Um diálogo entre as cabeças embalsamadas de Lampião e Maria Bonita expostas ao público no Instituto Médico Legal Baiano, primeira metade do século XX

Tradução de Anna Martino

Talvez o que mais me dê saudade,

meu amor, é o jeito que cintilam teus olhos

na luz de mira do meu Winchester. Estas bolas de gude

em teu crânio são uma desculpa fraca para a precisão fatal

de tua íris à beira do cano. Tua beleza uma bala

que nem lampião poderia impedir, embora pudesse passar

o resto deste sono perpétuo galopando atrás dela

só para ver um fiapo da escuridão

em tuas pupilas

 

Mas o que há para se ver?

Pois nem na morte te deixei.

Você soa como um macaco

cortejando chamas que dançam xaxado

e você, mais que todos, deveria saber

o custo da palma queimada

de punho vazio.

 

Conheço apenas um preço e o preço é tu, bela.

Estar a teu lado neste lugar é um pouco mais que uma piada funesta

sendo que o sertão foi a aliança que te dei de casamento

e a caatinga o teu dote. Que tipo de amor

poderia ser comprado aqui com nossos lábios vazios

e nossos pescoços cosidos como um alforje?

 

Não tivessem cortado esta língua

eu cantaria as modas de nossa memória.

Deixar que ouça os doces sons da glória

em serenata aos fantasmas de nossos adversários

como um assobio agudo de Lugar

 

Diga-me, que glória tem um homem sem cabeça?

Cujo corpo mofa e tudo acima da goela persiste

para entreter os passantes? Tu não vê

como eles se riem com um braço estendido e

sorriso banguela?

Como nos chamam de criminosos? Não existe rememoração

de nossos atos. Só o excesso inchado

de nossos rostos deformados.

 

É verdade que estes corpos

são efêmeros, mas não há poder em um homem

que resiste muito além de seu último suspiro?

Nossos nomes ecoam nas escarpas da Serra do Araripe

até as ilhas de todos os santos. De que vale a lealdade em vida

se não podemos capturar corações na morte?

 

Corações só valem tanto quanto

O tostão do coronel ou o que o chumbo consegue comprar.

Não foi o que meu pai aprendeu quando a dívida foi cobrada?

Não foi como nos vimos cangaceiros, um bando de devedores

se recusando a pagar segundo as regras que nos escravizam?

E veja, mesmo agora parecemos pagar diariamente

com a repetição desta performance grotesca.

 

Quer homenagem maior a um cangaceiro que esta?

Crucificar-se nas mãos de Judas

para que a lenda de sua insubordinação soe sincera.

Se não consegue descansar em paz,

será que sabe mesmo

pelo que você morreu?

Author: Woody Dismukes

Woody Dismukes é americano-brasileiro, poeta, autor e músico. Mora em Nova York, é graduado pela Clarion West (2018) e foi professor na University Settlement’s Creative Center. Já foi publicado pela Lightspeed, Apex, Strange Horizons, entre outras.

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