Amor: Uma Arqueologia

Um homem chora. Ele acabou de tomar trinta e dois comprimidos de Vicodin. O derivado da morfina é fatal em doses altas. Ele sabe disso: ele pesquisou.

O homem chora porque tem medo. Mas não é de morrer. O homem tem medo de continuar vivendo num mundo que perdeu totalmente o sentido para ele.

A dor é insuportável, e ele só quer dormir. De preferência sem acordar.

Ele vai ter o que deseja.

 

2.

 

A primeira vez que Nina se cortou por acidente foi na praia. Ela era criança e havia se afastado um pouco dos pais. Daí a mexer na areia e encontrar a concha foi um segundo. Que se prolongou num minuto extasiado enquanto a menina examinava aquela coisa de que ela só tinha ouvido falar, e já quase estava extinta mesmo na sua infância, mesmo naquela praia deserta do Uruguai. Que se prolongou num momento interminável de dor quando a borda afiada da concha cortou a almofada fofa de sua mãozinha, e o sangue brotou, espesso e negro. Foi só então que Nina descobriu que era daltônica.

 

3.

 

— Nunca descobrimos quem passou o gene do daltonismo — sua irmã Franka lhe diria trinta anos depois, de pé naquela mesma praia no Uruguai.

Nina deu de ombros.

— É randômico. Pode ter sido algum parente nosso de trezentos anos atrás. Ou então o gene sempre esteve latente e eu sou o primeiro caso.

Franka riu.

— Pra quem vê o mundo em preto e blanco, você complica demais as cosas.

— A ideia desta viagem não foi minha — Nina disse.

 

4.

 

A primeira vez que Franka se cortou não foi por acidente. Foi por amor. Ela mesma disse isso à mãe, ainda no hospital.

— Filha, não foi por amor. Foi por loucura. Amor não existe. Vai por mim.

Franka passaria os próximos anos sem tentar se matar, mas anos de terapia nunca lhe revelariam tanto quanto aquelas palavras de sua mãe.

 

5.

 

Infelizmente, elas não se repetiriam. Alguns anos depois, a mãe de Nina e Franka morreria de cirrose num hospital de Porto Alegre. O pai —

Quem era mesmo o pai?

 

6.

 

Um homem se casa.

A mulher é a mulher da vida dele, mas ele ainda não sabe. Ele só vai descobrir isso onze anos depois, quando se separarem, e ele tentar voltar depois, arrependido. A ex-esposa colocará a culpa nele e na mulher com quem ele estava tendo um caso. Ela não estará errada.

O homem vai se arrepender (isto já foi dito). Ele tem medo. Medo de um futuro sem a ex, medo de um futuro sem a possível atual, medo de ficar sozinho. E, tendo esse medo, perderá tudo.

 

7.

 

A identidade do pai não era um mistério para elas. O coração do pai sim.

— Como duas pessoas tão diferentes se apaixonaram?

— Agora quem está sendo simplista é você — disse Nina. — Isso é o que mais acontece. Mas eles não eram tão diferentes assim.

— Como não, porra?

 

8.

 

Um homem se casa.

A mulher é a mulher da vida dele, mas ele ainda não sabe. Ele só vai descobrir isso onze anos depois, quando se separarem, e ele tentar voltar depois, arrependido. A ex-esposa colocará a culpa nele e na mulher com quem ele estava tendo um caso. Ela não estará errada.

O homem tem medo. Medo de um futuro sem a ex, medo de um futuro sem a possível atual, medo de ficar sozinho.

Mas respira fundo e segue em frente. A mulher com quem escolheu ficar está do seu lado, e a força que ela lhe dá basta.

No ano seguinte, eles têm uma filha. O homem está no paraíso.

 

9.

 

O que Nina lembrava:

O pai sempre animado, exaltado, falando muito, gesticulando ainda mais.

A mãe sempre quieta, pensativa, quase sem palavras, levando o chimarrão à boca e encarando a tela do computador para se concentrar no trabalho.

 

10.

 

— Ele não conseguiu salvar a relação — ela disse, deixando o livro de lado. — Tudo o que ele conseguiu foi inventar um mundo onde a coisa deu certo.

— Mas las cosas non son assim em preto e blanco.

Nina se virou para Franka, irritada.

— Por que você não para com essa merda de ficar falando em brasiguaio?

A irmã não se abalou.

— Porque es eso que sou — ela respondeu, acendendo mais um cigarro. — E você, você sabe quem é?

Nina não respondeu. Ficou olhando o mar.

 

11.

 

O que Franka lembrava:

Um pai ausente, mais voltado para sua arte que para sua família.

Uma mãe cujos pensamentos tinham de ser tirados a fórceps da cabeça.

Franka saiu de casa cedo. Estava surda de tantos silêncios.

 

12.

 

— Você puxou ao seu pai — era uma das poucas coisas que Nina se lembrava de ouvir sua mãe dizer quando era pequena.

Um dia ela criou coragem para perguntar por quê.

— Muito romântica — a mãe disse simplesmente.

 

31.

 

Para o homem, a vida se tornou um inferno.

Ele sonhava com tanta coisa boa. Uma vida longe do emprego imbecilizante, de preferência como escritor (professor de literatura já valeria, pelo menos para começar), uma casa bacana (de preferência na Inglaterra, onde ele tinha vivido na juventude), uma família moderna, hipster, onde tudo seria lindo. Ele sonhou com isso um dia.

Mas a realidade é dura. E quase nunca se encaixa nos sonhos.

O homem se separou da mulher três anos depois que a filha nasceu.

 

14.

 

Franka deu de ombros.

— No sei. Acho que não puxei a nenhum dos dois.

— Puxou sim — Nina disse, sem olhar para a irmã. — Você é a cara da mamãe.

— Você acha mismo?

— Acho.

 

15.

 

O que nenhuma das duas lembra:

Onde foi que tudo deu errado.

— Mas não dá errado sempre? — disse Franka.

A pergunta era retórica, e Nina sabia.

— Nem sempre. Às vezes a vida acaba antes.

A última frase foi dita pelas duas ao mesmo tempo.

Nos últimos tempos vinha acontecendo muito.

 

16.

 

Para o homem, a vida se tornou um inferno.

A vida não foi exatamente aquilo que ele esperava. Com o tempo, ele fez o que quase todo homem faz (e jurava a si mesmo que jamais faria isso): arrumou outra.

Exatamente o que ele havia feito anos antes.

Mas desta vez as coisas tomaram outro rumo. Um dia, no motel com a outra, ele se pegou pensando se aquilo era amor ou só uma fuga. Acabou o relacionamento na semana seguinte (ainda tinha medo), e decidiu que ia se dedicar mais à mulher e à filha.

E viveu feliz. (Não tanto quanto queria, e nem sempre, mas o possível, e ele aceitou.)

 

17.

 

As cidades onde elas viveram com os pais:

São Paulo. Porto Alegre. Montevideo. Pajas Blancas. Rio. Londres. Oxford.

— Mas terminou no Círculo Polar Ártico — disse Nina. — Onde talvez tivesse que ter terminado o tempo todo, afinal.

— Como Frankenstein — disse Franka.

— Sim — Nina concordou. — Mas sem o monstro.

— Isso diz você.

Nina fuzilou a irmã com o olhar.

— Não seja escrota.

— Eu não estou chamando ele de monstro, idiota — disse Franka. — Eu não.

Nina suspirou.

Sua irmã tinha razão. Como quase sempre, aliás.

 

18.

 

O homem está no Círculo Polar Ártico. Na verdade, um pouco ao norte, na cidade norueguesa de Svalbard, antiga Spitsbergen.

Um dia o homem chegou a pensar em se matar. Isso não aconteceu. O homem começou a se tratar da depressão que o acometia, e praticar esportes. Ciclismo, natação, corrida.

Um dia ficou sabendo da maratona de Svalbard, a mais longínqua do planeta. Segundo uma amiga norueguesa que ia com frequência ao local, a cidade não era tão inóspita quanto os livros e a web faziam parecer. Havia até um refúgio para escritores — outra coisa que ele nunca havia resolvido direito em sua vida. Por que não começar lá?

Ele sumiu no meio da corrida. Embora o percurso fosse todo bem vigiado, impossível não haver pontos cegos de vigilância (os drones da época não eram feitos para voar em um clima tão frio).

Ele nunca mais foi encontrado.

 

19.

 

— Como? — perguntou Nina.

— Ele era uma besta — respondeu Franka, com a sinceridade que lhe cabia ao nome.

— Não era. Você sabe disso.

— Não sei. Não lembro.

— Então deixe que eu me lembre.

Nina se lembrava. De um homem — um viajante, um homem inquieto, inseguro (Nina lembrava de ver seu pai chorando, várias vezes, às vezes escondido, às vezes não).

 

20.

 

Mas Franka também se lembrava.

De um homem travado, parado no tempo, com uma dificuldade imensa de tomar qualquer atitude que pudesse mudar sua vida e a das pessoas ao redor, ainda que fosse para o bem, ainda que fosse absolutamente necessário.

— Será que vimos o mesmo pai? — Nina perguntou, mais para si mesma.

— Você sabe a resposta — disse Franka.

Nina respirou fundo. E consultou o Dispositivo mais uma vez.

 

 

21.

 

O funcionamento do Dispositivo, como todos sabem, é complicado demais para o usuário padrão — tão complicado quanto, digamos, um smartphone trinta anos atrás. Ninguém sabe consertar, mas todo mundo sabe usar (ou acha que sabe, o que quase sempre dá no mesmo).

Ele tem basicamente duas funções: acessar realidades alternativas e agregar essas timelines a fim de montar uma história coerente.

Resumindo, é um bom brinquedinho.

Quando foi inventado, ninguém o levou a sério. Apenas um ano depois, pesquisadores da Universidade de Greenwich em parceria com a USP conseguiram confirmar a autenticidade das alegações dos criadores do Dispositivo. Utilizando circuitos taquiônicos, eles conseguiam visualizar linhas do tempo ramificadas e acessar pontos de virada, nós na rede, enfim, momentos em que a história da vida das pessoas poderia ter sido diferente daquela em nosso mundo.

Foi assim que Nina e Franka tiveram a ideia de juntar as peças do grande quebra-cabeças que foi o amor de seus pais.

 

22.

 

Quem teve a ideia foi Nina.

Assim que os Dispositivos se tornaram acessíveis, ela comprou o seu correndo. Eram acessíveis mas não eram baratos: ela ficou devendo várias horas de méritos, que deveriam ser pagos com trabalho voluntário em qualquer instituição cadastrada da Comuna Livre Paulistana.

Para ela valia a pena.

 

23.

 

Quem teve a ideia foi Franka.

Assim que os Dispositivos se tornaram acessíveis, vários amigos seus compraram correndo. Ela não tinha muita paciência para modismos; levou um tempo para comprar. Mas quando percebeu que o Dispositivo continha possibilidades que valia a pena explorar, quase se arrependeu de não ter comprado antes.

 

24.

 

Quando as duas se encontraram pouco depois, em Pajas Blancas, no litoral oeste de Montevidéu, cada uma já tinha em mente o que queria fazer.

— Eu quero tentar descobrir o que aconteceu com papai — disse Nina.

— Mas você sabe que o Dispositivo só funciona para descobrir paralelos, certo?

— Em termos. A minha teoria é que, se fizermos um ajuste fino, vamos conseguir aproximar linhas paralelas o suficiente para que algumas timelines sejam praticamente indistinguíveis da nossa.

— Bom, você percebe que o começo já está errado.

— Aí é que você se engana — disse Nina. — Dois Dispositivos pensam melhor que um. Foi por isso que eu chamei você.

— Mesmo?

— Sim. Eu li um paper sobre usos possíveis do Dispositivo. Aparentemente se pusermos dois ou mais para funcionar em tandem, eles poderão traçar com mais precisão uma timeline.

— Como vamos fazer isso?

— Aqui, eu te mostro.

 

25.

 

Levaram dias. A quantidade de universos para vasculhar era matematicamente infinita, mesmo levando-se em conta que não precisariam passar em revista os mundos mais extremos no espectro, aqueles onde a vida na Terra não havia chegado a existir ou onde já havia se extinguido.

Mesmo assim, perceberam que, quanto mais refinado o ajuste, maior o número de ramificações que ele criava.

Ambas haviam estudado o paradoxo de Zenão de Eleia na escola. Nenhuma disse para a outra, mas descobrir que ele abria uma porta para o concreto era assustador.

 

26.

 

Um homem grita de dor e profere uma maldição.

Esse homem está num palco. É sua última cena como Mercúcio, numa adaptação moderna de Romeu e Julieta para os palcos de São Paulo. Que a peste caia sobre vossas casas! Estou morto.

Mas o homem está vivo, cada vez mais vivo. Na plateia, seu namorado o vê, impressionado e apaixonado.

Ambos estão felizes.

 

27.

 

— No parece haver un padron — disse Franka. — São tantas possibilidades que me deixam zonza.

— E só vimos algumas timelines dele — concordou Nina. — E se víssemos as nossas?

Franka soltou um riso debochado.

— No, gracias. Me basta a mia própria.

— Gozado, você se orgulha tanto de ser uruguaia mas mora em Londres.

— E daí? Não tenho quem me prenda en Uruguay.

— Achou alguma pista do papai aí?

— Não procurei.

— Mentirosa.

 

28.

 

Sim, Franka havia feito suas investigações por conta própria antes mesmo do Dispositivo. Ela sabia que seu pai havia estudado na Inglaterra quando jovem, mas isso tinha sido antes da web. Ela não conseguiu encontrar um registro sequer da passagem dele pelo Reino Unido.

Depois da separação, seu pai manteve contato constante por alguns anos. Um dia, ele mandou um email para sua mãe dizendo que ia mudar de cidade, buscar novas perspectivas.

Nunca mais ouviram falar dele.

 

29.

 

Sim, Nina havia feito suas investigações antes mesmo do Dispositivo. Ela sabia que seu pai havia estudado em Seattle quando jovem, mas isso tinha sido antes da web. Ela não conseguiu encontrar um registro sequer da passagem dele pelos Estados Unidos.

Depois da separação, seu pai manteve contato constante por alguns anos. Até a tentativa de suicídio.

A partir daí, tudo o que Nina conseguia eram notícias esparsas. Seu pai estava se recuperando. Seu pai estava melhor. Seu pai tinha ido para outra cidade, mudar de ares.

E um dia percebeu que não estava mais recebendo notícias.

 

30.

 

Toda vez que as duas se encontravam, a frustração aumentava.

— É uma luta impossible — disse Franka, acendendo um cigarro. — E no tenemos muito tempo.

— Como assim? — perguntou Nina. — Você está bem?

Franka riu.

— Claro que si. Você não ficou sabendo da proibição?

— Que proibição?

— O governo vai proibir o uso do Dispositivo. Tem uns grupos imbecis com uma ação no Supremo alegando que o Dispositivo está provocando caos entre as famílias.

Nina franziu a testa.

— Não fiquei sabendo disso.

— Dê-se por satisfeita — disse Franka, apagando o cigarro. — A vida aí parece melhor que aqui.

— Onde você arrumou isso?

Franka deu de ombros.

— Aqui tenemos muchos.

— Vamos nos ver de novo? — Nina perguntou.

— Tudo é possível.

Nina deu um sorriso cansado.

— Você é bem nossa mãe mesmo. Ela sempre dizia isso — principalmente quando era impossível.

Foi a vez de Franka sorrir.

— Você teria sido uma boa irmã aqui deste lado.

— Você também, hermanita.

E desligaram os Dispositivos.

Nina ficou olhando para o lado, onde Franka tinha estado até um instante atrás.

Ela teria sido uma boa irmã.

Mas dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço.

 

31.

 

Que história mais triste, pensou o homem ao desligar seu Dispositivo.

Terminou de preparar o chá e voltou a se sentar na frente de sua máquina diferencial. Do lado de fora, no quad, alunos jogavam cricket. Ele nunca achou graça nisso — talvez porque no Brasil esse jogo não fosse popular.

Tomou um gole de chá. Ficou pensando em como o tempo nos prega peças.

Quase quarenta anos antes, numa universidade de São Paulo, ele viu uma aluna entrar na sua sala minutos antes da aula. Era uma mulher quase da sua idade, linda.

Ele poderia ter se apaixonado.

Mas não aconteceu.

Agora era Oxford e começava a chover. Daqui a pouco ele teria uma aula para dar. Alternate History in Late Modernity. A história das duas garotas daria um bom estudo de caso. Ficou imaginando se conseguiria acessar suas timelines novamente. Seria interessante.

Mas não sabia se conseguiria repetir a dose.

Tinha medo.

Author: Fabio Fernandes

Fábio Fernandes nasceu no Rio de Janeiro em 1966, mas vive em São Paulo, onde trabalha como professor universitário e tradutor. Em português, escreveu dezenas de contos para antologias e publicou a coletânea de contos Interface com o Vampiro e o romance Os Dias da Peste. Escreve em inglês desde 2009, e publicou em várias antologias nos EUA, entre as quais Steampunk Reloaded, Stories for Chip, POC Destroy Science Fiction. Estudou na conceituada oficina literária Clarion West, tendo como instrutores Samuel Delany e Neil Gaiman. É slush reader da revista Clarkesworld e revisor da editora Wordfire Press.

6 thoughts on “Amor: Uma Arqueologia

  1. Puxa, muito legal, demorei um tempo para pegar o ritmo, fiquei me perguntando que diabo esse texto estava fazendo na Trasgo, que bom que continuei lendo. Obrigado, Fabio.

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