Canção Abissal

V2 Sereia para revista online

Era um dia como os outros.

Clara tomava coragem para levantar, depois de uma noite mal dormida. Sua imaginação era, por vezes, inquieta demais, impedindo que fechasse os olhos. Afinal, durante muito tempo, a imaginação foi sua única companheira.

Deixando os pensamentos de lado, enfim saiu da cama. O peixe e as algas estavam quase acabando. Precisaria sair para conseguir mais. No entanto, não se preocupou com aquilo no momento. Enfiou o que restara de suas provisões na boca, comendo com gosto. Nem percebera estar com tanta fome.

Em seguida, decidiu mudar a posição dos móveis da casa pela milésima vez. Não havia muito que se fazer por ali, então ela renovava o lugar das coisas pelo menos uma vez por dia. Tal atividade lhe concedia uma paz de espírito desconcertante. Quando o que via a agradou, cessou a arrumação e foi até o seu armário de tranqueiras. Abriu-o cuidadosamente.

Um colar de ouro com um envelhecido coração dependurado, um anel, uma enorme concha espiral, um cartão de plástico com números e um nome gravado (Eigi Yamamoto, era o que dizia), uma estranha caixinha preta com uma tela de vidro e alguns botões na parte inferior, uma pulseira com uma bola de vidro achatada, que continha alguns números e setas que apontavam para o 10 e o 4; todos eram os seus pequenos tesouros, os quais ela sempre revirava para se distrair. Em especial, puxou para fora do armário uma caixinha de metal, aquela que encontrara numa sala do navio naufragado. Gostava daquele item em específico, porque era o que a mantinha entretida por horas. “Quebra-cabeças de mil peças”, dizia a embalagem. A água salgada não fora capaz de fazer muito estrago, sendo possível visualizar uma estranha estátua de cor bege escura, com uma espécie de triângulo ao fundo.

— Essa é a cor da areia.

Disse em voz alta. Não se importava em falar sozinha, quase nunca havia alguém para escutá-la. Gostava de relembrar os ensinamentos da mãe, verbalizando-os.

— Essa é uma esfinge. E essa coisa atrás é provavelmente uma pirâmide. Isso é um deserto, que existia num lugar chamado Egito.

Não tinha certeza sobre o que afirmava. Apenas a mãe podia confirmar se estava certa, mas ela nunca chegou a ver aquele quebra-cabeças. Começou a montá-lo, enquanto imaginava-se a andar por aquela terra. Tentou adivinhar como seria a consistência da areia. Sua mãe dizia que era possível segurar um punhado dela nas mãos, e que se você entreabrisse os dedos, ela se despejaria como água. Clara nunca entendera essa parte. Se a areia caía como água, como era possível andar sobre ela? A esfinge, a pirâmide… não deviam afundar?

Visualizou-se a tocar a base da esfinge, enquanto montava aquela parte no quebra-cabeças. Já era um faraó quando terminou por completo a montagem. Observou o trabalho concluído e sorriu. Então desfez tudo em algumas passadas de mão, e guardou todas as peças de volta na caixa. O sol já estava a pino quando retornou a embalagem de volta ao seu armário especial. Afinal, era realmente um dia como os outros.

Assim, encaminhou-se para onde fora a “sala de estar”. Era difícil dizer com certeza, pois sua casa era um cômodo único e espaçoso, e a cada vez que ela mudava os móveis, toda a configuração era alterada. Sentou-se colocando os pés cruzados debaixo de uma pequena mesa, sobre a qual jaziam dúzias de conchinhas. Na borda da mesa, uma foto de uma mulher jovem, envolta por uma moldura de conchas inacabada. A menina pôs-se a selecionar as conchas mais similares entre si: as mais brancas e lisas. As que descartava, colocava dentro de um pote de vidro, para uso futuro. As escolhidas eram grudadas na moldura, criando um padrão. Clara parou um segundo para admirar a moça na foto. Sua mãe fora uma garota muito bela.

Em pouco mais de uma hora, finalizou a tarefa. Olhou com um certo orgulho para o objeto em suas mãos, voltou até o lado de sua cama e deixou o retrato em seu criado-mudo.

O estômago deu um toque. Estava ficando com fome mais uma vez. Procurou em seus esconderijos, mas não havia mais nenhum peixinho sequer. Não estava muito disposta, mas teria que sair para caçar, afinal. Um dia como os outros.

Retirou os sapatos, apanhou seu arpão e se dirigiu para a porta. Abriu-a e deu de cara com o sol forte, que a cegou momentaneamente. Assim que pôde enxergar, observou a imensidão sem fim do oceano que a cercava por todos os lados. Colocou o arpão no chão por um instante para conferir as bóias. Ainda estavam firmes em seu trabalho de sustentar a casinha de madeira. Clara não queria nem pensar no dia em que elas chegassem ao cabo de sua vida útil.

Como seria o mundo além-mar? Será que ainda existiria algo que não fosse o oceano? Sua velha amiga, a imaginação, vagava pelas possibilidades, mas ela vinha acompanhada de outro amigo: o medo. Medo de abandonar seu lar, e todas as memórias que havia nele, para possivelmente morrer afogada em sua tentativa de aventura. Sentiu uma mistura de tristeza absoluta e raiva de si mesma. Tristeza por imaginar que nunca conheceria nada que não fosse sua casinha, e raiva profunda por saber que aquilo era verdade, por ser tão covarde.

Dando um suspiro, sentou-se ao lado do arpão, na beirada limite do chão. Enfiou os pés na água, sentindo o frescor. Sorriu involuntariamente ante ao prazer proporcionado. Já ia empurrar-se para molhar o corpo todo, mas retrocedeu de maneira brusca com o susto que tomou.

Uma forma gigantesca se precipitou para fora d’água, lançando-se como um torpedo acima da superfície. Voou três metros em pleno ar e caiu como uma bomba, espirrando o líquido salgado para todos os lados, inclusive em cima de Clara.

— Pérola!!!! Por que você precisa fazer isso toda a vez?!

Um semblante impetuoso a encarava de dentro da água. Os olhos azuis de Pérola a fitavam com seriedade, como sempre. Sua expressão jamais mudava, e ela nunca sorria. Sorte que isso não necessariamente fazia dela uma sereia chata. Clara gostava de seu jeito austero. De certa forma era divertido. Mas o que gostava mesmo em Pérola eram seus cabelos. Longos e brilhantes, metade dos fios eram azuis e metade eram rosa. Ela chamava a atenção naturalmente, embora ali só houvesse Clara para vê-la. Comparado ao seu fino cabelo castanho, o de Pérola era um espetáculo.

— Gosto de assustar você — proclamou a sereia, com o rosto neutro.

— Mas isso não tem graça! Só conseguiu aumentar minha fome.

— Cacemos juntas então. Vim porque ouvi sua canção.

De novo o papo da canção.

— Pérola, eu não estava cantando.

— Estava sim. Uma canção de medo e frustração. Fiquei preocupada e vim ver se você estava tendo algum problema.

Clara sorriu, enternecida. Pérola podia ficar meses sem aparecer e ter manias estranhas — como escutar melodias quando não havia nenhuma — mas se importava muito com ela e sempre sabia o momento certo de visitá-la.

— Ah, não é nada. Estava apenas pensando em como é monótono passar o tempo todo aqui, dia após dia. Há quanto tempo você me conhece, Pérola?

— Desde que você tinha metade do tamanho atual. Você tinha o quê? Sete anos? Filhotes humanos me confundem um pouco.

— Isso mesmo, sua boba. — Clara escondeu um sorriso com a mão. — Nove anos se passaram desde então. Isso pelo menos você sabe, né?

— As sereias não contam muito bem passagens de tempo tão pequenas.

O primeiro encontro com Pérola foi uma benção na vida de Clara. Sua mãe havia acabado de falecer, e ela estava perdida e sozinha. Fora a sereia quem providenciara um enterro digno, nas profundezas do mar. Já naquela época, ela dizia que fora a canção de dor aguda de Clara que lhe chamara a atenção e fizera com que subisse à superfície. Mas não importava. Ambas tornaram-se grandes amigas desde então.

— A propósito, Pérola… As sereias não são nômades? Por que o seu cardume permanece nessa região há tanto tempo?

Por um segundo, a sereia lançou um olhar estranho. Mas a impressão passou no momento seguinte.

— A região é abundante em alimento. É simples.

— Entendi. E então? Vamos atrás desse abundante alimento?

Pérola apenas assentiu, indiferente. Clara apanhou o arpão e colocou-se de pé. Respirou fundo, fechando hermeticamente a boca. Ato contínuo, quatro sulcos se abriram nos dois lados de seu pescoço. Guelras.

Mergulhou de cabeça ao lado da sereia, que passou a segui-la até o fundo. As diferenças entre elas ficavam então ainda mais evidentes.

Clara impulsionava-se lentamente, batendo os pés. Era minúscula perto de Pérola, que possuía quase dois metros apenas da cintura até a ponta de sua cauda de peixe. A sereia precisava reduzir drasticamente a sua velocidade para que as duas nadassem lado a lado. Ela ganharia fácil uma corrida contra um golfinho.

Seus cabelos de duas cores pareciam ganhar vida dentro da água, ficando mais brilhantes, serpenteando como cobras marinhas. Deixava os grandes seios à mostra, um largo colar de conchas sobre eles. Clara sentia vergonha de exibir os seus, bem mais humildes, e os mantinha escondidos dentro de sua camiseta. Até então, aquele continuava sendo um dia como os outros.

A caçada deu-se como sempre, sem imprevistos. A menina mirava o arpão e acertava em cheio algum peixe incauto. Então nadava até o instrumento e o recuperava, deixando o animal espetado, partindo para apanhar o seguinte. A sereia disparava em direção ao seu alvo, numa velocidade estonteante. Quando se podia vê-la parada novamente, já estava com o peixe em mãos, devorando-o sem piedade.

Clara capturou tantos peixes quanto a extensão de seu arpão permitiu. Então nadou para perto de Pérola, que mastigava sua derradeira barracuda. Aquele peixe parecia não causar nenhum mal à sereia, mas a garota temia comê-lo, pois podia ser tóxico. Entregou seu arpão nas mãos dela, fazendo sinal para que nem pensasse em comê-los. Aqueles lhe pertenciam. Depois disso, deslizou até o leito do mar, não muito distante, para apanhar algumas algas. Encontrou também um gordo caranguejo, que adicionou imediatamente ao seu cardápio, agarrando-o e imobilizando-o.

A vontade de respirar já estava chegando, precisava retornar à superfície. Suas brânquias lhe permitiam ficar pouco mais de uma hora sob a água. Aproximou-se de Pérola mais uma vez. Esta lhe perguntou em voz alta — afinal, as sereias podem permanecer imersas o tempo que quiserem — se ela gostaria de uma carona. Clara assentiu com um sorriso de boca fechada, olhos brilhando. O arpão lhe foi entregue de volta, onde ela espetou o caranguejo e enrolou as algas. Com a mão livre, segurou a palma da sereia.

Dispararam como uma flecha para cima, e Clara teve que cerrar os olhos. Se pudesse abrir a boca, gritaria de emoção com a aceleração frenética. Amava quando Pérola a arrastava assim.

Em menos de 10 segundos já estavam fora da água, e Clara inspirou profundamente. Içou-se para cima do chão de sua casa, já retirando um peixe do arpão e comendo-o cru mesmo. Delicioso.

— Sabe… Me lembrei de uma coisa. Sabe aquele navio afundado a alguns quilômetros daqui? Faz um tempo, de vez em quando escuto uma canção vinda de algum lugar próximo. Uma canção humana.

A comida quase caiu da mão da menina, quando ela encarou o semblante imparcial de Pérola. Uma canção? Humana? E ela dizia aquilo como um comentário corriqueiro qualquer?

— É verdade. Só que a voz não se parece com a sua ou a minha. É uma voz grossa. Acho que se parece com a voz de um tritão.

— Tritões não são a versão masculina das sereias?

— Sim.

— Então você ouviu um homem lá embaixo?!

Clara falou praticamente gritando. Nunca conhecera nenhum outro ser humano além da mãe. Aliás, mal conseguia imaginar como seria um homem.

— Bom… O som é de uma voz humana, não tenho dúvida. Mas você sempre diz que eu vivo escutando coisas que não existem. Acho que dessa vez você tem razão.

— Por quê?!

— Bom, porque… a voz vem de algum lugar muito, muito profundo. Muito profundo mesmo. Uma profundeza abissal, na verdade.

Ambas se encararam em silêncio por um longo minuto.

— Pérola. Isso é impossível.

— Eu sei. Por isso disse que você tem razão. Devo estar ouvindo coisas.

A menina permaneceu quieta, mirando o vazio, o peixe esquecido no colo.

— Clara, me diga que não está pensando no que estou pensando.

— Se você estiver pensando numa forma de eu descer até lá, sim, estamos imaginando a mesma coisa.

— Não. Sem chance. A pressão te esmagaria em um segundo. Mesmo as sereias não podem permanecer tão fundo por muito tempo.

— Vamos lá, Pérola! Tem de haver um jeito! Você sabe que eu preciso ver isso com meus próprios olhos!

Clara ficou na expectativa, enquanto a sereia a observava com relutância. Se havia mesmo algum homem lá embaixo, era uma questão espiritual descer para conferir. Era uma pessoa, um ser humano, pelo amor de Deus! Queria entrar na mente de Pérola para fazê-la ver o quanto era importante.

— Talvez haja um jeito.

Os olhos de Clara se esbugalharam e um sorriso enorme despontou em seu rosto.

— Como?!

— Termine sua refeição. Aí então eu te mostro.

Aquele não era um dia como os outros, afinal de contas!


Assim que Clara terminou a refeição, ambas desceram novamente às profundezas. A menina levou o arpão por cautela. Nunca se separava dele no fundo do mar.

Aproximadamente a nove ou dez metros de profundidade, Pérola segurou sua mão e nadou em disparada. Cada minuto para Clara era precioso, então não podiam perder tempo. Era sempre emocionante acompanhar a agilidade da amiga, ver o cenário e os peixes ficando para trás velozmente.

Em poucos minutos alcançaram o navio naufragado, onde Clara sempre se aventurava pelos quartos afundados. Era enorme e totalmente cercado de musgo e cracas. A sereia encaminhou-as até um recife de coral de múltiplas cores, que ficava alguns metros além da embarcação. Quando chegaram bem perto, Clara divisou no meio dele uma forma gigantesca, da qual ficaria bem longe, em dias comuns. Era um predador eficiente, pois camuflava seu corpo com as cores do ambiente, além de possuir um absurdo raio de alcance, com seus colossais oito braços, mais dois tentáculos maiores ainda. Quando percebeu a lula gigante, com seus olhos maiores do que pratos, Clara puxou Pérola com toda a força no sentido contrário, em terror. Mas a sereia a reteve com pulso firme, exprimindo através dos olhos que ela permanecesse calma. Assim que atingiram o solo no fundo, a menina tremia da cabeça aos pés.

— Salve, colosso do mar. — Pérola, com sua costumeira expressão neutra, saudou a lula.

— Salve, belíssima sereia. Necessita de algo?

— Muito bem, Clara. Este é o ser que vai ajudá-la a descer até as profundezas abissais.

Ambas, lula e humana, arregalaram os olhos.

— Pérola, perdeu o juízo ou tem algo que não estou sabendo?

— Zasian, você precisa ajudar esta humana a descer até as profundezas. A pressão iria matá-la, mas você pode protegê-la com seu corpo.

Clara ficou a imaginar como diabos a lula poderia fazer aquilo. Um calafrio percorreu toda a sua espinha.

— Por que eu faria isso, pequenina? Humanos não possuem exatamente uma boa fama. “Se for um ser vivo, nós o caçaremos”, parece ser o lema deles.

— Você está generalizando, Zasian. Praticamente não existem mais seres humanos. Olhe para essa mocinha. Acha que ela poderia fazer algum mal a uma lula gigantesca como você?

A lula remexeu o corpanzil, para focalizar melhor a menina. Quando fez isso, Clara pode facilmente enxergar que ela tinha quinze metros ou mais. O corpo era transparente, apesar de poder assumir cores diferentes. Podia enxergar todos os seus órgãos internos. A humana teve que usar toda a sua força de vontade para manter-se no lugar e não nadar como louca para a superfície, enquanto resistia ao escrutínio do invertebrado.

— O arpão está aí para comprovar que ela pode sim, fazer algum mal.

— Zasian, por favor, pense bem. Você tem esses dois tentáculos mortais, que queimam, além de seus oito braços que usa para se proteger. O que um humano pode fazer para garantir sua segurança sob a superfície? Ela tem tanto direito à vida quanto qualquer um de nós aqui.

Zasian ficou imóvel por um instante. Era impossível tentar adivinhar seus pensamentos, pelo menos para Clara. Como ler o semblante de uma lula gigante?

— Muito bem. Você tem um bom argumento. Mas se for para protegê-la, seria necessário que eu a carregasse na boca. Ela concorda com isso?

Um novo calafrio percorreu violentamente sua coluna, a ponto de fazê-la recuar. Imaginou o enorme bico que escondia a boca da lula. Medonho e mortal, dilaceraria seu magro corpo com tal velocidade que talvez ela sequer percebesse que morrera, não fosse pela dor excruciante. A dor lhe faria prestar atenção a todo o processo, independente do tempo que levasse.

Quando despertou de seu mini-pesadelo acordada, as mãos de Pérola seguravam seus ombros e a sacudiam.

— Você vai ter que confiar em mim se quiser chegar até onde a canção toca.

Clara apenas negou vigorosamente com a cabeça, expressando todo o seu terror da lula.

— Ela está ferindo meus sentimentos, Pérola. Parece que sou um monstro.

— Agora não, Zasian. Você pode confiar em Zasian também. Ela é grande e feia, mas uma gentil amiga.

— Isso foi uma ofensa ou um elogio? Escutem, têm certeza de que querem minha ajuda?

A menina respirou fundo pelas brânquias, tentando se acalmar. Pérola ainda a mantinha entre o aperto de suas mãos, e só soltou quando ela aquiesceu. Que o monstro fizesse logo o que quisesse de uma vez! Tentou escutar na mente a canção que a sereia ouvia, e visualizar o homem que a cantava, lá embaixo. Isso lhe deu forças, e ela mesma encaminhou-se para a frente da lula, entregando seu arpão aos cuidados de Pérola.

— Não se preocupe, pequena humana. Está segura.

Tomou-a delicadamente em dois de seus longos tentáculos, com o cuidado de deixar os dois que queimavam bem longe dela. A lula então separou totalmente todos os braços, revelando o bico ameaçador. Clara fraquejou de novo, mas fechou os olhos. Quando os abriu novamente, conseguiu enxergar uma Pérola um pouco embaçada, que a observava com a mesma expressão de sempre. Ela estava dentro das entranhas transparentes do colosso.

— Você ainda não me contou o que procuram lá embaixo, Pérola. — Falou Zasian, com a voz um pouco estranha agora, devido ao conteúdo que carregava na boca.

— Uma canção.

A lula revirou os olhos.

— Sereias e suas canções, que só elas escutam! Não sei por que me dou ao trabalho de perguntar.

A fossa abissal não era muito longe dali. Clara logo pôde avistar uma negrura sem fim à frente, e sentiu um aperto de desespero quando lula e sereia começaram a descer. A luz do sol, que alcançava sem problemas aquela profundidade, começou a falhar. Logo, tudo escureceu, e ela tremeu. Porém, em poucos segundos, uma fraca luminosidade verde clara surgiu ao redor dela. Zasian usava a sua luminescência natural para que pudessem enxergar. Não que Pérola precisasse disso. A sereia havia lhe explicado que, em trechos de visibilidade reduzida, utilizava-se de seu sentido de sonar, num sistema parecido com o dos golfinhos. Ainda assim, era possível notar como a pressão já a influenciava, pois ela nadava com uma expressão grave e concentrada, e por momentos, seu rosto se contorcia. Clara se sentiu mal por fazer a sereia trazê-la até aquele lugar insólito.

Desceram, desceram e desceram. O corpo da sereia estava visivelmente mais achatado. Era chocante ver aquilo e perceber que ela continuava nadando com quase o mesmo vigor do início. Seus órgãos internos deviam estar a ponto de explodir. Já a lula não denotava nenhuma mudança aparente, ao menos pelo que Clara podia observar de seu interior.

Continuaram descendo e descendo, até que Pérola parou para emitir um som na escuridão. Esperou o eco retornar e corrigiu a direção. Neste momento, Clara começou a ouvir uma ladainha. Era abafada, e parecia se repetir. Não dava para captar o sentido.

Na parca luz, Clara viu a sereia desaparecer de vista. Um momento tenso, em que ela se remexeu dentro da lula, os olhos preocupados. Mas então elas adentraram uma caverna. O calor da água aumentou significativamente. Logo à frente, Pérola reapareceu em seu campo de visão. Uma voz grossa, límpida, fez-se ouvir.

“…Nós estamos aqui. E estamos te esperando.”

Era o homem! Ele estava em algum lugar daquela caverna! Mas como podia estar falando? Como não fora esmagado? Clara se espremeu contra a “bochecha” da lula, tentando ver mais longe.

— Ei, menina. Fique quieta. O ambiente não te favorece aqui. Não se mova demais ou vai acabar saindo.

A caverna se abriu num vasto salão borbulhante, onde água quente saía do interior das rochas. Felizmente não era fervente.

Ao centro, havia uma espécie de bolha. Não havia água lá dentro. Quando a lula chegou, logo atrás da sereia, encontraram esta circundando a bolha. Clara olhou desesperadamente ao redor, para ver o que havia lá dentro. Só podia ser o homem, que novamente repetia a frase:

“…Nós estamos aqui. E estamos te esperando.”

Seu coração murchou e gelou, quando percebeu que não havia nada. Apenas uma espécie de aparelho, jogado ao chão. Nesse instante, Pérola tocava a bolha com as mãos. As pontas dos dedos penetraram a semi-esfera com facilidade. Logo mais, o braço todo. Enfim, caiu para dentro. O ar límpido e sem nenhuma pressão pegou a sereia desprevenida, que foi obrigada a fazer a despressurização de uma hora para a outra, o que a deixou tonta. Ela despencou no chão, como que desmaiada. Seu corpo achatado foi voltando ao normal.

Clara alarmou-se e Zasian percebeu isto.

— Calma. Vou soltar você lá dentro.

A lula colossal separou mais uma vez seus tentáculos, e colocou a boca sobre a bolha. Clara caiu sentada no chão seco. Correu até a sereia, que ainda estava zonza.

— Pérola! Tá tudo bem?

— Sim. Eu…

— Nós estamos aqui. E estamos te esperando.

As duas olharam o objeto caído à distância de um braço. A voz do homem vinha dali. Repetia sempre a mesma coisa. A menina agarrou o objeto com raiva. Todo esse trabalho, e no final tratava-se de uma voz gravada! Provavelmente era o mesmo aparelho que mantinha a bolha de ar ao seu redor, para evitar que a água e a pressão o desintegrassem.

— Nós estamos aqui. E estamos te esperando — o gravador repetiu.

Clara deu uma pancada no aparelho com a mão livre. A bolha pestanejou, ameaçando desfazer-se, mas curiosamente, tornou-se ainda mais firme. Clara e Pérola olharam maravilhadas para o gravador, porque ele tinha desengasgado.

— Já está gravando? Ok, vamos lá. Querida, estou deixando essa gravação para você. Sei que você está em algum lugar aí fora, e não desistirei de encontrá-la. Escute, a grande catástrofe matou muita gente, e deixou outros milhões desaparecidos. Sei que pra você, nesse momento, deve parecer o fim do mundo. Deve parecer que o oceano não tem fim. — Então, ouviu-se uma outra voz ao fundo, ininteligível. — Cale-se, seu idiota! Sei que ela pode estar morta, mas simplesmente me recuso a acreditar. Ouça, querida, meu recado para você é: não desista também! Nós ainda estamos aqui! O mundo não acabou, ainda existe terra firme, e estamos aqui. Se você estiver ouvindo, volte. Nós estamos aqui. E estamos te esperando.

Lágrimas escapavam dos olhos de Clara. Era verdade então. Havia algo além do mar. A areia! Poderia então conhecer a consistência da areia, e saber como era possível andar sobre ela!

Naquele exato instante, entretanto, o velho gravador deixou de funcionar. Não se ouviu mais a voz do homem. E a bolha, única barreira entre as garotas e a pressão esmagadora, arrebentou-se.

Tudo virou um borrão.


A noite há muito já havia tomado conta do firmamento. As estrelas eram visíveis, claras e brilhantes. A casinha da menina que morava no mar estava escura. Vazia. Não havia movimentação. Não havia vida.

A não ser pela gigantesca lula que emergiu subitamente, quebrando a regularidade da água. Nadou até se aproximar da borda da casa. Então, com seus braços cheios de ventosas, agarrou-se ao chão de madeira, e ergueu a boca até a beira.

Dois corpos saíram voando, e bateram contra o piso sem delicadeza.

— Pérola, não me convide nunca mais para suas aventuras baratas na companhia de humanos. Eu sempre fico com o trabalho pesado. Quando quiserem se matar novamente, não me chamem.

— Hã? Ah, sim. Sim, Sazian, não se incomode. Eu não quero comer agora — retrucou uma zonza sereia.

— Essas sereias sem juízo…

A lula desapareceu embaixo d’água, em meio a resmungos.

Pérola se arrastou para perto de Clara, que sacudia a cabeça.

— Tudo bem?

— Vou ficar.

Ela ainda segurava o gravador nas mãos. Sorriu de orelha a orelha.

— Pérola, sabe o que isso significa?

A sereia manteve a expressão séria.

— Caramba, Pérola! Significa que existe um mundo lá fora! Algo muito maior que essa minúscula casinha!

— E o que pensa em fazer a respeito?

Clara olhou para sua casa e tudo o que ela representava. Se saísse, provavelmente nunca mais voltaria. Todas as lembranças estavam lá. As boas e as ruins. Poderia deixá-las para trás?

“Você deve cultivar todas as memórias que puder, onde quiser.”

Ouviu uma voz que não era sua, sussurrando em seu coração. Seria sua fértil imaginação agindo de novo?

— Vou conhecer a terra seca. Vou procurar com todas as minhas forças. Agora que sei que realmente existe algo aí fora, tenho que ver com os meus próprios olhos — assegurou Clara, observando o horizonte onde céu e mar eram uma coisa só.

— E você acha que sua determinação é maior do que a imensidão de água no mar?

— Mas é claro que sim, Pérola!

A menina voltou o rosto para a sereia e tomou um grande susto. Pérola sorria, ternamente.

— Mas o que…? O que foi que…

— Que bom que finalmente resolveu sair daqui. Existem muitas, muitas canções que tocam ao longe, e eu posso mostrá-las a você.

— O quê? Por que nunca me disse isso antes, Pérola?

— Porque você não queria de fato deixar o seu santuário, Clara. Sua canção dizia isso, com ênfase. Agora, sua canção mudou. Não está mais presa a este lugar.

— Mas você vai abandonar o seu cardume? Elas não ficarão chateadas se você partir comigo?

Nesse momento, o sorriso de Pérola se alargou ainda mais. Não demonstrava nem um pingo de arrependimento.

— Clara, já abandonei meu cardume há muito tempo. Desde quando você era um filhote. Elas seguiram o seu caminho. Eu decidi permanecer ao seu lado. Sereias não ficam muito tempo no mesmo lugar. Você foi o meu recorde.

Clara lutava para conter as lágrimas. Não conseguiu. Abraçou a sereia, repousando a cabeça em seu ombro.

— P-por quê? Por que fez isso, sua boba…?

— Porque você precisava de mim. Só por isso. E agora estou feliz em vê-la querer conhecer o mundo. Deixar o ninho. Vamos fazer isso juntas. Só acho que você vai precisar de um arpão novo.

As duas riram.

— Não se preocupe. Eu ainda tenho uma dúzia deles.

— Então já podemos começar.

Quebraram o abraço e sorriram uma para a outra. Então observaram o horizonte iluminado pela lua, tentando desvendar o que o futuro lhes reservava.

Author: Priscila Barone

Priscila Barone é uma bancária que gosta de escrever. É formada em Publicidade e Propaganda e PHD nos seriados Chaves e Chapolin. Para deixar claros os seus conhecimentos, gosta de soltar frases das ditas séries a cada cinco minutos. Quando não está lembrando às pessoas que a vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena, está sentada em frente ao seu notebook, escrevendo alguma coisa.

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