Sashi sentia o corpo quente, grudando de suor, como se pesasse uma tonelada. Um vento poeirento batia em seu rosto. O mundo à sua volta tinha desaparecido com a explosão nuclear, seguida por um flash e uma forte onda de calor. As construções viraram poeira no ponto zero e danos estruturais se sucederam ao redor como se as construções fossem de papel. Vidros espatifaram. Telhados voaram. Robôs pararam de funcionar e ela sabia que Cão 1 estava desaparecido.
Recolhendo os membros com cuidado, como se pudessem se quebrar e se partir, Sashi tentou se mexer para entender seu espaço. Estava desconfortavelmente encaixada entre duas paredes escoradas e se espremeu o quanto pôde para escorregar e cair no chão um metro abaixo. Tossiu a poeira que grudou em seu rosto e soltou o clipe que mantinha seu pesado rifle de assalto preso ao corpo. Deitou-se nos escombros caóticos de uma velha construção de pedra e olhou para o céu. Podia ver o braço da galáxia salpicado de estrelas brilhantes por entre a fumaça, o pó e as nuvens. Uma visão de beleza em meio à destruição… Era possível ouvir o ruído causado pelo vento, aqui e ali alguma construção caía, nenhuma voz presente.
Olhou para o próprio corpo. Sua roupa de tecido inteligente tinha conseguido bloquear boa parte da onda de choque, o que explicava os poucos ferimentos. Respirou fundo algumas vezes. Não, nada quebrado. Apertando um ponto atrás de sua orelha direita, ela liberou nanomeds, médicos de escala nanométrica que faziam cirurgias em nível molecular e tinham ação analgésica e anti-inflamatória na corrente sanguínea. Usados em casos graves. Se tivesse uma hemorragia interna, eles resolveriam o problema. Sentiu o corpo relaxar imediatamente e seu mundo se apagou mais uma vez. Os nanomeds faziam isso quando havia sinais de lesão cerebral.
No susto, Sashi acordou novamente, de um pesadelo do qual não se lembrava. O céu tinha tons de púrpura, azul claro e cinza, prestes a amanhecer. O vento ainda era ouvido. Sentou-se, olhando em volta para o caos de escombros, sem entender direito o que tinha acontecido. Ah sim… A explosão nuclear. Em seu braço direito, um leitor de radiação embutido na roupa avisava que ela estava bem. A velocidade do vento indicava que a nuvem seguia para longe de sua posição, para o norte e para o leste. Se permanecesse naquela área, estaria bem. Mas onde estaria Cão 1? Perto da radiação? Perto do ponto zero? Difícil saber.
Pendurado em sua roupa, seus óculos especiais estavam danificados. Chegou a testá-los, mas as imagens espectrais falhavam e uma tela de erro persistia. Soltou o cabo e jogou os óculos a esmo. Bela merda… Olhou para o corpo. A roupa parecia ter reencontrado a funcionalidade, pois voltara ao tom de camuflagem de antes, não piscava mais enlouquecidamente. Fechou os olhos e acessou seu chip interno. Parecia intacto. Os biochips eram praticamente invulneráveis e resistiam a tudo, inclusive explosões nucleares. Felizmente resistiam, pois sem ele era incapaz de achar Cão 1. Porém, para sua infelicidade, seu comunicador subcutâneo não funcionava. Teria que achar um rádio em algum blindado, se é que algum ainda funcionava.
Seu pesado rifle estava com o visor quebrado. No choque, na queda, provavelmente. Mas estava funcionando, o que era bom, pois a tela acendeu e a arma engatilhou normalmente. Sentindo o corpo dolorido, mas pondo-se de pé, Sashi tirou a poeira dos cabelos vermelhos e limpou o rosto numa torneira que ainda tinha água vazando ali perto. Bebeu generosos goles d’água e olhou para cima, analisando seu espaço. Viu que estava em um buraco razoavelmente protegido de qualquer tropa inimiga. Talvez por isso ainda estivesse viva. Colocou o rifle nas costas, para ficar mais fácil se mover, e começou a subir os escombros. Escalava com relativa facilidade, afinal seu trabalho era de especialista. Especialista Sashi era da unidade de infiltração da infantaria. Era mais que acostumada a lidar com terrenos difíceis e combates no chão. Aliás, não havia terreno difícil para estas unidades.
Ao chegar ao topo, sua visão era de total caos, desolação, corpos e ruínas. Tanques virados, robôs enguiçados e despedaçados, soldados abatidos, torpedeiros vazios. Sashi combatia os destruidores da paz e da tecnologia, as bases da fundação do Regime. Defendia Becah 1, sua cidade e seu 1 bilhão de habitantes. E temeu pelos companheiros ao ver tal cenário. Rebeldes… sempre levando tudo às últimas consequências.
Não que o campo de ruínas fosse muito diferente de sua vida antes de ser recrutada. Órfã, sozinha num mundo que vivia sob tensão, o que lhe restava era o dever. Podia ser tacanha em algumas coisas e até muito obediente. Sabia que volta e meia defendia demais o Regime, mas achava que devia isso a ele. Era assim que tinha abrigo, comida, respeito e uma carreira, algo que muitos cidadãos não tinham ao desertar do serviço militar obrigatório.
Havia focos de incêndio à vista. Um cano estourado jorrava água feito um gêiser. Um vapor quente e poeirento varria o que antes era uma grande cidade que, apesar de estar em declínio havia vários anos, se lançou num conflito contra Becah 1. Porque, Sashi não entendia muito bem, apenas sabia que a briga não era de hoje. Admitia agora que era um erro não saber o porquê do conflito. No horizonte, ela via o cogumelo distinto, escuro e alto da bomba nuclear contra um céu colorido de amanhecer. Seu sensor de radiação continuava indicando baixos níveis.
Sashi desceu os blocos de paredes, lajes, telhados, móveis e equipamentos industriais, desviando de armações e armadilhas que poderiam machucá-la ou matá-la numa queda rumo ao desconhecido. Explosões de grande porte sempre causavam danos estruturais intensos. Se a ideia era desbaratar qualquer tentativa de resistência inimiga, o Regime conseguira. Sashi não viu nada nem ninguém enquanto percorria as ruínas.
Aliás, não vira nada reconhecível. A onda de choque deve tê-la jogado para longe de sua posição original. Seus óculos ajudariam naquela situação se não estivessem imprestáveis. Vagou um tempo sem muito rumo, tentando achar alguma coisa familiar, seguindo pelas antigas ruas, desviando aqui e ali de um veículo abandonado. Corpos pelos escombros. Viu vários, mas eram de habitantes. Subindo uma pequena escada, que era tudo o que restava de um prédio, ela observou ao redor mais uma vez. Pondo-se sobre um joelho, Sashi ajeitou seu rifle e observou com a mira para enxergar mais à frente de onde possivelmente saiu voando. Conseguia ver algumas paredes em pé, de prédios baixos da área residencial. Viu veículos virados e mais corpos. Infelizmente, eram de companheiros. Seguiu com a mira indo de leste a oeste, vendo torpedeiros e cortadores virados e um braço mecânico que ainda tentava se mover. Parecia um Meca… E era um Meca!
Animada e sem perder tempo, ela saltou para o que restava do asfalto e começou a correr. Parou alguns metros antes do grande robô. Não era Cão 1, era Cão 4, destruído e sem chance de recuperação. As pernas foram cortadas, a blindagem tinha sido atingida por algum míssil. Sabia que os inimigos canibalizavam as peças de todos os Mecas de Becah 1, que eram os robôs de combate mais avançados que existiam, para usar em seus próprios robôs. Operados por interface neural, tinham cerca de 70 metros de altura, armamento pesado, capacidade para funcionar como bateria antiaérea e uma armadura quase impenetrável. Quase, porque nem tudo é imbatível.
Vendo que o perímetro estava seguro, Sashi se aproximou do Meca. O cockpit estava destruído e a porta estava semiaberta, ela só precisou empurrar para cima. O operador do Cão 4 estava morrendo lá dentro, por isso os dedos da mão robótica ainda se moviam. Era um rapaz do mesmo batalhão de Aodh, muito bom no que fazia, mas parecia em muito mau estado. Escoriações, olhos roxos, sangue escorrendo em profusão de sua cabeça. Ao apertar o ponto atrás de sua orelha, não o sentiu. Os nanomeds tinham sido liberados havia algum tempo. Sashi sacudiu a cabeça, sabendo que se ele não tivesse resgate, logo morreria e o transponder da unidade não respondia. Observou o cockpit e viu que o painel estava apagado, o que a impedia de usar o rádio para falar com Becah e chamar ajuda.
Mecas são realmente estruturas fantásticas. Mas sua maior fraqueza estava nas juntas das pernas, os joelhos. Para conseguir derrubar um robô desses era preciso cortar as juntas e impedir que ele andasse. Era um ponto cego e delicado para o Meca. Por isso existiam os cortadores, que eram robôs próprios para cortar, como diz o nome, as conexões e cabos que movimentavam o titã de metal e o mantinham longe do chão. Os inimigos também tinham suas próprias versões de Mecas e, portanto, as lutas eram sempre grandiosas. Uma vez caído, era mais fácil torpedeá-lo.
Sashi era uma especialista, portanto ela ia no chão. Sua responsabilidade em grandes batalhas era sempre apontar locais de explosão, abater cortadores, roladores ou soldados que se aventurassem a acessar os Mecas manualmente. Era insano, mas acontecia. Eles tentavam hackear o sistema autônomo e assim matar o ocupante do cockpit. Sashi era a escolta de Cão 1 e, desta maneira, era sua responsabilidade impedir danos ao Meca e resgatar o operador.
Um chiado em sua cabeça a fez parar. Seu comunicador parecia estar se restabelecendo ou alguém tentava se comunicar com ela.
— Falcão? — Ela perguntou ansiosa — Falcão, aqui é Águia 1. Alguém na escuta?
Nada no comando da missão, apenas ruído. Mudou de canal por meio do seu biochip.
— Meca 1, é Águia 1, na escuta? Aodh, está me ouvindo?
Nada mais uma vez. Mas que merda, Aodh…
O cogumelo permanecia ali, no ar.
Um barulho a assustou. Apontou o rifle, instantaneamente, para o local, um ato já instintivo. Era um raspar, alguma coisa lutando para sair, se mexendo no interior de uma casa caída. Com o dedo no gatilho, Sashi respirou fundo e estava prestes a atirar, de olho na mira, respiração pausada, quando um focinho saiu pela janela disforme, cheirando o ar. Um porco das planícies. Desgraçado.
Ele a observou por um instante, curioso, querendo saber o que tinha acontecido ou o que tinha feito. Sentiu o cheiro do seu suor, claramente não o agradando, e seguiu pela rua asfaltada, por entre os veículos virados. Sashi deu um risinho nervoso e foi então que ouviu vozes. Estavam perto demais dela para fazer alguma coisa e ela permaneceu quieta em seu lugar. Quatro soldados armados se aproximaram a pé de Cão 4. Usavam máscaras, provavelmente por causa da radiação. O medidor no braço de Sashi subiu um ponto com a chegada deles. Vieram com equipamentos próprios para retirar peças, o núcleo de memória, armamento e bombas do Meca.
Agradecendo o porco em silêncio – afinal, estava abaixada e protegida da visão deles porque quase o abateu – a especialista esperou em silêncio, com o coração martelando no peito, ouvindo os rangidos metálicos e as ferramentas funcionando. O corpo do operador foi retirado e rolado para longe dos equipamentos, para dar espaço. Via que ele respirava com dificuldade, mas ainda estava vivo, sinal do progresso dos nanomeds em manter seu cérebro oxigenado e lutando. Cretinos…
Olhando por cima dos escombros, Sashi viu que os quatro inimigos estavam de costas. Um dentro do cockpit, os outros três soltando as armas dos braços e do corpo de Cão 4. Num ímpeto, movida pela fúria, pelo cansaço e pelo corpo do colega no chão, Sashi se ergueu e tudo pareceu se mover em câmera lenta por um momento. Sua precisão era admirável. Um após o outro, em curtos segundos, os três soldados do lado de fora caíram imóveis no chão, largando peças e chaves de fenda. O quarto, dentro do cockpit pareceu não entender o que via e chamou os amigos. Mas ele teve a rapidez e a indecência de se abaixar quando viu a mira apontando para sua cabeça e começou a disparar contra a posição de Sashi. Não vai fugir não, maldito.
Buscando refúgio atrás do que restava de uma escadaria, a especialista apurou os ouvidos. Buscou dados do seu biochip e conseguiu triangular a posição dele. Fechando os olhos, conseguiu ver que ele tentava circular a escadaria para poder vê-la. Tinha uma arma de mão, mas fora isso nada mais que pudesse usar. Podia ouvir os pedriscos rangendo com os passos dele.
De um bolso que parecia oculto na roupa camuflada, ela puxou finas granadas, que imitavam a cor do ambiente onde estavam. Assim que ela as jogou no chão poeirento perto do inimigo, elas ficaram imperceptíveis. Essas granadas também eram atraídas pelo calor do corpo ou do equipamento e Sashi o ouviu praguejar quando as duas grudaram em suas pernas, que voaram pelos ares, acompanhadas de um grito louco de dor. Antes que desmaiasse, a especialista foi até ele. Era uma visão patética e terrível, um corpo destroçado, uma pessoa lutando para respirar o máximo que podia, rodeada por sangue e poeira, os tocos das pernas perdendo sangue.
— Quero uma informação de você. — Ela puxou sua máscara.
O homem a olhava amedrontado. Tinha sangue saindo pelo nariz e tinha o rosto contorcido de dor. Tentando reagir de alguma forma, ainda de posse de sua arma, ele tentou erguer o braço para atirar, mas Sashi pisou em seu pulso.
— Eu quero Cão 1. Você o viu?
Balançando a cabeça nervosamente, ele balbuciou que não.
— Não me faça perder a paciência, cadê Cão 1? Você o viu? Desmantelou o Meca também?
— … Não… Não, eu juro. Juro! Por favor, me ajuda.
— Onde estão os Mecas? Esse é só um, nós tínhamos dez em combate, cadê o resto?
— … Não sei, eu juro! Seis deles deram as costas e voltaram para Becah!
— Como é? — Sashi achou ter ouvido mal.
— Eles voltaram, seis voltaram, eu juro, por favor, não… Não me mate!
Puxando o mapa de batalha da memória do bioship, ela visualizou a posição dos Mecas em campo uma hora antes da explosão da bomba. Cinco Mecas estavam na dianteira, enquanto os outros cinco permaneciam atrás, na função de baterias antiaéreas.
— … Vocês fizeram isso! — Ele ralhou — A bomba é de vocês, nós não temos esse tipo de tecnologia, vocês sabem!
Sashi o desarmou e soltou seu pulso. Olhando novamente para o cogumelo escuro no ar, não podia deixar de pensar no que acabara de ouvir. A bomba era de Becah? Mas como puderam fazer isso contra suas próprias tropas? Certamente, a bomba destruiu completamente a capacidade do inimigo de atacar e agora os abutres recolheriam peças e armas pelo campo. Terroristas compravam armamento no mercado negro. Mas quem os vendia? Olhou novamente para o homem que parecia estar entrando em choque. Ele buscava sua arma que estava mais distante.
— O que vocês fazem com o armamento que roubam?
— … O quê? — Ele a olhou com lágrimas e dor estampados no rosto.
— Vocês roubam os Mecas e as armas aparecem no mercado negro…
— Compramos comida com o armamento, sua idiota! — Ele começou a tossir sangue e desistiu da arma. — Comida… Só isso.
Nunca sinta pena do seu inimigo, Sashi se lembrou do treinamento básico da academia. Eles farão de tudo para confundi-la, essa é a principal função deles. Confundir, separar, desordenar. Porém, como não acreditar nisso? Quantas vezes Sashi participou de missões para desbaratar mercados de compra e venda de armas e se deparou com pessoas famintas, famílias inteiras negociando cápsulas que eram recicladas e sempre valiam alguma coisa? Ela fingia não ver e cumpria suas ordens.
De um bolso lateral, a especialista tirou uma pequena seringa contendo nanomeds e um líquido anti-inflamatório e analgésico. Se ele fosse resgatado e pudesse ser levado a um hospital decente, teria suas pernas de volta. Ela aplicou em seu pescoço e ele logo relaxou e apagou.
Com pressa, Sashi arrastou o corpo do operador de Cão 4 pelo braço para uma posição protegida e longe de olhos bisbilhoteiros. Ele estava vivo e os nanomeds se encarregariam de mantê-lo assim. Com o mapa em mente, mesmo que desatualizado, ela jogou uma granada dentro do Meca e seguiu pela rua poeirenta. Precisava de um veículo, qualquer um que funcionasse. Não poderia procurar Aodh daquele jeito a pé, a nuvem de radiação poderia voltar de repente para sua posição e não teria como fugir.
Acabou por achar um jipe de campanha. Uma armação, destas de construção, estava por cima dele, mas a especialista conseguiu jogá-la de lado. Tirou os escombros de dentro e viu sangue num dos bancos, mas não viu corpo algum. Tocou o painel e ele acendeu lindamente. O jipe não tinha portas, nem teto, parecia um veículo de remoção. Mas servia.
Segurando os controles, Sashi deu ré no veículo para tirá-lo do monte de ruínas onde estava antes estacionado e prosseguiu por uma via paralela. O nível de destruição aumentava conforme se aproximava do ponto zero da explosão. Era como se um deus furioso dos tempos antigos tivesse soprado com toda a força, para todas as direções. Não havia mais estruturas grandes o suficiente para esconder alguém. Nem viu tropas, soldados perdidos, nada.
O medidor de radiação subiu mais um nível. Nada ainda letal, mas precisaria de limpeza ao chegar em Becah 1. Não saía de sua cabeça a revelação sobre a bomba. Àquela altura, tudo poderia ser possível. Apenas não entendia o que aquele homem ganharia mentindo, estando na condição em que estava. Uma coisa era certa, os inimigos não tinham tecnologia nuclear, não tinham a condição de desenvolvê-la. A questão era conseguir os equipamentos praticamente prontos, já que o bloqueio de Becah era extremamente restritivo, impedindo a chegada até de equipamentos agrícolas. Como podia lutar por algo que nem sabia o que era? Sashi começou a perceber que talvez estivesse defendendo uma bandeira suja de sangue e mentiras. Mas era o único mundo que conhecia, como mudar algo tão poderoso?
Uma grande estrutura escura às sua frente chamou sua atenção. Ela desviou o jipe para perto e era Cão 2. Estava depenado e o operador não estava lá dentro. Perto das pernas cortadas do Meca, ela viu Águia 2, sua escolta, morta com uma bala na cabeça. Duzentos metros adiante, Cão 3 se movia, ou tentava se mover, levantando uma nuvem de poeira. O rádio começou a chiar novamente, mas nenhum som inteligível saía dali. Saltou do jipe com pressa, atenta aos arredores, e circundou o Meca. Quando se aproximou do cockpit quebrado, viu que o operador estava se mexendo ainda, mas seus olhos estavam fechados, sangrando.
— Cão 3?
— Quem? Quem está aí?! — Ele disse assustado.
O Meca apontou um canhão para o nada, bem longe da posição de Sashi.
— Águia 1, calma. Está tudo bem.
— Ah, puxa, como é bom ouvir a voz de alguém. Meu rádio não funciona.
— Nem o meu. Você pode andar? Cortaram as pernas?
— Não… Eu fui pego pela onda de choque e uma porrada de escombros. Acabei caindo numa garagem subterrânea… Mas não posso ver. A explosão… A luz queimou meus olhos… Vejo apenas umas manchas. Devem ser os nanomeds.
— Tudo bem. Fique calmo. Você se lembra da posição do Cão 1?
— Ele estava mais adiante, coisa de 50 metros, no máximo. Não deve estar longe, fomos pegos ao mesmo tempo pela onda de choque. Mas o transponder não funciona… Não posso achá-lo com os sistemas.
O monstruoso Meca conseguiu sair do buraco onde estava, erguendo pesadas lajes de construções que ruíram, e Sashi se viu à sombra do poderoso titã de metal. Ele tropeçava nas ruínas, desajeitado, mas ao menos era uma proteção a mais para ambos. Ninguém se aproximaria de Cão 3.
— Sua escolta, onde está? — Ela berrou lá de baixo, já que não tinham rádio.
— Não sei!
— E a interface?
— Tá mais ou menos… Tenho alguns danos nos periféricos. Posso ficar desastrado, ainda mais com a visão assim.
Sem um único rádio funcionando, ficaria difícil. E Sashi até encontrou alguns blindados pelo caminho, mas tudo tinha parado de funcionar. Eram apenas chiados sem sentido. No cockpit, um aviso alertou o operador.
— O medidor aumentou mais um ponto! — Ele gritou de lá de cima.
Olhando para o braço de imediato, Cão 3 estava certo. Capaz que os ventos estivessem mudando e soprando radiação para o sul e para o oeste. Sashi subiu em uma pilha de metal retorcido que antes tinha sido um blindado e olhou para o grande campo de prédios e casas caídas.
— Se abaixe e me deixe subir!
O Meca se pôs de joelhos e Sashi habilmente o escalou até ficar ao lado do cockpit. Quando o robô ficou de pé mais uma vez, sua visão dos arredores multiplicou-se. Podia enxergar a irradiação da onda de choque com clareza e o descampado retorcido do ponto zero quase sumindo das vistas. Fechando os olhos e sobrepondo as imagens, sabia para onde olhar. Varreu a direção leste com a mira do rifle, buscando qualquer coisa grande demais para aquele terreno. Foi então que um vento forte levou uma camada de poeira para longe e Sashi viu letras que conhecia muito bem.
— Acho que o encontrei!
Não havia movimento aparente e parecia estar com o cockpit intacto, apesar de fechado. Também não via inimigos ao redor dele, estava tudo bem silencioso.
De volta ao chão, Sashi disse para Cão 3 seguir o barulho de seu jipe. E assim os dois saíram em disparada em meio aos destroços. Volta e meia ele tropeçava e caía, causando um grande estrondo, mas o operador conseguiu seguir até que muito bem o veículo que rugia pela poeira.
Foi preciso contornar as fundações de uma, outrora, grande construção da cidade. Algum tipo de estádio, talvez. Só restavam as vigas das lajes inferiores e um grande campo aberto no meio com meio metro de pó. Mas enfim encontraram o lugar. Uma onda de poeira subiu assim que ela parou o jipe e saltou. Deixou o rifle lá mesmo, queria entrar e sair rápido. O medidor de radiação subiu mais um ponto na corrida e mais um quando pararam. Merda… Espera um instante, por favor, ela pensava com pressa.
Com as mãos, Sashi limpou a camada de poeira que recobria a tampa do cockpit. Tinha uma maneira de abrir manualmente, que ela conhecia bem, pois ambos treinaram demais para este tipo de ação. Assim que limpou todas as reentrâncias, enfiou os dedos em dois buracos sob a trava da frente e os puxou. A primeira tranca soltou.
— Minha visão tá voltando! — Cão 3 berrou contente.
Isso indicava que quem estivesse sob a ação de nanomeds e com machucados mais graves poderia estar acordando naquele momento também. Até mesmo inimigos. Sashi continuou, de olho no medidor. Vermelho, ele apontava. Níveis altos, desintoxicação e quarentena imediatas para uma exposição maior que vinte minutos. Encontrou a trava da esquerda. Encontrou a trava da direita. Puxou a tampa e a ergueu com força para cima. Aodh estava lá dentro.
Parando um instante, ela o observou com cuidado. Estava ainda preso aos cintos de segurança da cadeira, a cabeça tombada de lado. Tinha sangue saindo de seu ouvido, nariz, hematomas na testa, um corte no supercílio. Atrás de sua orelha, o ponto de nanomeds tinha sumido. Que bom, eles estavam ação.
O treinamento dizia que ela precisava salvar o equipamento, além do operador. Olhou para a posição e para o lugar onde estava Cão 1. Não teria condições de tirá-lo de lá, estando entulhado e semienterrado em mais de três metros de escombros. As pernas poderiam estar desarticuladas ou presas em estruturas metálicas ocultas que precisariam de um trabalho mais especializado. Não, o operador era mais importante. Becah tinha plenas condições de repor quatro robôs às suas fileiras.
Enquanto soltava os cintos de Aodh, verificando suas pernas, não podia deixar de pensar no que o soldado inimigo disse. A bomba era nossa… O que foi que Becah fez? Não fazia sentido não ser verdade. Puxou Aodh para si e o abraçou por um instante. Seu corpo ainda estava quente. O cabelo molhado de sangue e suor. Você quase me mata de medo… Mas ele ainda estava vivo, mesmo que de leve. Confiando que a tecnologia o salvaria, Sashi se arrastou para fora, machucando-se em vidro e pedriscos enquanto lutava para tirá-lo do cockpit.
— Radiação subindo, Águia 1! Vamos embora!
Colocando Aodh no ombro, Sashi correu até o jipe e o colocou com cuidado na parte de trás. De fato, a radiação já tinha subido mais um ponto. Merda, vamos todos ficar de quarentena. Puxando outra seringa de seu bolso, injetou o líquido no pescoço de seu operador e o observou mais uma vez. O medidor apitava em seu braço. Eu tô saindo, merda. Acelerando o jipe e fazendo a volta, ambos correram em meio ao pó de construções caídas, desviando de escombros, rumando por caminhos ainda abertos e livres para circular. Apesar da visão de Cão 3 não estar ainda totalmente restaurada, ele não mais caía desajeitado pelo chão, mas volta e meia um pedaço de parede ou porta, ou uma roda voavam perto do jipe de Sashi. Os danos periféricos estavam bem evidentes.
Olhando para trás, Aodh permanecia desmaiado. Mas vivo, era o que importava. Não sabia se era a poeira ou se era alívio, mas Sashi chorava quieta na direção. Guerras, só um meio para continuar a politicagem e matar inocentes, transformando cidadãos em párias.
Mais à frente, uma sombra. Alguém caminhava na via, aos tropeços, mão na cabeça. Era Cão 4, tentando tomar o caminho de casa. Sashi reconheceu seu uniforme. Parando o jipe ao lado do operador que parecia machucado, mas consciente, Sashi disse:
— Carona, soldado?
De bom grado, ele se sentou no banco do passageiro do jipe e se segurou. Estavam todos vivos e indo para casa, mais uma vez.