Sobre o Ar e o Fogo

— Nós vencemos. Apesar de seu surto de loucura, nós vencemos, general — o rei do povo do ar concluiu. — Mas exijo saber o que aconteceu no campo de batalha.

Haviam enfim conquistado o Vale do Sol; o lugar sagrado pelo qual os quatro povos lutaram durante um século. Além de tratar os feridos e honrar seus mortos, os soldados deveriam estar comemorando a vitória, brincando de fazer ventar, respirando mais do que os pulmões podiam aguentar até que a cabeça ficasse leve.

Mas a cena que haviam presenciado tinha feito muitos perderem o ar. O batalhão inteiro encarara seu general com desprezo e confusão enquanto ele era arrastado para a presença do rei.

Alas afundou o rosto nas mãos, seus longos cabelos brancos formando uma cortina ao seu redor. A dor começava a dar lugar a uma revolta crescente.

— Vossa alteza exige saber? — A insolência fez os outros militares da tenda prenderem a respiração. — Você sabe o que aconteceu, Aeris. Todos sabem.

Os traços delicados do rei, comuns ao povo do Ar, contorceram-se em raiva.

— Você me contará exatamente como isso aconteceu e pedirá perdão em público. E então talvez eu tenha misericórdia. — O rei aproximou seu rosto ao de Alas. — Se me desobedecer, já sabe o que te espera.

Aeris não hesitaria em enforcá-lo. Para o povo do Ar, nada era pior do que morrer devagar, tentando sorver sem sucesso o elemento que era sua própria essência.

— Tudo bem, contarei a história toda. Não por medo da forca, mas sim porque ela merece ser contada. — Não havia mais deboche na voz do general. Apenas uma tristeza profunda, como a súplica do vento que tenta entrar por uma fresta na janela. Seus olhos estavam cinza-escuros, tais como nuvens de tempestade. — Tudo começou há mais ou menos seis meses… — Alas respirou fundo, deixando as lembranças tomarem sua mente.


Surpreendi-me ao ver quem adentrava nosso acampamento. Ele portava uma armadura completa e seu elmo cobria a cabeça e o nariz.

— Deixem-no passar! — Gritei, ao ver a bandeira branca hasteada.

Meus homens e mulheres abriram caminho para o cavalo negro de passo firme. O cavaleiro desmontou perto de minha tenda e tirou o elmo em sinal de respeito. Seus cabelos eram alaranjados e selvagens, como a chama de uma tocha.

— General Firenz, do exército de Fogo — apresentou-se, estendendo uma mão para selar a paz do encontro.

Eu sabia muito bem quem era. Sempre o via no campo de batalha, lançando chamas sobre meus soldados. Era nele em quem pensava quando escutava os gritos dos queimados na enfermaria, mas era a primeira vez que trocávamos palavras.

Seus olhos eram negros como carvão. Seus traços angulosos e ríspidos, como se tivessem sido esculpidos à mão. Tão diferentes dos meus.

— General Alas. — Apertei sua mão, selando a paz, e ouvi murmúrios de reprovação.

Os ombros dele relaxaram. Talvez meu inimigo não tivesse certeza de minha honra; talvez achasse que o mataria mesmo sob uma bandeira branca. Senti um misto de ofensa, pela desconfiança, e prazer, pelo medo que eu causara.

Indiquei minha tenda e o segui para dentro com alguns de meus militares.

— Gostaria que conversássemos a sós — Firenz solicitou, encarando-me.

— Não — capitã Aura protestou.

Avaliei o pedido com cuidado.

— Dispensados. — A capitã abriu a boca para se opor e eu levantei uma mão. — General Firenz pode dominar o fogo, mas não creio que consiga evaporar no ar. Cerquem a tenda e deixem-nos sozinhos.

Apontei a mesa e nos sentamos frente a frente. Encarei o inimigo por muitos segundos, em silêncio, e ele sustentou meu olhar com uma intensidade desconcertante.

— Seus olhos são sempre assim? — Firenz perguntou com uma curiosidade genuína.

— O quê? — Havia ouvido a pergunta, mas parecia tão inapropriada que preferi ter certeza.

— Seus olhos. São sempre tão claros? — Ele inclinou-se sobre a mesa para observar melhor e tive que controlar o impulso de me afastar.

— Não, a cor muda. — Sabia que meus olhos não continuariam com o cinza claro que indicava tranquilidade.

— Com base em quê?

— No tempo — menti. E me diverti com a mentira.

— Eles acabaram de mudar de cor. Agora estão azuis.

— O tempo é muito inconstante.

Firenz riu. A situação parecia irreal; estava sozinho com meu maior inimigo e ele ria como se estivéssemos tomando cidra nos fundos de casa.

— Por que estamos em guerra, general? — Ele estava sério de novo, seus olhos negros queimando os meus.

Eu não sabia o que o general queria com aquela conversa. Poderia discorrer sobre os cem anos de disputas pelo Vale do Sol, o local sagrado onde a manipulação elementar era fácil e natural; falar sobre todos os homens e mulheres que já haviam derramado sangue ali, ou mesmo sobre a impiedade da gente do fogo nas batalhas.

— Por um lugar ao sol, general Firenz.

— E por que temos que lutar, general Alas? O vale é grande o suficiente para conter muitas cidades. Há espaço de sobra para todos.

Não, a ideia não era absurda. Mas a sugestão era ingênua.

— Não cabe a você propor uma trégua, nem a mim aceitá-la. Isso é um assunto para reis, não para generais.

Firenz suspirou.

— Mas se tivesse a opção de acabar com essa guerra, o faria?

Que tipo de jogo general Firenz está fazendo?

— Generais não deveriam temer a guerra — provoquei.

— Pior que temer a guerra, é temer a paz.

A insinuação fez meu sangue ferver.

— Eu luto pela paz desde os doze anos — afirmei, apontando o indicador para o meu próprio peito.

E era verdade. Tudo o que eu havia feito, toda a dedicação, suor e sangue tinham apenas um propósito: trazer de volta os dias de paz que meus avós descreviam quando eu era criança e eles ainda eram vivos.

— Quantos homens você perdeu no último ano? — Firenz perguntou.

Duzentos e trinta e dois. Eu sabia, mas não diria.

— Meus homens sentem-se honrados em morrer defendendo seu povo.

— Não, você se sente honrado arriscando sua vida. — Ele apontou para mim e depois para fora. — A maioria dos homens que está aí não teve escolha. São pessoas do campo, que querem apenas voltar a salvo para suas famílias.

— Providenciarei isso assim que vencermos a guerra.

— E está disposto a sacrificar quantas vidas até lá? — Pela primeira vez o inimigo mostrava sinais de irritação. — Estou cansado de matar sua gente.

Trinquei os dentes e cerrei os punhos. Poderia mandar a tenda inteira aos ares se liberasse o furacão que se formava em minhas palmas.

— Você terá um descanso em breve, general Firenz. E ele virá por minhas mãos.

Ele meneou a cabeça, levantou-se e caminhou até a porta. Antes de sair, virou-se.

— Se mudar de ideia, mande um vento forte no meio da noite. Iluminarei o caminho para que possa me encontrar.

— Quando meus ventos chegarem até você, não será capaz de iluminar mais nada — garanti.

— Nunca se sabe… as pessoas podem ser tão inconstantes quanto o tempo — ele provocou. — Agora, por exemplo, seus olhos estão tão negros quanto os meus.

Firenz se foi. O ódio fervia em minhas veias.


As semanas seguintes foram duras. Intensifiquei os ataques e via o general inimigo durante a batalha. As perdas eram grandes dos dois lados; cabelos brancos e vermelhos misturavam-se entre os corpos inertes no chão.

Mas a pior parte era escutar as palavras de Firenz ressoando em meus ouvidos, insistentes como o vento, incômodas como queimaduras. Cada vez que via homens carregados de volta ao acampamento com a pele coberta de bolhas, perguntava-me se haviam tido uma escolha.

Ouvia agora o que não ouvia antes: lamentos de cansaço, o desejo de voltar para casa, o sonho de uma vida sem guerra. Não nas palavras, mas nas entrelinhas das conversas e nos suspiros dos momentos de silêncio.

Imaginei-me muitas vezes indo encontrar-me com Firenz. Pesei os riscos e vantagens: poderia ser uma emboscada, mas talvez conseguisse arrancar informações úteis. Claro que não concordaria com qualquer que fosse seu plano para acabar com a guerra, mas não faria mal escutá-lo.

No trigésimo dia após a visita, enviei o vento em direção ao acampamento inimigo. A noite estava avançada e talvez ele estivesse dormindo. Segundos depois, avistei luzes cruzando os céus. Montei em meu cavalo e cavalguei seguindo as flechas incendiadas. Era como me guiar por estrelas particulares.

Atravessei um campo aberto e depois algumas colinas. Vi a luz de uma fogueira adiante e parei para avaliar a situação. Se aquilo fosse uma emboscada…

Ouvi passos e saquei minha espada.

— General Firenz, quantos homens trouxe consigo?

— Estou sozinho, Alas. — Firenz aproximou-se com as mãos levantadas, mostrando que estava desarmado. — Se veio para me matar, esse é o momento ideal.

Perscrutei as árvores ao redor em busca de inimigos, ainda não estava convencido. O general estendeu a mão direita, e me senti mais seguro. Apertei sua mão, selando a paz, e senti sua forte energia subir por meu braço. Nos encaramos por alguns segundos, medindo forças e intenções, e então nos afastamos.

— Obrigado por ter vindo — Firenz agradeceu. — Venha.

Entramos em uma caverna iluminada por uma grande fogueira.

— Então, o que o fez mudar de ideia?

— Talvez eu seja mesmo tão inconstante quanto o tempo — respondi.

O general abriu um sorriso largo.

Ele então expôs suas ideias. Um plano detalhado, baseado na vontade de paz que reinava no coração dos soldados e do povo. Uma mistura de matemática e psicologia, um plano que se equilibrava entre a loucura e a genialidade.

As horas passaram rápido. Fui com a certeza de que não concordaria com nada do que ele dissesse, mas a intensidade e entusiasmo de Firenz me embriagaram.

Não sei se foi um surto de loucura ou lucidez, mas aceitei colocar em prática a primeira parte do plano. Pela segunda vez naquela noite, estendi uma mão, dessa vez para selar o acordo. Ele envolveu-a com suas duas.

— Nós podemos acabar com a guerra, Alas.

— Não teme que sejamos condenados por traição, general?

— Temo. — Minha mão continuava presa às dele. — Mas temo mais minhas desistências do que minhas derrotas.

Eu temia outras coisas. Temia a sensação estranha que crescia em meu estômago e as incertezas que se alastravam por minha mente. Estava colocando a mão no fogo por um estranho, e temia que Firenz não fosse o homem que parecia ser.


Na primeira semana ordenei um cessar fogo.

— Quero confundir o inimigo e forçar uma aproximação descuidada. Vamos esperar o momento certo para atacar.

— Não me parece sensato, general — Aura protestou.

— E o que considera sensato, capitã? — Questionei, com segurança e autoridade. — Continuar assistindo nossos homens serem incinerados? Estamos tentando isso há meses e nada indica que essa estratégia nos levará à vitória. — Encarei todos os meus oficiais superiores. — Eu sei o que estou fazendo. Essas são minhas ordens.

Os superiores não ficaram satisfeitos, mas confiavam em mim. Os dias sem batalhas inundaram o acampamento de alívio. Era possível ver nos ombros relaxados, nas gargalhadas em volta da fogueira, nos jogos de carta e nos roncos profundos.

Eu e Firenz começamos a nos encontrar em noites alternadas para relatar a evolução. Estendemos o cessar fogo por mais algumas semanas e em seguida fizemos algo diferente.

— Vou levar uma tropa para um reconhecimento no Vale do Sol — informei aos meus oficiais.

— O inimigo pode estar esperando esse tipo de movimentação, senhor — meu major ressaltou.

— Antes não queriam que eu esperasse, e agora não querem que avance?

— Um avanço com um grande batalhão seria mais sensato, general.

— Não sem um reconhecimento prévio.

— Mas por que o senhor vai comandá-los até lá e não um de nós?

— Porque meus poderes são muito maiores — eu disse e eles suspiraram em derrota. — Uma tropa pequena pode ser massacrada se for atacada de surpresa. Mas não se eu estiver junto.

Conduzi vinte soldados até as colinas que antecediam o vale. O efeito daquelas semanas sem batalhas era impressionante; o chão ainda estava negro por causa das queimadas, mas não havia fumaça nem gritos. Os homens suspiraram e eu sabia o que se passava em seus corações.

— Um dia poderemos viver aqui, quando a guerra acabar — divaguei.

Sobrancelhas levantaram-se.

— Eu achei que o senhor gostasse da guerra, general — uma soldado retrucou antes que pudesse conter a língua.

— Não, eu gosto dos ares que nos aguardam no final. A guerra é o caminho, mas o destino é a paz. — Eles sorriram e foquei meus olhos no horizonte, como se a pergunta que estava prestes a fazer não fosse mais que um sonho distante. — Se pudessem optar entre levar a guerra por mais alguns anos ou firmar a paz com o povo do Fogo, o que escolheriam?

— Essa possibilidade existe? — a soldado perguntou.

— Bom, isso depende dos reis, não de nós, pobres mortais.

Conversamos mais sobre o assunto enquanto observávamos o Vale do Sol. Quando finalmente voltamos ao acampamento, os corações estavam leves de esperança.

E entre os soldados do Ar, a esperança espalhou-se rápido como fogo.

— Como foi com seus homens? — Firenz perguntou-me.

Contei sobre a excursão às colinas e as conversas que rodeavam agora o acampamento. O plano parecia funcionar.

— Você é um bom homem — ele afirmou, encarando-me com intensidade.

Suas palavras encheram meu peito e uma tensão estática se formou entre nós. O ar ficou pesado; o momento de silêncio estava cheio de palavras não ditas. Encarei de volta os olhos negros incandescentes e meu corpo se aqueceu com um calor que nada tinha a ver com a fogueira da caverna.

— Não tanto quanto você. — Havia muitas coisas que gostaria de dizer, mas meu povo tinha o costume de deixar palavras no ar, subentendidas. — Só gostaria que tivéssemos nos conhecido antes.

— Cuidado com o que diz. — O aviso soou como ameaça. — Palavras são como faíscas, Alas.

— Talvez eu não tema mais o fogo, general Firenz.

Ele se levantou e eu fiz o mesmo; meu coração batia como um tambor. Seu olhar estava em chamas e dei alguns passos para trás, tentando lutar contra os meus instintos. Logo minhas costas encontraram a pedra fria da caverna. Não tinha mais para onde fugir. Estava encurralado. A sensação era avassaladora.

Firenz avançou, olhando-me fixamente. Conforme se aproximava, o calor que emanava de seu corpo ficava mais intenso. Ele alcançou-me e encostou seu corpo ao meu, pressionando-me contra a parede. Segurou-me pela nuca. Eu estava ofegante. Aproximou seu rosto e disse algo quase dento da minha boca.

— Seus olhos.

Qual era a cor que meus olhos tinham agora?

Não consegui ter consciência de nada além daquele beijo. Parei de pensar na guerra, na paz, no Vale do Sol, nos meus homens vivos e nos que perdi. Não sabia mais quem era ou onde estava. O gosto do fogo era doce, salgado e quente. Beijei-o de volta com força e voracidade, e a chama se alastrou por todo meu corpo.

Ele parou e se afastou. Perdi o ar como se tivesse corrido quilômetros e precisasse de sua boca para respirar. Enfiei minhas mãos nos cabelos vermelhos e tentei puxá-lo de volta para perto. Firenz sorriu, afundou o rosto em meu pescoço e me mordeu. O fogo que circulava em minhas veias deu lugar a um arrepio gélido.

O que estou fazendo? Ele deveria ser meu pior inimigo…

Firenz puxou minha túnica para cima e eu fiz o mesmo com a dele. Nossos corpos, tão diferentes, pareciam feitos um para outro. Corri minhas mãos pelo músculos fortes de seu peito e abdômen e ele soltou um gemido gutural. O desejo estampado nos olhos de carvão incandescente queimaram o último fio que me prendia à realidade. Era como flutuar no abismo da insanidade.

Firenz me jogou no chão e eu o puxei para cima de mim. Não era possível haver delicadeza entre dois homens de guerra. Fiquei preso entre duas rochas; o chão estava gelado e seu corpo fervendo. Não tinha escapatória e tampouco queria escapar. Ele grudou seus lábios nos meus, deixando-me de novo sem ar. Então me soltou para passar a língua quente em meu pescoço, depois em meu peitoral, em minha barriga…

Nessas poucas horas duvidei que ainda fosse do povo do Ar. Estava totalmente consumido pelo fogo.


Continuamos com os planos nas semanas seguintes, agora movidos por um novo desejo: se a guerra acabasse com um acordo, talvez pudéssemos ficar juntos. Bolávamos planos mirabolantes de fuga e debochávamos de nós mesmos. Deserção era crime grave e sabíamos que nossos exércitos nos achariam.

Nos encontrávamos todas as noites e tínhamos que manter o controle para dedicar algum tempo às discussões. Aquilo tudo parecia um sonho, um conto de fadas distorcido e sem nexo. Ríamos o tempo todo, enquanto conversávamos e também durante o sexo. Gostávamos de jogos de sedução, de medir forças e de nos tratar pelos títulos militares. General Alas. Era estranho e quase proibido a partir de então ouvir outras pessoas me chamarem assim.

Foi numa manhã de ventos fortes que o som das cornetas reais cortou o ar. Atravessei o acampamento, incrédulo, e organizei os homens para receber o rei. Minha mente estava a mil e meu coração, preocupado. Ele cumprimentou os oficiais superiores e parou na minha frente.

— General Alas.

— Vossa alteza — saudei-o e me curvei.

— Vim para acabar com essa guerra de vez.

Então o desejo de paz cheg ou ao palácio. Nosso plano funcio nou .

Entramos em minha tenda.

— Ouvi boatos, general. — Rei Aeris encarou-me sério. — Boatos de que uma trégua com o povo do Fogo seria possível. E perguntei-me se isso poderia ter sido gerado aqui.

— Não temos tempo para boatos no campo de batalha, vossa alteza — repliquei com a mesma seriedade. — Ninguém tem medo de lutar, mas no fundo o que todos querem é a paz.

— Teremos paz assim que ganharmos a guerra. — Quis respirar mas o ar parecia ter se solidificado. — E se vocês não têm medo de lutar, por que não temos uma batalha há mais de cinco meses?

— Uma retirada estratégica para recuperação de nossos soldados. E também a esperança de um avanço insensato do inimigo.

— Esse avanço insensato aconteceu?

A pergunta era direta. Engoli em seco.

— Não.

— Foi essa trégua passageira que deu espaço para o boato — o rei concluiu. — Nossos soldados estão recuperados. Não há mais o que esperar.

Por ordens do rei, faríamos uma investida surpresa de grandes proporções. Uma luta final, e os ventos estavam ao nosso favor. Avaliei minhas opções; podia demandar um desafio real e, se me tornasse rei, proporia a trégua. Mas os poderes de Aeris eram muito maiores que os meus e na preparação para a batalha ele havia concentrado tanta energia que o vento emanava dele sem esforço. Podia também fugir e convencer Firenz a partir comigo. Mas sabia que ele não aceitaria.

Havia uma última opção.

Uma traição.

Fui para trás de minha tenda, murmurei algumas palavras dentro das mãos e as soprei em uma brisa.

Estou chegando.

Firenz reconheceria minha voz e o exército inteiro do Fogo ouviria o alerta no ar.


Marchamos antes do alvorecer.

Tinha lutado muitas batalhas, mas nenhuma me deixara tão nervoso. O plano era atravessar o Vale do Sol até onde o inimigo estava acampado. Mas quando chegamos ao topo das colinas, avistamos centenas de pontos vermelhos no centro do vale.

— Eles estão esperando por nós — Aeris vociferou, entredentes. — Como sabiam?

— Podem ter deixado um batedor perto de nosso acampamento — minha capitã respondeu. — Perdemos o efeito surpresa, mas nossos números ainda são maiores.

— Eu lutarei — o rei informou.

Enquanto todos protestavam, comemorei em silêncio. Se ele morresse, eu conseguiria armar um golpe. Aeris, de cima de seu cavalo branco, fez um discurso sobre força e orgulho que eu teria admirado meses atrás. Mas, naquele dia, apenas me encheu de tristeza.

Cavalguei à frente, ao lado do rei. Descemos as colinas como uma onda gigante. Bati os calcanhares e inclinei-me para frente; precisava chegar a Firenz antes que os outros.

Avistei-o muito antes que os exércitos se chocassem. Ele também me viu, e cavalgou em minha direção com a espada em punho. Em seus olhos vi a certeza de que não me machucaria. Firenz lançou-se sobre mim, derrubando-me do cavalo. Fiz um vento forte para que nosso impacto fosse amortecido. Rolamos no chão de uma forma tão similar ao que fazíamos na caverna que não pude deixar de pensar em como o amor e o ódio eram similares. Levantamos e nossas espadas se chocaram.

— O que aconteceu? — Ele perguntou, pressionando sua lâmina contra a minha.

— O rei — respondi, ofegante. — Enquanto ele estiver vivo, a guerra não terá fim.

Firenz me deu um chute leve, mas interpretei meu papel e caí para trás. Rolei para o lado quando ele tentou fincar sua espada em mim.

— Então terei que resolver esse problema.

Nos separamos. Os soldados do Fogo sabiam quem eu era, e atacavam-me em três ou quatro ao mesmo tempo. Eu os afastava com rajadas de vento e usava a espada contra os que chegavam perto demais.

Meus homens caíam também. O poder de Firenz era avassalador. Seus dedos lançavam chamas nos que o atacavam e os soldados do Ar urravam enquanto rolavam no chão, em vão.

Mas o maior estrago era feito por Aeris; seus ventos agiam como bombas. Jogavam os soldados a muitos metros de distância, seus rostos deformados e membros despedaçados com as lâminas invisíveis de ar.

Firenz correu em direção ao rei. Aeris sentiu o perigo e mexeu as mãos para que uma explosão de ar atingisse o general inimigo. Firenz lançou sua própria explosão e o encontro das duas soou como o anúncio da pior tempestade de todos os tempos. O trovão estremeceu o chão e fez muitos virarem-se para ver o que acontecia.

Meu coração se encheu de esperança. O general era forte o suficiente para lutar contra o rei. Ele poderia vencer. Vi um movimento ao meu lado e virei-me. Capitã Aura tinha um faca na mãos.

Ela nunca errava.

Tudo aconteceu em segundos mas pareceu demorar séculos. Lancei o ar na direção de Aura, mas meu vento chegou tarde; quando a capitã foi derrubada, a faca já havia partido de suas mãos.

— Não!

A faca se cravou no pescoço de Firenz. Corri o mais rápido que pude e ouvi o corpo pesado atingir o chão com um ruído surdo.

Tudo à volta parecia um borrão. Eu só tinha olhos para a cena à frente. Ajoelhei-me e encarei o homem que mais havia admirado em toda minha breve existência.

— Firenz, fique comigo. Não feche os olhos, fique comigo.

Ele não conseguiu dizer nada. Encarou-me uma última vez com aqueles olhos negros incandescentes e de repente o brilho sumiu. O sangue se espalhava pela terra escura, formando um halo vermelho em volta de sua cabeça.

Eu estava vazio e ao mesmo tempo transbordava de dor. Todos os planos, tudo que poderíamos ter vivido juntos… Meu peito ardeu tanto que tive que berrar. Talvez, se minha garganta se rasgasse, se a dor física se sobrepusesse, talvez minha alma não doesse tanto.

Agarrei-me ao seu corpo e beijei a boca imóvel como se aquilo pudesse trazê-lo de volta. Como nos contos de fada. Braços tentaram me envolver e mandei um vento para afastá-los. Não havia mais nada além de mim e dele… Firenz, antes tão quente, começava a esfriar.

Um furacão me envolveu e me jogou para longe de Firenz. As pancadas que vieram a seguir pareciam de pedra, não de ar. Meus soldados pressionaram meu rosto na terra escura e cordas foram amarradas prendendo meus braços para trás. Não havia como movimentar as mãos, logo, não podia mais lutar.

Capitã Aura encarou-me como se eu tivesse enlouquecido. Ela me arrastou pelo campo de batalha como se faz com prisioneiros de guerra, enquanto mais e mais soldados do fogo caíam.

Firenz estava morto, seu povo, derrotado e eu, condenado.


Alas olhou para os homens à sua volta. Os olhos negros do rei denunciavam seu ódio, mas havia olhos cinzas também. Olhos que haviam compreendido o tamanho da tristeza que dominara seu coração.

— Você irá propor uma trégua entre os povos, agora que ouviu minha história?

— Eles se renderam, Alas. A guerra acabou. — Seus olhos ficaram ainda mais escuros. — Você nos traiu. Juntou-se ao inimigo. Planejou minha morte. — A voz de Aeris tremeu. — E por isso eu o conde…

— Demando um desafio real, pelas leis que concedem a todo cidadão o direito de lutar pelo trono.

Aeris sorriu.

— Um traidor perde instantaneamente esse direito.

— Minha demanda veio antes de minha condenação.

O rei o encarou com desgosto, como se mirasse um monte de lixo. Mas havia testemunhas de que Alas o desafiara antes que Aeris o declarasse um traidor e, por isso, teve que acatar o pedido.

Os soldados reuniram-se em um círculo. Pelo olhar do rei, acreditava que o general entrara em uma missão suicida, um subterfúgio para morrer com dignidade. Aeris já tinha visto Alas em ação muitas vezes e sabia que o poder do general não era páreo para o seu.

Nos poucos segundos em que a corneta soava, a imagem do rosto de Firenz formou-se, vívida, na memória de Alas.

O primeiro ataque veio de Aeris. O general bloqueou o golpe com um escudo de ar e o impacto fez muitos ao redor caírem no chão. Alas ainda não conseguia aceitar a morte de Firenz. Atacou, projetando um misto de negação, de revolta e culpa. O rei desviou aquele vento com uma manipulação da pressão atmosférica, como se espantasse uma mosca de seu caminho, e contra-atacou.

Alas, num gesto inconsequente, atacou ao mesmo tempo. Ventos opostos se chocaram com um estrondo, levantando poeira, fazendo ambos combatentes caírem e machucando pessoas ao redor.

O general viu que sua capitã estava desacordada e se arrependeu. Afinal, havia feito tudo aquilo por seu povo, para que a guerra acabasse e ninguém mais se ferisse. Lembrou-se das palavras de Firenz, das noites na caverna e de seus olhos incandescentes.

Firenz estava morto, mas seu sonho de paz poderia sobreviver.

A energia queimou no corpo de Alas, e mesmo sem vê-los, sabia que seus olhos estavam vermelhos como fogo.

Os olhos de Aeris, antes negros, adquiriram um branco lívido. A explosão que se seguiu transformou o rei em uma fumaça rósea. Nenhuma parte de seu corpo ficou inteira para que pudessem enterrá-lo.


Alas pousou uma flor sobre o túmulo de Firenz. Fazia isso todos os dias. O novo rei do Ar escolhera um lugar especial no Vale do Sol para o cemitério, ao lado do bosque mais verde e do rio mais claro.

Sessenta anos haviam se passado desde o fim da guerra. Alas concedera uma parte do vale à cada um dos povos e, em troca, todos os reis haviam assinado o acordo de paz. O Acordo de Firenz. Nenhum sangue seria derramado naquele lugar sagrado.

Sua pele estava enrugada e seus ventos fracos. Apenas sobrevivera todos aqueles anos para garantir que o sonho de paz do único homem que amara se tornasse realidade. E vinha sempre contar a ele como seu plano funcionara e como todos eram gratos pelo sacrifício que havia feito.

Agora a missão de Alas estava cumprida. Podia finalmente descansar.

Ele poderia estar no palácio, deitado entre veludos e sedas, mascando resina de papoula para aliviar a dor. Seus súditos segurariam suas mãos e diriam palavras gentis. Mas o rei não se importava com a dor; depois da perda de Firenz nada mais o fizera sofrer de verdade. Gostava da sensação da grama macia sob as costas e do calor do sol acariciando seu rosto. Não precisava de ninguém naquele momento: ao lado do túmulo, não se sentia sozinho.

Tocou o mármore frio com a ponta dos dedos, encheu o pulmão de ar e fechou os olhos de um cinza límpido. Estava tranquilo. Murmurou nas mãos e soprou sua última brisa, na esperança que suas palavras chegassem ao mundo dos espíritos.

Estou chegando.

Author: Paola Siviero

Paola Siviero nasceu em Belo Horizonte e foi criada em São José dos Campos, no interior de São Paulo. É amante de grandes metrópoles e vilas medievais, de albergues e hotéis cinco estrelas, de pizza e uma boa salada, praia e montanha, sofás confortáveis e trilhas acentuadas, dentre outras deliciosas contradições. Sagitariana, otimista demais, com a cabeça lá no alto – de onde o tombo dói mais. Tem contos publicados nas antologias “Piratas” (Cata-Vento, 2015), Imaginarium (Andross, 2015) e Híbridos (Buriti, 2015)

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