“Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria?”
Caetano Veloso, em Terra
“Levanta, me serve um café,
que o mundo acabou”
Eduardo Dusek, em Nostradamus
Ele lamentou que eu nunca tivesse acreditado que as naves portais nos levarão, sim, até Cérbero, e que lá a raça humana conseguirá, sim, mais uma vez. Por que justamente seu irmão ficaria na Terra, com os bilhões de humanos que não se salvariam? Antes que ele repetisse dramaticamente o porquê, propus um brinde. Sim, a ele. Afinal, o projeto NovaHome estava dando certo e a raça humana iria se mudar para a terceira lua de Júpiter. Pelo menos os dez mil que embarcariam nas naves. E ele, ele!, ele era um dos coordenadores do projeto, um quase-Deus, recriando nossa aventura. Para mostrar boas intenções, abri minha prazerbox e lhe estendi a agulha. Nós nunca brindamos. Sorriu com os olhos marejados e injetou uma dose na língua. Quando sentiu o sabor de amêndoas e cianureto invadir seu corpo, teve tempo apenas de me olhar, surpreso, e tombou para frente, morto. Extrai seu cristalino, apliquei em meu olho esquerdo para ter sua identificação quando entrasse na mothernave, e arrastei o corpo até o incinerador. Tive que abraçá-lo para erguê-lo do chão e despejá-lo lá dentro. Foi uma sensação estranha. Enquanto estava vivo eu nunca o havia abraçado. Adeus, meu irmão. Quem disse que nunca acreditei em você? Mas, como eu já te dissera, é uma pena, não nos veremos na terceira lua de Júpiter.
No programa de hoy écouteremos el coro mnemônico para oboés da Orquestra Telepresencial de YorkFord del Sul interpretando The War of the Worlds, do composer H. G. Wells, avec regência virtual del maestro Orson W. Notre portal de entretenews inform que la União do NorthMar fue alcançada por um breve tsunami de grau 22. D’accord los neurometeorologistas del Projeto NovaHome el abalo é only une consequence del terremoto desta morning na Falha de San Andreas, cuja overture de cerca de ten mil kilomètres transferiu to the ocean la Costa Oeste das Américas, desde el Golfo de la Califórnia hasta la Baia of Bayer-Atacama. Dans la sede da Continentes Unidos Federation Co., el Organizador revalidou el Incorporative Act Number Five dans tout le Newmisfério Pós-Ocidental e incitou a todos by Pedido Compulsório que permaneçam in calminex nos seus locais of lazerwork para evitar quelque risco. Transmix MidiaRadio Transponder Kane. Volvemos now to our programación, avec el coro mnemônico para oboés da Orquestra Telepresencial de YorkFord del Sul.
O meu bisavô era goleiro. Sim, doutor, posso vê-lo e ouvi-lo com perfeição. Acabo de injetar a rede neural na medula e os anestésicos estão poliativados. Já lhe falei que sou muito organizada? Claro, também conectei a corrente genética de transfusão. Goleiro de futebol, do tempo em que os humanos é que jogavam. Posso instaurar os bisturis e as células-tronco? A especialidade dele era agarrar pênalti. Manter o sangue frio. Vocês vão me resfriar para a cirurgia? Se eu morrer, me descongela, doutor. Deve dar tempo e não quero ir feito um picolé de gente. Não vou morrer? Que ironia, não, doutor? Posso sobreviver hoje, ficar milagrosamente curada, como o goleiro que faz a defesa impossível, e amanhã a raça humana estará extinta. O que será que prefiro? A extinção individual ou coletiva? Mesmo achando que faz muita diferença, pensei, pensei e não consegui me decidir. Os anestésicos já estão fazendo efeito. É a hora do pênalti, doutor.
Enquanto os céus passam, os elementos se desfazem, a Terra e as obras que nela há se queimam, eu aguardo, Senhor. Vós nos advertistes com o dilúvio que muitos recusaram-se a crer, mas eu ouço Vossa nova mensagem e tenho fé, assim como foram os dias de Noé. Eles se matam como lobos e morrem como cordeiros e caminham para o lago de fogo e de enxofre. E eu deveria ir em busca dos incrédulos e dos abomináveis e dos homicidas e dos fornicários e dos feiticeiros e dos idólatras e de todos os mentirosos? Lá estive, em meio ao sangue e ao fogo e às fezes, e dei-lhes Vossa palavra, Senhor. Eles, porém, não fizeram caso e Vos negaram por três e trinta e trezentas vezes. Eles olharão para trás e eu, Senhor, sou o seu rebanho, aguardando o sinal, porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos, Vós dissestes e cumprireis.
Vou pra igreja, sim, por quê? Vou todo dia, por que hoje não? Eu trabalho lá, esqueceu? Fazer a faxina como sempre fiz, há vinte anos. Dizem que é a profissão mais antiga do mundo, mais que as prostitutas. Alguém tem sempre que varrer a sujeira. E sou eu mesmo, varro a sujeira, o resto das orações, o que sobra dos milagres. Largar meu trabalho por quê? O mundo tá acabando? Pra mim, o mundo já acabou, desde que eu nasci não tinha mundo. Quem tem mundo que fique aí brigando, eu é que não. O que tinha de migalha, já catei e comi há muito tempo.
Não passei no teste? É uma pena. Vou sentir muita falta do meu trabalho. Comecei com os comerciantes da colmeiacity onde morava. Mas desde muito nova eu tinha jeito pra coisa. E sempre me esforcei para acertar. Quantos? Nunca contei. Mais de duzentos, eu acho. Não, não penso que seja um trabalho como outro qualquer. Poucas pessoas têm condição de fazer isso. Muito poucas. Mas eu certamente sou uma dessas. Vou sentir falta, sim. Não sei se afetou minha vida pessoal. Posso ser sincera? Já estou reprovada mesmo. Fui uma filha estúpida, uma mãe desleixada e uma péssima esposa. Mas não diferi muito do resto da família, das amigas ou de todos com quem convivi. Eu sei o que os psicogerentes botaram aí na minha ficha. Que sou uma psicopata, incapaz de considerar o outro. Ora, não fiz outra coisa na vida. Nesta profissão, se você não considerar o outro o tempo todo, está morta. A maioria das pessoas que matei provavelmente atirava tão bem quanto eu e provavelmente estava armada. Quem não está hoje em dia, não é? Pena que eu não vá embarcar. Eles certamente iriam precisar de mim lá em Cérbero.
Em sua dimensão relacional, semântica, o Projeto NovaHomeless repropõe o embricamento autoalimentativo de duas tradições, a do conceito mítico dos terrenos baldios do século XX e a re-formalização da fotografia digital da primeira metade do século XXI. Nessa fenda justaposta de multiplicidades, a proposta do bioartista NDO põe em função por vinte anos a maior máquina fotográfica da pós-história, reutilizando e ressignificando essa ultrapassada linguagem como instrumento de organização das energias vitais que pulsam organicamente no registro da quase também ultrapassada Terra, que elabora o retorno às suas forças primordiais em cada minuto regressivo, com o esfacelamento total da presença humana em sua superfície. E prismar um retorno ao secular fotojornalismo, palavra que já perdeu o sentido entre nós, é uma forma de se sintonizar, sincreticamente, com o planeta, que também estabelece sua retroalimentação ao tempo do não-humano.
“O que você está esperando? Relógios e leis são coisas do passado. Largue seus compromissos, agendas, promessas e venha para a Última Festa do Milênio. Aqui você pode se drogar, fazer sexo, rezar, morrer ou matar. Vale tudo, é a Última Festa do Milênio! O que você está esperando?” Foi o que eu coloquei no cyberconvite. Mas não veio ninguém. Nem sei o que eu ainda estou esperando.
Não saio daqui enquanto não fizer essa porra dessa transferência. Não tenho culpa se essa merda desse portal banksistem não aceita meu DNA. Os filhos da puta é que mudam isso todo dia. Fazem de sacanagem e eu não vou contatar com porra de androide nenhum. Vou é tacar um vírus nessa merda e não vai demorar muito. É de sacanagem, sim. Tecnologia é o caralho. E sem meu cashmoney a gente não vai pra bosta de lua nenhuma, tá me entendendo, seu imbecil? Que Deus o quê! Deus não resolve porra nenhuma. Não resolveu nem essa merda desse planeta, vai resolver meu acesso ao cashmoney? Caralho, Deus! O que você acha que eu vou levar pra outro planeta? Porra, Deus qualquer um carrega. Dinheiro, só quem tem.
Aquela azulada é a Pequena Nuvem de Magalhães. Fica a uns duzentos mil anos-luz daqui. Acho que sim, um dia a gente vai chegar lá também. E aquele é o planeta Marte e suas duas luas, Phobos e Deimos. É, era pra lá que a gente ia. Mas na órbita de Júpiter tem muito mais água, por isso a gente vai para Cérbero. Um nome estranho, não é? Cérbero era o cão de três cabeças que guardava a entrada do inferno. Se vamos para o inferno? Não sei, por enquanto estamos só tentando sair dele. Ouvi dizer que bombardearam a Costa Oeste das Américas, não houve tsunami nenhum. E que uma pandemia foi disseminada na Nova Tasmânia. Aquele ali é Vênus. Em outros séculos foi chamado de Estrela da Manhã. Bonita, não é? Antes do amanhecer é quando brilha mais. Não sei se ela vai aparecer no céu do nosso mundonew. Teve um cara que também ficou procurando por ela, fez até um poema, que dizia mais ou menos assim: Procurem por toda parte / Pura ou degradada até a última baixeza / Eu quero a estrela da manhã. Mas isso foi há mais de 150 anos. E essa bola escurecendo, escurecendo, é a Terra. Você acredita que, antigamente, vista daqui do espaço, ela era azul?
Aqui em Cérbero, cada um terá direito a 15 segundos de terror e poderá provocar explosões atômicas delimitadas ao seu habitat ou inocular um vírus letal no seu inimigo preferido. É um real-game, inventado pelos trans-homut, que substituíram a raça humana. Não, os humanos não morreram, criaram guelras e voltaram ao fundo dos oceanos, como a primeira ameba. Lá procuram entre as algas uma vacina contra a sua própria inteligência. E na superfície de Cérbero, grandes corporações escrevem poesia, indústrias de armas dançam balé e cartéis de drogas tocam sonatas.
Não, comandante, os hipercomputers não respondem. Nem os de origem nem os biorretransmissores. Nada. Não conseguimos saber para onde estamos indo nem acessar nenhuma das outras naves. Com certeza devíamos estar no comando da rede, somos a mothernave, sim, senhor. Não, senhor, a única resposta até agora é um comando de voz. Mas ele repete sem parar uma mesma mensagem, ativada de alguma memória remota de mais de dois séculos e que não faz nenhum sentido. O senhor quer mesmo que eu coloque? Sim, senhor. “ Expectativa emocionante no Maracanã, no Brasil e no mundo. Pelé, a segundos do gol do século. Atenção, caminha Pelé, chutou, é gol, goooool de Pelé, Pelé, mil gols, o mundo a seus pés, Pelé, milésimo gol, Pelé, o deus dos estádios.”
Este conto foi publicado originalmente na coletânea “É Assim que o Mundo Acaba”, lançada pela Editora Oito e meio.