, deixava-o irritado. Vieram pomposos com um plano de lhe fazer parecer idiota; zombaram de sua ignorância; da idade; querendo lhe tomar o único bem material que adquiriu em troca da vida. Como poderia aceitar isso? A história do Leão de Nemeia, no entanto, era boa, deixou-o impressionado. Vira milhares de Encouraçados sucumbirem ao espaço sideral após terem o tanque de ar destroçado. A explosão do covil com certeza seria o seu fim e, com mais certeza ainda, era o que o povo de Narzothed ansiava. Ameg, então, viu-se num impasse, e odiava isso, odiava mesmo. Já tivera muitos tolos lhe pressionando em sua toca para ter o coração da estrela, mas poucos tão bons quanto o trio. Seria um blefe? Estaria velho demais para contar com sua habilidade de cheirar mentiras? Talvez se pudesse fazê-la falar mais, captar alguma coisa. A espada trêmula da zeemeeana podia ser puro medo de uma criatura superior, ou o temor de ser pega mentindo.
— Que foi, Ameg, está inseguro?
— Eu poderia dizer o mesmo. Você estava certa de si e agora parece que vai se urinar.
— Covardia não é um dos meus defeitos, garanto. Mas, e aí? Vai me dar esse coração de estrela ou a gente vai ficar se encarando até ver quem pisca primeiro? Eu sou boa em não piscar, já até ganhei concurso disso.
— Diga-me, zeemeeana. Como vieram parar em Narzothed?
— Tem a ver com um crocodiliano. Longa história.
— Tenho tempo de sobra.
— Eu sei o que está tentando fazer, Ameg. Não vai funcionar. Você não vai me fazer cair em contradição. Não há contradição, aliás.
— Tenho minhas dúvidas.
— Dúvidas ou não, quanto mais ficarmos aqui batendo papo, mais vamos perder tempo. Até onde sei, você tem um povo para punir depois da nossa decolagem. Já meus amigos e eu temos naves e planetas para assaltar. A vida é como ela é, mas nenhum de nós precisa morrer por causa de birra. Queremos o coração da estrela e já era. Que tal fazermos uma trégua?
— Que tipo de trégua?
— Uma que ninguém ameaça tirar a vida de ninguém, para começar.
— Tudo bem.
— Ótimo, então me dê o coração da estrela, por favor.
— Muito fácil pedir, estou perdendo nessa “trégua”.
— Como perdendo? Em troca eu não explodo o seu covil.
— O problema é esse. Nada garante que ao dar o coração da estrela, vocês não me matarão. Não há honra entre ladrões.
— Você é cheio dos clichês terrenos, Ameg, alguém já te disse isso? Bem, pense comigo: se você entrega o coração da estrela e a gente detona as bombas, você morre. Se você não entrega, a gente detona certamente. Nessas duas situações você morre, só que há a situação em que você sobrevive, basta colaborar. É uma chance em três, concordo, mas antes uma do que nada.
— Você tem 50% de sobreviver a isso — Pipo disse.
— A tua matemática é uma tragédia, cara — Selma revirou os olhos. — Não tenho ideia de como virou um engenheiro espacial.
— É 33% e uns quebrados as chances de sobrevivência — Diva disse. — Não é muito, mas é alguma coisa. O que me diz?
Silêncio.
Ameg pensava. Por fim falou:
— Talvez eu queira tomar a decisão errada.
Diva nada disse depois disso. Não havia opção para ela que não entrar e voltar com o coração da estrela.
— Capitã, volte — Pipo disse ao vê-la mergulhar na escuridão. — Diva!
Fez que ia até ela, mas Selma o impediu. O sol castigava e em não muito tempo a noite de Narzothed cairia sobre suas cabeças.
Houve um silêncio sepulcral depois disso, e muito tempo se passou com Pipo e Selma chamando por Diva no comunicador. Ela não respondia, era como se não houvesse ninguém no outro lado da conexão. Pipo pegou o detonador, mas Selma o segurou.
Com lágrimas nos olhos, Pipo disse:
— Não me torture, Selma. Diva está morta. Ameg tem que morrer!
— Se Diva está morta, por que é que Ameg não nos atacou ainda? Tenha fé. Acredite que ela vai voltar!
Estática. Silêncio. Estática. Mais estática.
O vento soprou forte, levantando uma poeira áspera que lixou o rosto de ambos. Quando deram por si, viram Diva saindo da caverna, jogando para o alto e pegando no ar uma pedra azul-ciano. Ela assobiava.
— Eu sei, eu sei! — A capitã do trio se desculpou ao ver as lágrimas nos olhos dos outros dois. — Eu derrubei o comunicador na caverna e o perdi.
Pipo caiu sentado no chão e berrou alto.
— Não me assuste assim nunca mais!
Selma abraçou Diva e riu alto, dando pulinhos.
— Ai que bom! Que bom que está viva. Que bom!
— Comovente o amor de vocês por mim, mas não temos tempo a perder. Pipo, pega esse treco aqui e arruma logo a Andorinha. Ameg cedeu um fragmento do coração da estrela, mas eu quase tomei uma dentada no processo.
— Fragmento? — Pipo estranhou. Ainda tinha lágrimas nos olhos.
— É. Isso aí é só um pedacinho. O coração da estrela é bem maior. É uma estrela, né. Eu não ia conseguir trazer inteira nem que quisesse muito.
— E esse tanto serve? — Selma indagou.
— É para servir — Diva disse. — Não vou entrar lá de novo nem ferrando.
Pipo correu para fazer o conserto da nave e levou a noite de Narzothed inteira para fazer o núcleo energizar e devolver a tração cósmica. Com isso, Selma fez a Andorinha decolar, e o trio, finalmente, saiu daquele lugar horrível.
Não deram tchau para o inimigo, mas cumpriram a palavra. Não acionaram o detonador. Assim que Ameg ouviu o som da nave pirata partindo, respirou fundo e preparou-se para sair de seu covil. Alguém teria de pagar pela sua inconveniência, e o povo de Narzothed existia para isso. O colosso insectoide ergueu-se em suas quatro patas, imponente, a casca marcada por incontáveis batalhas, um sobrevivente das Guerras Titânicas. Mas antes que pudesse se mover, uma sequência de explosões rugiu, seguida de uma pressão monumental que caiu sobre sua couraça, paralisando-o. A caverna fechou-se como uma tumba, e ele sufocava sob milhares de toneladas de rocha, terra e areia.
— Malditos piratas! Malditos sejam eles!
Já em hipervelocidade, Diva gargalhava junto dos dois amigos. Não tinha mentido ao dizer que eles não detonariam as bombas, mas não falou nada sobre darem o detonador para o povo de Narzothed.