Arca dos Sonhos

Além deste lugar de ira e prantos
Surge apenas a sombra em seu Horror
E ainda a ameaça dos anos
Encontra, e há de encontrar-me, sem temor
Não importa o quanto o portal seja restrito
Que ao pergaminho punição não falta
Eu sou o mestre de meu destino
Eu sou o capitão de minha alma.

William Ernest Henley – Invencível
(Tradução do autor)

 

O Capitão repousava sobre a Poltrona e, através dela, alcançava o espaço exterior, tocando o infinito. Ao seu redor, a Arca singrava as ondas gravitacionais de estrelas e buracos negros, cruzando nebulosas incandescentes e cinturões de asteroides gelados. Poeira estelar e meteoritos chocavam-se contra o casco da gigantesca espaçonave, e o Capitão sentia sua pele formigar com esse contato, como se o próprio universo acariciasse sua face. Com um pensamento, corrigiu a rota milímetros para a esquerda e para baixo, embora nem isso nem aquilo parecessem fazer sentido ali. Centenas de anos no futuro, os milímetros se transformariam em milhares de quilômetros. Milhares de anos no futuro, se tornariam anos-luz. E a Arca permaneceria em sua jornada até o Fluxo Escuro, nos limites da realidade observável, rumo ao desconhecido. Quando descoberto, os cientistas se dividiram; uns especularam que o Fluxo seria uma megaestrutura sobrevivente à Grande Explosão do início de tudo, um objeto de massa infinita e propósito incompreensível. Outros teorizaram que poderia ser a afluência de um outro universo, forçando sua entrada, sua existência, suas leis e caprichos em uma realidade espaço-temporal que não lhe pertencia. Os sacerdotes foram categóricos: aquele era o Palácio do Criador, lugar de origem, de onde fluía tudo o que era, que é e o que será. Gerações nasceram, viveram e pereceram durante a construção da Arca, o impossível tornado possível por mãos mortais. A espaçonave foi tripulada não apenas pelos mais capazes, mas por todos aqueles que sentiam que o Fluxo era tanto berço quanto mausoléu, alfa e ômega de suas existências, a resposta final para enigmas que sequer poderiam ser imaginados. E assim, eles embarcaram, às centenas de milhares, encerrados em um sono tão profundo quanto o abismo negro que ameaçava engolir a Arca. Todos, menos o Capitão.

Era seu trabalho guardar a espaçonave e seus ocupantes, pelo tempo que lhe fosse proporcionado e exigido, até que nem mesmo a Poltrona pudesse mais estender a sua vida, muito depois de a morte haver se tornado não apenas uma companheira constante, mas uma amiga saudosa e uma amante desejada. O Capitão e a Arca eram um, sinapses disparando eletricidade entre si, despertando sistemas e subsistemas, o zumbir de máquinas acompanhando o ritmo de um coração cada vez mais vacilante. Mas o tempo ainda não havia chegado. Enquanto isso, a radiação de uma estrela azul gigante, maior do que muitos sistemas solares, banhava a fuselagem da Arca, aquecendo a pele encarquilhada do Comandante e fazendo-o semicerrar os olhos presbiópicos contra a claridade, polarizando as janelas cristalinas da espaçonave e tornando-as quase opacas. Mais à frente, um conjunto de pulsares rodopiava sobre si mesmo, seu brilho estroboscópico piscando em uma frequência semi-hipnótica. Perto dali, um buraco negro expelia vapor d’água, formando uma nuvem aquosa suspensa no espaço, cem mil vezes maior do que uma estrela anã vermelha. Ao atravessá-la, o Capitão sentiu as gotas se espalhando de proa à popa, um frescor tal como apenas em sua infância, incontáveis vidas atrás, havia experimentado, ao brincar sob a chuva de mãos dadas com seus irmãos e irmãs. A lembrança cálida quase o fez ignorar o perigo que se avizinhava. Os sensores de longo alcance lhe trouxeram formas e sons, intenções e atos. Milhares de quilômetros à frente, navegando o imensurável oceano vaporizado, uma nau capitânia propunha desafio.

O Capitão suspirou, lançando uma onda de alerta que era como um arrepio correndo pela estrutura da espaçonave e acionando sistemas de defesa até então adormecidos. O último combate havia ocorrido talvez uma dezena de anos atrás, dentro de sua perspectiva; há centenas de anos para o resto do universo, velocidades relativísticas sobrepondo-se aos efeitos dos poços gravitacionais que pontuavam a jornada e garantiam o impulso perpétuo da Arca. Há muito a notícia do grande atrevimento humano havia se espalhado pelas redes quânticas de informação através das galáxias, imediatamente alcançando culturas tão diversas quanto suas reações àquela ideia nova e, portanto, perigosa. Uns haviam manifestado sua simpatia à causa, enquanto outros se mostraram cautelosos. O sentimento mais disseminado era um temor supersticioso, seguido de indignação histérica e ódio xenofóbico, um horror virulento pela Arca, seus ocupantes e tudo aquilo que eles representavam. E assim começaram os ataques. Raças avançadas e próximas caçaram o Capitão e sua embarcação pelo éter negro do espaço, uma agulha em um palheiro cósmico. Civilizações atrasadas e longínquas aguardaram a consumação de centúrias sobre centúrias, certos de que um dia a Arca passaria por sua vizinhança e que eles já teriam, então, alcançado um nível tecnológico suficiente para fazer frente à empreitada. Todas haviam falhado e as cicatrizes sobre a pele apergaminhada do Capitão eram um reflexo da couraça dilacerada que envolvia a Arca. Marcada, porém ainda íntegra, ela seguia rumo ao seu destino, encontrando mais um oponente em seu caminho.

A nau inimiga se aproximava, uma silhueta cada vez mais nítida e volumosa, agigantando-se em um mar de ondas estáticas. O Capitão rangeu os dentes que lhe restavam e cerrou os punhos esquálidos, conclamando seus guerreiros para a luta, todas as centenas de milhares de mentes que hibernavam por toda a Arca. Cada um dos seus passageiros emprestava o seu intelecto para a defesa do seu lar e seu objetivo final, corpos em animação suspensa, enquanto seus inconscientes assumiam o controle individual das naves que se lançariam contra a ameaça alienígena. Os hangares se abriram, de bombordo a estibordo, liberando seus ocupantes em direção à batalha; encouraçados se destacavam da fuselagem da Arca, cada um deles monumental em tamanho e ainda assim pigmeus ao lado de sua nave mãe; fragatas corriam à frente, preparando uma barreira de fogo para receber os adversários que se aproximavam; torpedeiros e contratorpedeiros deslizavam lado a lado, como irmãos; enxames de caças formavam nuvens escuras, que ondulavam pela batalha, ora aqui, ora ali, ferroando os desafiantes maiores e perseguindo os menores. O campo de duelo era um caos silente, explosões mudas anunciando a queda dos combatentes enquanto a Arca e seu desafiante se aproximavam mais e mais. Canhões cognitivos buscavam alvos a todo o momento, formando uma barragem cinética que destroçava tudo aquilo que fosse tolo o suficiente para se aproximar demais, os olhos do Capitão movendo-se freneticamente nas órbitas, dirigindo cada disparo. E toda baixa era um novo golpe, como se um pedaço fosse arrancado do já frágil corpo. Uma nave abatida, uma consciência perdida para sempre, enquanto os que ainda restavam se debatiam em seus casulos, sonhando sonhos de fogo e morte, suspensos sobre um abismo de escuridão.

A Arca agora se encontrava a várias centenas de quilômetros da nau alienígena, amantes em uma valsa bélica, quase a trocar um beijo furioso na escala ilimitada do universo. Havia chegado o momento de encerrar aquele conflito. O Capitão gesticulou brevemente com suas mãos, afastando as palmas uma da outra. Imediatamente, suas naves se separaram, movendo-se para longe de si e do inimigo que, confuso, parecia incapaz de decidir se deveria perseguir suas presas ou aproximar-se para clamar o prêmio maior. E foi então que todo o cansaço, toda a frustração, toda a raiva, medo e saudade do Capitão se congestionaram em seu peito, correndo pelas suas veias enquanto seus dedos se agarravam aos braços da Poltrona. A fúria rubra reverberava pela Arca, que parecia mudar, reconfigurar-se, abrir-se para expor o seu núcleo ardente. Com a voz rouca pelo tempo e pelo desuso, o Capitão gritou. A nave iluminou-se de dentro para fora, como uma estrela implodindo em supernova, liberando uma torrente de plasma irresistível, o combustível das próprias estrelas, em direção à embarcação inimiga. Apanhadas no turbilhão, as naves menores foram obliteradas com a mesma facilidade que os cristais de gelo que flutuavam entre os destroços da batalha. A nau capitânia pareceu hesitar ao ser atingida, como se não compreendesse ainda que o fim havia chegado. Lentamente as rachaduras se espalharam pelo casco curvo e quitinoso, escuro e lustroso como o de um inseto, prenunciando o colapso total da estrutura. Por uma eternidade que durou alguns minutos, ela agonizou, desabando sob o próprio peso, enquanto os remanescentes da sua frota eram impiedosamente caçados pela esquadra da Arca. Finalmente, cessou de existir, em uma detonação cujo brilho ofuscou o das estrelas mais próximas. E então, tudo estava acabado.

O Capitão inspirou profundamente, apoiando seu corpo dolorido sobre a Poltrona enquanto chamava de volta sua armada. Nem todos regressariam. Com um esforço indescritível, retornou a Arca à sua configuração de cruzeiro, trazendo-a de volta à rota previamente traçada, enquanto se desviava de ruínas do tamanho de pequenas luas. Com a cabeça pendendo molemente sobre o peito, sentiu que o momento da Transição havia finalmente chegado. Trêmulo, ergueu-se da Poltrona depois de anos incontáveis sobre ela, tendo como companheiros apenas o vazio exterior e os fantasmas de inimigos tombados. Penosamente, caminhou para a Câmara dos Sonhadores, onde se encontravam fileiras intermináveis de casulos, cada um deles ocupado por um hibernante. Todos vivos, embora muitos já houvessem deixado o juízo em alguma batalha pretérita, que passaria como um filme em suas mentes irrecuperáveis, de novo e de novo, pelo tempo que durasse sua existência torturosa. O Comandante não possuía a autoridade para poupar-lhes o sofrimento, embora desejasse fazê-lo, do fundo do seu velho coração. O destino deles, loucos ou sãos, repousava no final da jornada, quando finalmente encontrassem o Fluxo Escuro. Manquejou até um dos alvéolos de metal, parando em frente à abertura cristalina, deixando ver seu ocupante. Ela flutuava verticalmente no tanque cilíndrico, tubos atravessando o seu corpo e fazendo circular uma solução salina de baixa temperatura, que tomava o lugar do seu sangue e desacelerava seu metabolismo, induzindo o estado de animação suspensa. Contemplou o rosto jovem, emoldurado por cachos vermelhos que serpenteavam ao redor da sua cabeça. Não se lembrava de já ter sido assim, tão moço. Com um pedido silencioso de perdão, o Capitão ativou o procedimento automático que a traria de volta para a vida. Quando ela despertasse, encontraria o cadáver de um velho, caído sobre o painel de comando do seu casulo. Ela prestaria as honras devidas ao corpo e simbolicamente aposentaria o Capitão de sua função, dispensando-o do cargo e oficialmente assumindo a sua patente. E então, caminharia com passos incertos até a Ponte de Comando, onde a Poltrona lhe aguardava. E nela permaneceria até o fim dos seus dias.

Author: Fred Oliveira

Fred Oliveira é gastrônomo por profissão, historiador por predestinação, comediante por inconveniência e escritor por insistência. Atualmente escreve contos de horror e ficção científica e pretende lançar um livro em cada gênero. Um dia. Cria um gato preto e rabugento chamado Azeviche e adora Literatura Especulativa.

1 thought on “Arca dos Sonhos

  1. Parabéns!!! Várias ideias muito boas!! Gostei muito!! Daria pra fazer um livro a partir desse conto. Estou muito curioso para saber o que é o Fluxo Escuro e o que vai acontecer quando chegarem lá…

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