Eles também nos vigiam

O magistrado deveria chegar assim que o sol nascesse. Porém, os pássaros já cantavam há mais de duas horas quando a carruagem parou em frente à casa do vigia. Carmona havia esperado pacientemente por ele. Após 20 anos tomando conta da cidadela, paciência não lhe faltava.

Morientes desceu da carruagem com dificuldade, mesmo assim recusou a ajuda do jovem que o acompanhava. O rapaz olhava espantado para a muralha que se erguia sobre a cidadela. Carmona fez uma reverência assim que o magistrado pisou no chão.

— Carmona — disse o velho. — Lembro-me de ter lhe presenteado com um cão quando lhe deixei aqui. Um belíssimo animal de raça pura. Não o vejo nem ouço seus latidos.

— Por mais pura que seja a raça, pouco cães vivem por vinte anos.

Aquilo não foi dito como uma piada, mas fez o regente sorrir.

— Que insensatez a minha. Deve ser coisa da idade.

As duas últimas décadas haviam sido cruéis com Morientes. Ele tinha 50 anos, mas aparentava bem mais.

— Abel, cumprimente seu tutor — ordenou ao garoto ao seu lado.

O jovem magricelo tirou a mão de dentro do casaco e a esticou para Carmona. Estava frio e ele tremia. Era tão fraco que parecia doente. Após o aperto de mãos, distanciou-se um pouco e começou a espirrar, retornando depois de limpar as mãos nas calças.

— Qual seu sobrenome? — Perguntou o vigia.

— Ávila, senhor — respondeu, após segurar outro espirro.

— Não conheci sua família.

— São da costa oeste, de Vila Marinha — interrompeu o magistrado. — O pai dele é o prefeito do distrito. Matias Ávila. Seu pai o conhece, provavelmente — completou.

Aquela última frase fez Carmona dar um passo em direção ao velho.

— Como ele está? — Indagou com a voz embargada.

— Bem — disse Morientes, pondo as mãos em seus ombros — Você ainda o verá com vida. Abel — gritou — ajude Rato com as bagagens. Vamos entrar, está muito frio — disse, antes de caminhar em direção à casa.

Dentro da residência, a lareira crepitava e um caldeirão exalava um cheiro de carne cozida que tomava conta de todo o ambiente.

— Coelho? — Perguntou o velho.

— Sim, senhor.

O vigia levou o magistrado até o único quarto. Era o costume oferecer seus aposentos quando uma autoridade estava presente.

— Preparei esteiras para mim, o garoto e… como se chama mesmo o cocheiro?

— Rato.

Rato e o garoto entraram carregando duas grandes malas cada um. O cocheiro colocou as que trazia no quarto, enquanto Abel deixou as suas na sala.

— Sentem-se à mesa. Vou servir o guisado — disse Carmona.

— Ainda não está bom — falou Morientes abrindo o caldeirão e mexendo o conteúdo com uma colher de pau. — Conheço um guisado de coelho pelo cheiro. Deixe que eu tome conta. Aproveite e leve logo seu aluno para conhecer o topo da cidadela.

Abel olhou para Carmona, e após o sinal de positivo do mestre, seguiu-o esfregando as mãos nos braços.

— É sempre tão frio aqui?

— Só no inverno. Mas já está chegando ao seu fim — respondeu Carmona.

A cidadela era uma edificação secular, onde havia um alto e largo portão de carvalho. Quando aberto, através de uma roldana que ficava à sua direita, dava acesso a um corredor que levava à ponte que ligava o continente até a Ilha dos Pavores.

A ponte, conhecida como Ossos, era feita de pedra. Embaixo passava o Rio dos Condenados. Não era longa, apenas 100 metros separavam o continente da ilha. Por isso a cidadela era tão importante. Sem um vigia para tomar conta, alguma coisa, ou várias, poderia escalar ou tentar arrombar a entrada, mesmo que o portão fosse bem espesso.

Portão esse que ficava incrustado bem no meio da grande muralha de concreto que se erguia por exatos 32 metros e media 600 metros de uma ponta a outra. A espessura da muralha era de 20 metros, então 10 metros do corredor ficavam do lado de fora. Tudo aquilo estava ali há mais de 300 anos.

O local onde ficava a cidadela era um dos pontos fracos do reino, diziam os livros de história. Mas após décadas sem registrar qualquer invasão, para muitos governantes, as criaturas da Ilha dos Pavores eram apenas lendas e histórias de crianças. O que sustentava a importância da cidadela eram os relatos de cada vigia que retornava de 20 em 20 anos. Todos traziam consigo algo para contar. Algo que ainda faziam os nobres senhores respeitarem a cidadela do Passo das Almas.

Carmona e Abel subiram pela escada de tiro até o topo da muralha. O vigia fez questão de olhar para o garoto para ver sua reação na hora em que colocasse os olhos do outro lado. O jovem tremeu, exatamente como o vigia esperava, mas dessa vez não de frio.

Ossos possuía uma peculiaridade de onde havia sido tirado seu nome. Seus guarda-corpos tinham o formato de ossadas, porém imensas e não de homens ou de qualquer criatura normal. Por trás dela, erguia-se uma floresta, cujas árvores imensas não existiam em lugar algum no continente.

Abel não conseguia, ou mesmo tentava, esconder sua admiração. Com exceção da ventania que fazia lá em cima, não se ouvia nenhum outro som. Ele inclinou-se e olhou para baixo. Mesmo à uma distância enorme, era possível enxergar a leve névoa que cobria o Rio dos Condenados.

— Eu subo aqui duas vezes por dia — disse o vigia. — Uma vez de manhã cedo e outra à noite. Primeiro faço o caminho da esquerda, retorno a esse ponto e sigo para a direita. Essa foi sua primeira lição. Agora vamos descer, pois estou com fome e tenho medo que comam todo o guisado — completou, sorrindo para reanimar seu pupilo. Mas Abel não sorriu.

— Alguém já esteve lá? — Perguntou, apontando para a Ilha. Sua mão tremia.

— Ninguém que ainda esteja vivo, se é o que quer saber. Depois que a muralha foi erguida, nenhum homem cruzou para o outro lado. E até onde eu sei, nada atravessou de lá para cá, com exceção das gralhas amarelas. Não podemos impedi-las de voar sobre nós.

A descida foi lenta, pois uma neblina havia chegado e umedecido os degraus. Entraram de volta na casa e encontraram o magistrado servindo o almoço.

— Você mesmo caçou esses coelhos? — Perguntou o velho, antes de se sentar em frente ao seu prato.

— Não. Vieram com os mantimentos da Praça da Estrela.

— Praça da Estrela agora é um vilarejo rico que pode se dar ao luxo de doar carne? — Espantou-se o magistrado. — Quando passamos a noite de ontem lá, foi difícil arrumar algo decente para jantar e mais ainda para o desjejum de hoje. A você dão coelhos.

— Eles gostam de mim. Outra lição para você, Abel. Seja amigo dos emissários de lá — aconselhou Carmona.

Praça da Estrela era o último local habitado antes do Passo das Almas. Ficava a cerca de meio dia de cavalo. Por decreto do reino, o pobre vilarejo era obrigado a fornecer provisões ao vigia da cidadela uma vez por mês. Os moradores detestavam esse decreto, pois era de suas hortas, pocilgas e galinheiros que partiam os mantimentos.

Almoçaram em silêncio. O magistrado havia exagerado na pimenta enquanto tomava conta do caldeirão, por isso todos, com exceção do velho, comiam bem devagar e servindo-se de vários copos de água.

Após a refeição, Morientes se retirou para descansar e Rato foi cuidar dos cavalos. Carmona aproveitou para ensinar mais uma lição a Abel e o levou até o pombal. O lugar fedia, fazendo o jovem cobrir o nariz com a camisa. O vigia parecia não se importar com o odor dos pássaros.

— Já cuidou de pombos-correio antes?

— Não, senhor.

— O que usam em Vila Marinha? Peixes-correio?

— Não sei, senhor — respondeu o rapaz, visivelmente constrangido por não ter uma resposta.

Os pombos eram a forma dos vigias se comunicarem com seus superiores. A capital era longe demais para os pássaros, então eles eram enviados dali até Praça da Estrela. Um pombo partia da muralha. Dois dias depois, outro chegava a ela. Esse era o procedimento, desde sempre. Caso Praça da Estrela ficasse mais de dois dias sem notícias da cidadela, uma mensagem era enviada até a capital avisando que algo de grave poderia ter acontecido. Uma tática que se mantinha a mesma desde que o primeiro vigia havia sido destacado para o Passo das Almas.

— Há mais ou menos 160 anos, Praça da Estrela ficou sem receber notícias do vigia, então enviaram dois cavaleiros para investigar o ocorrido. Encontraram-no caído no sopé da escada com o pescoço quebrado. Não lembro o nome dele, mas foi substituído às pressas por um sujeito chamado Miguel, se não me engano.

— O que eles comem? — Perguntou Abel, mostrando que a história não o interessava.

— Grãos vindos na entrega mensal. Não precisa se preocupar com isso. Amanhã enviarei um deles e lhe mostrarei como se faz.

Os dois seguiram para trás da casa. Lá, Carmona mostrou a horta onde plantava cenouras, tomates, cebolas, alfaces e raízes. O jovem ouviu instruções de como adubar e quando colher o que era cultivado. Também havia algumas árvores frutíferas no bosque próximo.

— Nunca pensou em ter um cavalo? — Indagou Abel.

— Cavalos comem demais — respondeu. — Venha.

Seguiram até o final do terreno, passando por um poço e uma latrina, e chegaram a um pequeno depósito fechado com uma grande trava de madeira. A certa facilidade com que o vigia a removeu causou surpresa a Abel. Apesar dos seus 40 anos, e de ter passado duas décadas trabalhando duro na cidadela, Carmona mantinha um certo vigor. Se não fossem pelos seus longos cabelos brancos e uma ou outra ruga, pareceria bem mais jovem. Dentro do depósito havia várias ferramentas, como pás, enxadas, ciscadores e outras tantas.

Não demoraram muito ali. Teriam tempo de sobra para lições de agricultura. Mais adiante, havia outra construção de madeira cujo odor se encarregava de explicar o que era.

— Evite vir a essa latrina durante a noite. Há cobras de vez em quando e é impossível vê-las no escuro — alertou o vigia. O jovem assentiu com a cabeça e voltaram para a cidadela.

Como não havia mais lições por enquanto, Abel se recolheu para dentro de casa, pois o frio havia aumentado. O vigia decidiu ver se Rato precisava de ajuda com os cavalos, mas não encontrou o cocheiro. Os animais estavam desencilhados e pastavam tranquilamente próximos à carruagem.

Carmona ouviu passos atrás de si. Quando se virou, deu de cara com Rato, pálido e com os olhos esbugalhados.

— Não diga ao lorde magistrado que eu fui lá — gaguejou.

— Lá onde?

O cocheiro apontou para o alto da muralha.

— Não diga — repetiu. — Eu imploro — apelou, antes de partir para perto dos cavalos.

Carmona não sabia o que achar daquela situação, mas iria atender ao pedido do cocheiro. Afinal, não havia motivo para que Morientes soubesse do ocorrido. Ambos iriam embora no dia seguinte. Apenas o rapaz ficaria com ele.

Então, após uma semana, seria sua vez de partir para sempre da cidadela. Olhou para a muralha e imaginou se sentiria falta daquele lugar. Resolveu que não. Havia visto maravilhas que nenhum homem do reino sonhou em ver algum dia, mas sua missão havia terminado. Quer dizer, não ainda. Ainda faltava treinar seu substituto.

Achou melhor ir sozinho até o bosque e ver se as armadilhas tinham conseguido alguma coisa. Havia algumas delas espalhadas por entre as árvores e alguém sem saber onde estavam escondidas poderia pisar em cima. Nas sete que armara, três tinham capturado perdizes.

Morientes só levantou-se da cama quando sentiu o cheiro das perdizes sendo cozidas com batatas, cebolas e molho de laranja.

— Há vinho nessa cabana? — Perguntou.

Havia uma garrafa de grappa e o magistrado se deu tanto por satisfeito que não a dividiu com ninguém. Quando terminaram de jantar, já estava escuro lá fora. Carmona anunciou que estava chegando a hora de fazer sua ronda noturna na muralha.

O vigia abriu o armário na parede e tirou de lá uma besta e uma aljava cheia de flechas. Antes de fechar a porta, Abel conseguiu vislumbrar um punhal e um grande machado dentro do compartimento. Quando Carmona vestiu sua capa cinza e saiu, o jovem também pegou sua vestimenta de frio e o seguiu rumo à muralha.

Antes de subir a escada, Carmona acendeu a pira que ficava em frente à casa.

— Não levaremos uma tocha? — Perguntou o rapaz, ao notar que seu mestre já estava se encaminhando para muralha.

— Não precisamos — respondeu.

Abel o seguiu, mas quando chegaram aos últimos degraus, o vigia lhe deu passagem para, mais uma vez, vê-lo admirado.

— Eles também nos vigiam — disse Carmona, aproximando-se.

As tochas eram enormes e incontáveis. Várias estavam entre as imensas árvores da ilha e espalhadas pelos guarda-corpos de Ossos. A visão era linda, mas provocou um frio na espinha do jovem.

— Quem acendeu essas tochas?

— Os moradores da ilha. Quem mais?

— Você já viu? — Perguntou sem tirar os olhos da ponte.

— Acendendo as tochas? Não. Sempre que subo aqui, elas já estão acesas. Aprenda isso. Só venha quando eles as tiverem acendido — respondeu. — Vamos, temos que fazer nossa ronda — sentenciou, puxando-o pela manga da camisa.

O jovem o seguiu, mas ainda olhava para os focos de fogo.

— Como saberei que elas já estarão acesas?

— Suba uma hora após escurecer. Sempre estarão acesas.

Caminharam os primeiros 300 metros à esquerda em silêncio. No caminho de volta, Abel voltou a falar.

— Vocês nunca os viu acendendo as tochas — fez uma pausa. — Mas já os viu, não é? Já viu quem mora na ilha.

— Já os vi algumas vezes. Sempre pela manhã. Alguns são tão grandes que nem as árvores podem escondê-los por completo — revelou. — Porém, nunca os vi à noite.

Chegaram até o meio da muralha e começaram a seguir para o outro lado.

— O que eles são? Disse que são grandes. São gigantes?

— Sei o nome que os homens lhes dão. Nomes como ogros, trolls, trasgos. Se algum dia eu ouvisse seus nomes de suas próprias bocas, diria que sei o que são. Mas acho que isso não acontecerá.

Antes de descerem as escadas, após terminarem a ronda, Carmona disse:

— Não precisa saber o que são. Precisa vigiá-los. Precisa proteger o reino contra qualquer coisa que tente atravessar. Ouça e aprenda comigo. Isso basta — encerrou o assunto.

Em frente à casa, Rato havia improvisado uma pequena mesa e dois bancos com alguns caixotes que estavam perto da horta. Três garrafas de vinho, um pedaço de queijo branco e meio salame formavam o banquete.

— O magistrado pode ter passado dificuldades em Praça da Estrela, não eu — disse o cocheiro, exibindo seu sorriso quebradiço. — Tomei a liberdade de pegar três copos em seu armário — confessou.

— Não quero. Vou dormir — disse Abel ao se retirar, levando o copo que seria seu.

— Que molenga — falou o cocheiro quando o jovem bateu a porta atrás de si. — E você não me faça desfeita — sentenciou.

— Ele só está nervoso — explicou Carmona, depois de dar o primeiro gole. — A cidadela não é uma casa de campo. Ele terá uma vida dura aqui — completou, servindo-se de um pedaço de queijo e outro de salame.

Rato também pegou um pedaço de cada, mas bem maiores. Após mastigar com certa dificuldade e engolir tudo auxiliado por um grande gole de vinho, perguntou:

— Como veio parar aqui?

Carmona não gostou nem um pouco do desdém com que a pergunta foi feita, mas ignorou o fato por educação.

Ele havia crescido em uma família que se orgulhava de sua linhagem de protetores do Passo das Almas. Seu avô e seu tio haviam colocado seus nomes na história do reino e colhido os frutos de terem servido na cidadela. Pois quando o período de duas décadas de servidão à muralha chegava ao fim, o vigia que retornava ao reino recebia uma grande recompensa em ouro, terras e a promessa de um casamento com uma jovem de bom nascimento. Eram esses os prêmios que aguardavam Carmona dali há uma semana. Mas, ele frisou, muito mais importante do que isso era a honra de ter servido ao rei.

Rato não pareceu se impressionar com nada daquilo. Encheu outro copo de vinho e comeu mais um pedaço de queijo.

— O que acha desse Abel?

— Se o magistrado o escolheu é porque confia nele. Parece fraco, admito, mas o deixarei pronto para o serviço.

— Como foi com você? Quem lhe antecedeu nesse fim de mundo?

Santiago Vilalba havia guardado o Passo das Almas antes dele, mas não teve muito trabalho como tutor. Carmona chegou preparado à cidadela, por conta dos ensinamentos que o tio já havia lhe passado. Nos sete dias que ficou sob a tutela de Vilalba, só precisou colocar em prática todo o treinamento do qual ouvira falar.

Santiago era um homem forte, porém, sua estadia na muralha havia sido cruel com seus ossos. Ele mancava da perna esquerda, por conta do esforço que tinha feito todos os dias no sobe e desce da imensa escada.

Por outro lado, foram outros vinte anos sem qualquer tipo de ameaça. Santiago só chegou a ver um morador da ilha uma única vez. Uma cabeça por entre as imensas árvores, que segundos depois desapareceu na vegetação. Aquilo tinha acontecido em seu terceiro ano na cidadela, mas ele revelou que a visão ainda lhe perseguia nos sonhos.

Disse também que matou uma das gralhas amarelas que sobrevoavam a muralha. Após assar uma delas e comer, passou mal durante horas e pensou que iria morrer de tanto vomitar.

Santiago disse a Carmona que após abandonar a função de vigia partiria para Vila Marinha. Falava também que depois de tanto tempo praticamente sozinho, nem se importaria se a noiva que lhe arranjassem fosse bonita. Só queria um corpo quente para aquecê-lo na cama até o fim dos seus dias.

— Você deve ter ouvido falar dele — disse Carmona. — Afinal, há uma festa para os vigias quando eles retornam à capital.

— Se teve, eu não estava lá.

— Você já morou em outra cidade?

— Não. Sempre morei na capital. Mas pode ser que quando seu antigo mestre foi recebido com glórias e honrarias, eu não estivesse, digamos… em casa — tentou explicar, antes de lançar duas fatias de salame para dentro da boca.

­— E onde estaria? — Carmona perguntou, com um sorriso inocente no rosto.

Rato afastou a camisa e mostrou a letra L em seu ombro esquerdo, marcada por um ferro em brasa havia muito tempo.

O vigia tentou, mas foi impossível esconder sua surpresa. “L de ladrão”. Sua garganta secou na mesma hora e ele teve que se servir de mais um copo de vinho e entorná-lo para não se engasgar. Ele não poderia imaginar alguém que já esteve nas masmorras da capital sendo cocheiro do magistrado. Quando não eram condenados à morte, em caso de crime grave, eram mandados para as fronteiras com as outras cidades. Após cumprirem suas penas, nunca ficavam na capital.

— Qual foi o seu crime? — Perguntou meio sem graça.

— Roubei um carregamento de laranjas, apenas. Tivesse eu um A de assassino não estaríamos tendo essa conversa. Isso foi há 20 anos.

— Teve sorte de ser acolhido pelo magistrado e ter a honra de servir um membro do reino — opinou Carmona.

— Acolhido? — Rato perguntou sem esconder a ironia.

— Você poderia ter sido mandado embora da capital.

— Não fazem mais isso. Hoje, a maioria dos servos, cocheiros, aias e mensageiros são tirados das masmorras. Eles chegam e dizem que podemos escolher entre a prisão ou trabalhar como capacho. Todos escolhem sair das celas, claro. Melhor ganhar míseros tostões do que passar seus dias preso. Nós ganhamos a liberdade e eles economizam. Uma conta simples, que até eu entendo — explicou e finalizou a primeira garrafa, bebendo no gargalo.

Rato já estava se servindo do segundo vinho, quando Carmona quis saber se os assassinos e estupradores ainda eram condenados à forca.

— A maioria, mas há exceções — o cocheiro revelou.

— Que utilidade alguém pode ter para essa laia? — O vigia perguntou, deixando transparecer a revolta em suas palavras.

— Serviços sujos, creio eu.

— Ora, homem, por favor. Estamos falando de nobres e autoridades de sua majestade. Acha que o rei permitiria tamanha patifaria? — O vinho já começava a deixar sua fala embolada.

Rato mastigou e engoliu um pedaço de queijo, antes de falar.

— Não se ofenda, mas talvez você não tenha tido muitas notícias aqui tão longe — falou com o máximo de doçura que conseguiu, pois seu parceiro de bebedeira já se mostrava um pouco exaltado. — Não há mais tanta riqueza na corte quanto havia há vinte anos. Disso até um pobre coitado como eu sabe.

— Eu que me desculpo — disse Carmona, após terminar seu copo e comer uma fatia de salame. — Não sou inocente a ponto de achar que só existem honestos entre os nobres da capital. Mas… — ele fez uma pausa para arrotar. — Não é aceitável que o rei tenha permitido colocar assassinos em liberdade.

— Talvez ele não saiba — Rato deu de ombros. — O rei está velho. Pode ser que estejam se aproveitando disso. Ouvi dizer que seu filho é ganancioso. Mas isso são histórias que se contam nas estrebarias e tabernas.

— O que mais contam? — Indagou o vigia.

O cocheiro não disse muita coisa da qual pudesse ter provas, apenas conversas de vagabundos. O príncipe fora corrompido por alguns nobres senhores que queriam mais regalias do reino e, para isso, deixaram pequenas fortunas nas mãos da Coroa.

— O que Morientes diria se eu perguntasse a ele sobre isso? — Cravou Carmona.

Rato levantou-se de supetão, tropeçando na caixa que lhe servia de banco, e tombou para trás.

— Pensei que era meu amigo — falou assustado. — Por favor, não conte nada dessa nossa conversa — ele olhou para a porta da casa, como se o magistrado pudesse aparecer ali a qualquer momento.

— Sente-se, homem — disse o vigia, com um sorriso no rosto. — Não era essa a minha intenção.

Rato bateu a terra de suas calças e voltou a sentar. Ele também sorria, agora que passara o susto.

— O que eu queria saber… — Carmona prosseguiu — É se Morientes sabe dessa suposta influência sobre o príncipe.

— Não sei. Sou apenas o cocheiro. Levo e trago pessoas, que nunca falam em minha presença. Também busco coisas e cartas — ele fez uma pausa e sussurrou — de um homem gordo que faz poções. O magistrado sempre compra dele.

— Poções? Nem nesse fim de mundo ainda acredita-se em bruxaria, Rato.

— Esse gordo tem uma criação de cobras. Um homem asqueroso. Ele também envia recados, mas não sei ler.

Carmona deu de ombros.

O frio havia voltado com força ao Passo das Almas e ambos vestiram suas capas. Dividiram o resto de queijo em dois pedaços iguais, mas pouparam o salame para depois. A segunda garrafa de vinho havia chegado ao fim quando encheram seus copos novamente.

— É casado, Rato? — Carmona perguntou para quebrar o silêncio que havia se instalado entre os dois.

— Não me permito tal luxo. Não tenho prata suficiente nem para mim, além do mais…

O que o cocheiro iria acrescentar em sua declaração é algo que o vigia nunca soube, pois um urro quase tão alto quanto um trovão ecoou do outro lado da muralha. Mas, enquanto Rato estava de olhos arregalados em direção ao portão, Carmona se mantinha calmo.

— O que foi isso?

— Algum animal. Não virá até nós — o vigia respondeu enquanto bebia calmamente. — Abra a terceira garrafa. Está frio.

Os copos estavam cheios mais uma vez. Uma fina neblina havia se formado e, com o fogo da pira chegando ao fim, a escuridão estava quase os sufocando.

— O que você viu lá em cima? — Carmona tinha um sorriso no rosto, típico dos entorpecidos pela bebida.

— Eu vi um maldito gigante de pele verde acendendo uma tocha em uma ponte feita de ossos. E ele me viu também. Quase cago nas calças — admitiu Rato. E não segurou o riso, após essa revelação.

Ambos riram tão alto que, após se calarem, o cocheiro cogitou a possibilidade de terem sido ouvidos do outro lado da muralha.

­— O que você viu, poucos homens viram — disse o vigia, após enxugar as lágrimas do rosto. — Considere-se com sorte.

— Terei pesadelos, isso sim — falou o cocheiro, partindo o salame em dois e comendo sua parte. — Sentirá saudades, não? — Perguntou após engolir. — Foram vinte anos, afinal.

Carmona virou-se para a muralha e a fitou por alguns instantes.

— Achei que morreria aqui. Não seria surpresa alguma. Muitos vigias morreram em seus postos. Não, não sentirei saudades. Eu acho que não — as palavras estavam cada vez mais embaralhadas pelo vinho.

Terminaram a última garrafa e se recolheram. Dentro da casa, uma lamparina ainda estava acesa. Rato deitou-se na esteira que estava no canto esquerdo da sala e Carmona na que estava próxima à mesa.

Perto da entrada do quarto, Abel ainda estava acordado, com os olhos fixos nos dois.

— O que foi aquele barulho lá fora?

— Um rato — o cocheiro respondeu sem pestanejar.

Foi difícil para os dois ébrios segurarem o riso, mas o medo de acordar o magistrado foi maior. Pouco tempo depois, estavam roncando.

Mas assim que o sol raiou, apenas Rato roncava. Carmona estava sacudindo Abel e ordenando que ele se levantasse sem fazer barulho. Ele juntou suas vestes e botas e saiu na ponta dos pés.

Havia uma bancada na parede da casa, com uma bacia e um tonel. Carmona já havia se banhado.

— Tome banho, se quiser, ou apenas lave o rosto. Se precisar usar a latrina, vá logo. Depois me encontre no pombal — disse o vigia ao sair carregando consigo um dos caixotes que servira de banco na noite anterior.

Depois de se arrumar, Abel foi ter com seu tutor e encontrou com ele uma pena, um frasco de tinta, um pedaço de pergaminho, um rolo de barbante e um pequeno tubo de vidro em cima do caixote.

— Hoje mandaremos uma mensagem à Praça da Estrela. Avisaremos que você já está comigo. Poucas palavras são necessárias. “Abel, o novo vigia, chegou à cidadela” é mais do que o suficiente — exemplificou Carmona e virou-se para pegar um dos pombos.

Quando puxou o pássaro para fora do viveiro, Abel já estava com o pergaminho laçado por um fio de barbante. O vigia ensinou-o como colocar o papel dentro do tubo e prendê-lo corretamente. Após tudo preparado, o pombo foi solto e partiu.

— Por que temos que enviá-los tão cedo? — Quis saber o jovem, que ainda bocejava de sono.

— Nessa hora não há gralhas amarelas desse lado. Elas vêm quando o sol fica mais forte. E elas caçam pombos. Agora vamos colher algumas frutas para o magistrado. Completaremos seu desjejum com o que sobrou do jantar de ontem. Deve bastar.

Quando retornaram do bosque, Rato já estava preparando a carruagem. Dentro da casa, Morientes se queixava das dores que o duro colchão havia causado em suas costas. O velho ainda comentou que daria em ouro o peso daquele que lhe trouxesse ovos cozidos e leite fresco, mas se contentou com laranjas e carne de perdiz.

O magistrado só sairia dali a uma hora, pois suas costas ainda doíam. Assim, Carmona e Abel partiram para a primeira ronda no topo da muralha. O frio havia dado uma trégua e um sol forte esquentava o Passo das Almas.

Dessa vez, Abel foi na frente, carregando a besta. Mas antes mesmo de chegar ao topo da escada, parou e apontou a arma para a ave que estava no corrimão do último lance. Um enorme pássaro amarelo, de mais de um metro. Seu bico era comprido e preto e seus olhos completamente brancos, como os de um cego.

Quando grasnou, não era igual a nenhuma ave que o jovem já tivesse ouvido. Seu som era rouco e ameaçador, mas apenas bateu asas e fugiu quando Carmona a afugentou.

— Não nos atacam — disse ele, se aproximando e abaixando a besta que o rapaz ainda segurava em posição de disparar. — Não vale a pena gastar uma flecha com elas. Ainda mais porque não dá para comer. Vamos caminhar.

As tochas que iluminavam a floresta e a ponte estavam apagadas. As árvores estavam cobertas por uma forte neblina e quase nada da ilha era visível. A ronda foi rápida, tranquila e silenciosa. Nenhum dos dois falou nada durante todo o trajeto, mas enquanto eles desciam, Carmona, que caminhava atrás, perguntou:

— Matias Ávila é o nome do seu pai, não?

— Sim, senhor.

— Prefeito de Vila Marinha?

— Sim, senhor.

— Você morou lá a vida inteira?

— Sim, senhor.

— Já ouviu falar de Santiago Vilalba?

— Não, senhor.

Chegaram ao descampado que ficava entre a cidadela e a casa e notaram que a carruagem não estava mais lá. O vigia foi até sua residência, apenas para ver que ela estava vazia. Perguntou a Abel se o magistrado teria lhe avisado que partiria sem se despedir.

— Não, senhor.

Pela cara abobada que não fazia questão de esconder, deveria estar falando mesmo a verdade, Carmona pensou.

No resto da manhã, o vigia levou seu pupilo para tarefas de rotina. Cuidaram da horta, consertaram uma tábua solta do depósito de ferramentas, alimentaram os pombos, limparam as ferramentas, varreram a casa e checaram as armadilhas no bosque. Havia duas perdizes e dois esquilos, que junto aos repolhos colhidos, seriam o almoço e o jantar.

— Santiago Vilalba era o vigia da cidadela antes de mim — disse Carmona, enquanto roía o osso de esquilo. — Sabe dizer se ele morou em Vila Marinha?

— Não, senhor.

— Se já tiver terminado de comer, vá buscar água no poço. Há baldes ao lado da casa, perto de onde se lavou hoje cedo — ordenou, de forma ríspida, cansado das respostas repetidas do rapaz.

O jovem notou o mau humor do seu tutor e saiu rapidamente, carregando a besta. Carmona achou que ele talvez ainda estivesse com medo das gralhas amarelas.

O vigia aproveitou para arrumar o quarto. O magistrado não tinha se dado nem ao trabalho de esvaziar o penico antes de ir embora. Quando saiu para despejar o mijo do lado de fora, avistou Abel retornando com dois baldes. Lavaram o penico, os pratos do almoço e algumas roupas e lençóis.

— Imagino que o filho de um prefeito nunca tenha lavado suas próprias roupas, não?

— Não, senhor — respondeu Abel. — Nunca lavei roupa.

— Eu já estive em Vila Marinha, sabia? — Tentou ser mais amigável.

O jovem não disse nada, apenas fitou seu mestre com um olhar desconfiado.

— Eu era criança. Não me lembro de muita coisa, só que a praia era cheia de gaivotas. Gostaria de ter voltado lá. Talvez eu volte. Ainda há muitas gaivotas?

— Sim, senhor.

Carmona se perguntou quando o jovem começaria a se sentir à vontade em sua presença. A timidez dele chegava a ser perturbadora.

Não era assim que deveria se portar alguém de bom nascimento, principalmente o herdeiro de um governante. Se sofresse de alguma doença, talvez, mas esses nunca eram enviados para servir na cidadela, e ele chegara ali sob a aprovação do magistrado, representante do rei.


Em sua semana de treinamento na muralha, Carmona falou tanto que chegou a irritar Santiago algumas vezes. O homem o chamava de “língua inquieta” e dizia que talvez ele enlouquecesse ao cumprir seus 20 anos na cidadela sem ninguém para conversar.

Mas ele teve mais sorte. Os dois emissários de Praça da Estrela não gostavam de Santiago, mas haviam simpatizado com o novo vigia. Sempre que vinham deixar os mantimentos, uma vez por mês, passavam a noite conversando e bebendo. Eram eles que enviavam as mulheres. Imaginou se os emissários também se dariam bem com Abel.

O sol havia aparecido, então aproveitaram para estender as roupas no varal. Depois, encheram os baldes novamente e começaram a lavar o chão da casa.

Após a limpeza, colheram batatas e cebolas, e o vigia ensinou o rapaz a prepará-las para cozinhar as perdizes.

Em seguida, pediu para o jovem ir buscar mais lenha. Precisava acender a lareira e a pira quando escurecesse. Ele saiu levando a besta consigo. O vigia perguntou se temia encontrar outra gralha amarela, mas a porta bateu atrás do rapaz antes que ele pudesse ter respondido. A aljava com as flechas jazia pendurada em um prego na parede. Começou a pensar que seria uma semana bem trabalhosa. Já que seu pupilo não se mostrava com vontade de falar sobre o que sabia ou o que queria saber, ele teria que perguntar tudo.

Estava pensando sobre que assunto falaria primeiro, quando ouviu um uivo que gelou sua espinha. E, ao contrário do urro da noite anterior, era algo que ele nunca havia escutado. Quando correu para o lado de fora, viu Abel descendo a escada às pressas. O rapaz pulou os três últimos degraus, caiu na grama, levantou-se apressado e, quando chegou perto dele, atirou-se em seus pés, chorando. Não havia flecha na besta.

Carmona não pensou em falar com ele em momento algum. Seu pensamento, assim como seu olhar, estava na muralha. Ele parecia uma estátua, mas o coração batia acelerado no seu peito. A qualquer momento aquele portão podia vir abaixo e o vigia da cidadela teria que anunciar algo que nunca havia acontecido em três séculos.

— O que você fez?

— Eu queria vê-los acendendo as tochas. Queria vê-los. Mas o que estava acendendo a tocha me viu também. Ele estava na ponte, perto do corredor. Eu me assustei e apontei a besta para ele. Não queria disparar, mas eu estava tremendo. Meu dedo deve ter pressionado o gatilho.

Abel tentou se levantar assim que terminou de falar, mas o chute de Carmona em seu estômago o jogou no chão. O jovem vomitou.

— Onde o acertou?

— No rosto — disse, após limpar a boca e o queixo.

— Vá pegar a aljava e o punhal.

O jovem obedeceu e, tão rápido quanto foi buscar as armas, voltou para entregá-las. Carmona disse para ele pegar madeira, muita madeira, e acender a pira. Abel correu para os fundos da casa e sumiu de sua vista.

O vigia armou a besta com uma nova flecha e se perguntou de onde viria o ataque. Eles derrubariam o portão ou escalariam a muralha? Isso se um ataque viesse. Carmona se agarrava à esperança de que eles seriam cautelosos. Foram séculos sem incidentes. Eles também vigiavam seu lado. Não eram bestas estúpidas como diziam as histórias de ninar contadas no reino. Eram seres racionais.

Pela primeira vez em vinte anos, ele se perguntava como seria a vigília do outro lado. Haveria apenas um vigilante, assim como no Passo das Almas? Haveria pombos na Ilha dos Pavores ou eles utilizavam as gralhas amarelas? Algum jovem gigante, troll, ogro, trasgo, que substituía o velho? Ele seria um tolo, assim como o do outro lado?

Quem teria sido atingido por aquela maldita flecha? Um guerreiro ou apenas alguém que acendia tochas? Carmona começara a sentir ódio de Abel. Ouviu um barulho e se virou. O rapaz havia acabado de acender a pira. Já era noite.

Quando ele se aproximou, o jovem o encarou, esperando por alguma ordem, a qual obedeceria de pronto para cavar o seu perdão. O vigia apenas tirou o atiçador de brasas da sua mão e começou a mexer na lenha. Alguns gravetos já crepitavam.

— Demorei mais de três anos para ver um deles — começou, enquanto agitava a pira, ainda sem olhar para Abel. — O primeiro contato aconteceu no lado oriental da muralha, onde, como você bem deve saber, fica a Montanha da Bruxa. Nesse ponto, não sei se você percebeu, é onde a margem da ilha fica mais perto da muralha. Eu o vi, com os braços enfiados dentro da água. Braços imensos. Ele era imenso. Havia grandes espinhos saindo de suas costas. Sua cor era um verde azulado muito forte. Assim como você, eu também tive medo e lhe apontei a besta. Mas, diferente do que houve com você, ele não tinha me visto. Então, ele saiu da água com um peixe gigantesco em suas mãos. Um bagre. Você mora no litoral, deve saber o que é um bagre. Foi isso. Ele só estava pescando. Se você ficasse aqui por mais tempo, iria aprender que nossa função é vigiar e não atacar. Eu teria tido o prazer de lhe ensinar.

— O que quer dizer, senhor? — Gaguejou.

— Amanhã enviarei um pombo à Praça da Estrela. Quero você longe daqui. Você não é digno da cidadela.

— Não pode fazer isso — disse, agora mostrando confiança. — Não pode, senhor — aliviou o tom de voz, ao receber uma encarada do vigia.

— Eu posso fazer o que eu quiser. E se você não concordar, arranco sua cabeça e atiro do outro lado da muralha. Agora entre. Não quero ver mais a sua cara.

Já passara da hora da ronda noturna, mas Carmona não subira os degraus naquela noite. As horas escuras no Passo das Almas seriam passadas aos pés da muralha, fitando o portão, no aguardo de qualquer possível ataque à cidadela. Sentou-se num caixote e colocou a besta de lado e o punhal do outro.

E lá ficou até suas costas doerem. Então se levantou e andou até o portão. Grudou o ouvido na imensa estrutura de madeira, como se pudesse ouvir alguma coisa do outro lado. Mas ele mesmo sabia que era impossível, pela espessura. Havia esfriado bastante e ele resolveu que seria melhor ficar perto da pira.

O silêncio era o seu conforto, mas ainda estava tenso. Não havia nenhum sinal de ataque, entretanto não significava que não aconteceria, talvez estivesse sendo tramado naquele instante. Ele só saberia quando viesse. Do alto da muralha, veria a possível invasão. Mas não tinha coragem de subir lá.

O medo venceu o sono e ele permaneceu alerta por horas a fio. Às vezes em pé, por vezes sentado em seu caixote. Começou a ouvir barulhos dentro da casa, mas não foi lá ver o que estava acontecendo. Depois de muito tempo, Abel saiu pela porta lhe trazendo uma cuia e uma colher.

— Cozinhei as perdizes — revelou.

A fome falou mais alto, principalmente quando sentiu o cheiro das aves cozidas com batatas, e ele aceitou. Porém, não agradeceu e disse que comeria do lado de fora, sentado em seu caixote. O jovem assentiu com a cabeça e voltou para dentro.

O gosto não estava muito bom, mas não reclamaria. Bebeu o caldo, cortou os legumes com a colher e comeu sua perdiz com a mão. Achou que talvez o jovem tivesse colocado algum tempero estranho, pois um amargor tomou conta da sua boca ao fim da refeição. Assim que terminou seu jantar, pôs a cuia ao lado do caixote e ficou de pé.

Já estava perto de amanhecer. Dali a uma hora o sol nasceria. Ele teria que dormir. Mesmo a contragosto, colocaria o jovem para vigiar a cidadela. Não havia escolha.

Quando a manhã chegou, resolveu convocá-lo para assumir seu posto. Mas, antes disso, se dirigiu até o pé da muralha para urinar. Foi quando terminou de se aliviar que ouviu o pombo. O pássaro só deveria chegar no dia seguinte, mas lá estava ele.

Havia duas mensagens, uma em cada pata. Carmona desenrolou o primeiro pergaminho. “Vigia, não entendemos a sua mensagem. Aguardamos notícias novamente”. O segundo pergaminho era de um papel mais escuro, do tipo que tinha guardado em seu armário, e reconheceu como aquele que havia mandando Abel escrever anunciando sua chegada. Não havia nada escrito. Apenas rabiscos.

Colocou ambos no bolso e partiu em direção da casa. No meio do caminho, vomitou. Sua cabeça rodou e a garganta começou a arder, mas ele continuou. Quando passou pelo caixote, apanhou a besta.

Abriu a porta com um chute. Abel estava sentado à mesa comendo uma laranja e se espantou com a entrada brusca de Carmona. Porém, só se levantou quando os pergaminhos foram atirados à sua frente.

— O que é isso? — Apontou para os papéis. — Por que não escreveu a mensagem que lhe ordenei?

— Não sei ler nem escrever, senhor — confessou, de olhos baixos, envergonhado como uma criança que revela uma traquinagem ao adulto.

O vigia se perguntou que razão teria o magistrado, em nome do reino, para ter enviado um rapaz analfabeto para servir no Passo das Almas. Mas lembrou-se da conversa com Rato no dia anterior.

— Tire a camisa — ordenou.

O jovem despiu-se dela sem reclamar. A letra A tatuada em seu ombro era de uma cor preta forte que indicava ser recente.

Carmona lhe apontou a besta.

— Quem é você?

— Meu nome é Abel e isso é verdade — começou a falar, com um ar de derrotado. — Mas não sou filho do prefeito de Vila Marinha. Nem sou de lá. Nunca nem fui lá — voltara a sua habitual gagueira.

O vigia deu um passo em sua direção, ameaçador.

— O magistrado me ofereceu a liberdade, por isso eu vim — havia lágrimas em seus olhos. — Eu matei uma prostituta para roubar sua bolsa. Era uma prostituta, ninguém importante — chorou, finalmente.

— Sua liberdade em troca do quê?

— Não há ouro, nem terras para o senhor quando voltar à capital. Por isso me mandaram para cá — falou entre um soluço e outro. — Morientes disse que não havia monstros e que o rei não precisava gastar dinheiro com todos os vigias que mandassem pra cá. Por isso, eu vim. Não por dinheiro, mas por liberdade.

— Sua liberdade em troca do quê? — Repetiu.

— O magistrado disse “aprenda tudo com Carmona. Depois, assuma seu lugar” — fez uma pausa. — “E depois o mate”.

A cabeça do vigia girava. A vontade de vomitar voltara, mas ele tinha se controlado dessa vez. Sua garganta começara a arder, mas a surpresa com a revelação do jovem ocupava toda sua preocupação no momento.

— Por isso eu fui lá em cima. Tinha que ver com meus próprios olhos. Eles mentiram pra mim. Há monstros na ilha. Eu não ia matar o senhor, mas o senhor me bateu e disse que me mandaria embora. Não voltarei para as masmorras. Não voltarei — seu rosto agora mostrava raiva.

— Pois me diga, assassino, como pretende me matar? — Carmona quase sorriu.

— Eu já o matei senhor — disse, envergonhado, olhando para o caldeirão.

A garganta do vigia agora queimava e suas pernas fraquejaram pela primeira vez. “Poções e um homem gordo que cria cobras” foram mencionados pelo cocheiro.

Atônito, ele não sabia o que pensar. E com o veneno agindo em seu sangue, ficava mais difícil ainda juntar as ideias. Soltou a besta em cima da mesa e cobriu os olhos, quando a dor nas pernas voltou. Mas mesmo passando mal e sem enxergar, seus sentidos ainda estavam aguçados o suficiente para perceber o jovem avançando sobre sua arma. Ele empurrou a besta de lado e puxou o rapaz pelo pulso. E então torceu o seu braço até que gritasse e parasse de reagir.

— Aprenda tudo com Carmona. Foi o que o magistrado disse? — Perguntou, mas seu pupilo só gritou em resposta. — Responda, assassino, fui um bom professor? Acredito que sim, mas infelizmente, não chegamos à última lição. Ensinei a você o que deveria ser feito, caso os monstros invadissem o Passo das Almas? Mostrei como avisar ao reino? Não. Não ensinei. Que pena.

Quando o osso do antebraço de Abel rasgou sua pele, um esguicho de sangue pintou de vermelho a parede da casa e ele rolou pela mesa até cair no chão se debatendo. O vigia pegou a besta de volta, foi até o armário, apanhou o machado e saiu em direção à muralha.

No caminho, as pernas tremeram de novo, mas ele seguiu. Pensou se seu pai ainda estaria vivo. Era impossível acreditar em qualquer coisa dita pelo magistrado, após toda essa conspiração armada sob as bênçãos do rei. E se era nisso que o reino havia se transformado, em um covil de covardes e envenenadores, não tinha mais motivo para ser guardado e protegido.

Carmona juntou todas as suas forças e em quatro machadadas quebrou a corrente que prendia a roldana. A corrente correu e o gigantesco portão começou a se abrir lentamente. O esforço tinha sido demais. Ele encostou-se na muralha e lentamente foi se sentando.

Não soube precisar quanto tempo se passou até ouvir os passos. Podem ter sido minutos, mas pareceram horas. E quando o primeiro gigante surgiu ao seu lado, parecia uma alucinação causada pelo veneno.

Devia ter uns seis ou sete metros. Era completamente marrom e vestia um tipo de saiote de couro que lhe cobria da cintura pra baixo. Não conseguia ver os detalhes com a visão embaçada. O vigia respirava com dificuldade, mas lutava com todas as forças para permanecer vivo.

O gigante finalmente o notou e veio em a sua direção. Quando ele se curvou para olhar de perto, ficou tão próximo do seu rosto que, mesmo sem enxergar direito, Carmona notou um trapo manchado de vermelho cobrindo metade da sua face. Pensou em perguntar seu nome, mas não conseguiu falar. O vigia não o temeu em nenhum momento. O gigante procurava por outra pessoa.

Abel caminhava a esmo pelo terreno, segurando seu braço quebrado.

— Não! — Gritou. — Você não tinha o direito. Não tinha.

O invasor partiu em sua direção a passos largos e Abel não teve tempo de correr. Com as duas mãos, o gigante aplicou-lhe um golpe como quem acerta uma mosca. O corpo destroçado do jovem tombou como uma marionete largada no chão.

O gigante soltou um grito ensurdecedor. Mais dois cruzaram a muralha. Um era esverdeado, mais baixo e menos forte. De alguma forma que o vigia não sabia explicar, ele parecia mais jovem. Já o outro tinha a pele cinza e era tão imponente quanto o primeiro gigante. Olhavam desconfiados ao redor, porém, nenhum incomodou Carmona.

Enquanto se esforçava para manter os olhos abertos e respirar, ele observou os três fuçarem sua casa, sua horta, o pombal e até mesmo a pira. Após alguns minutos, ninguém parecia mais interessado em nada, então se puseram em caminhada de volta à floresta. Nenhum olhou para Carmona quando passaram de volta. Logo em seguida, ouviu o portão se fechando, ao mesmo tempo em que sua vista escurecia.

Author: Geraldo de Fraga

Geraldo de Fraga nasceu no Recife, em fevereiro de 1979, e é formado em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco. Como escritor, foi colaborador do projeto Recife Assombrado, tendo seus contos publicados em duas antologias. Em 2009, lançou seu primeiro livro: Histórias que nos Sangram, uma coletânea de sete contos inspirados nas lendas e mitos da capital pernambucana.

3 thoughts on “Eles também nos vigiam

  1. Excelente leitura. Concordo com o comentário anterior, leria fácil e de bom grado um livro nesse universo. A leitura é leve é de prende, ótimo ritmo e ótima construção de cenário e personagens!

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